2022/05/19

Entre talk-shows e sitcoms

Diz-se que aquela prática de introduzir riso artificial nos programas de TV terá tido origem num técnico de som americano, chamado Charley Douglass, que trabalhava na CBS, nos primórdios da televisão. Douglass, diz-se, ficava irritadíssimo porque o público do estúdio que assistia, ao vivo, aos programas daquele canal americano, ria nos momentos errados, não ria nos momentos certos, ria alto demais ou por tempo demasiadamente longo. Lançou-se então ao trabalho e inventou uma "máquina de rir," provida de uma ampla variedade de risadas e gargalhadas, que eram metidas no programa quando julgado aproriado. Na altura, o truque servia para "ajudar" o público, pouco acostumado ainda às práticas televisivas. A "laugh track," como é conhecida, pegou, e à medida que o público se foi tornando mais habituado aos códigos da televisão, foi desaparecendo, para, mais tarde, voltar com esta ou outra variação, com mais máquina e menos público ou vive versa. A prática mantém-se e espalhou-se. Até a televisão portuguesa copiou o modelo.

Sem conhecer os bastidores deste estúdio onde se está a produzir esta comédia trágica, o mundo (particularmente a Europa) tem andado, desde fevereiro, a fazer o papel de "laugh track," como nas sitcoms americanas, perante os desenvolvimentos da guerra. O que poucos vêem, são os cartazes que dos bastidores mandam o público rir e muito menos as máquinas que, em pós-produção, introduzem a gargalhada, que induz o espectador a achar graça a coisas que, tantas vezes, não têm qualquer graça. 

Quando tudo pareceria nos conduziria à reacção mais correcta, a lágrima ou o grito de dor perante o que se está a passar e perante a nossa impotência, a máquina milagrosa do riso faz-nos rir do palhaço trágico. Nem passa, sequer, pela cabeça deste público manso e dúctil o futuro possível que pode resultar desta tragédia para onde estamos a ser conduzidos e, muito menos, a possibilidade que têm de parar de ver a série, esquecer as deixas dos assistentes de estúdio e encarar de frente as opções que temos pela frente.

A gargalhada de plástico impede, dizem os estudiosos destas coisas da comunicação, o público de ouvir a piada. Suscita-lhe apenas a reacção alvar. Impede-o, por exemplo, de fazer esta simples pergunta: e se a Rússia ganha mesmo esta guerra? O que vai acontecer aos folgazões que neste momento assistem a tudo isto, refastelados nos seus sofás, a virar minis e a comer tremoços, como se estivessem a assistir a uma partida de bola?

Não quero agoirar... mas muitos analistas, vêm avisando —sem "laugh track"— que as coisas não estão nada famosas para os lados da equipa da casa. Este analista, por exemplo, é peremptório: afirma que o Ocidente está arrumado. E explica claramente porquê. Os suecos e os finlandeses não terão percebido bem de que lado vem o vento e parecem não ter problema com as correntes de ar. Este outro esclarece: tal como Roma e Bizâncio, o actual império não tem, simplesmente, os meios para contrariar as hordas que vêm das estepes. E todos sabemos o que aconteceu a Roma e Bizâncio. Estes dois exemplos não têm relação editorial, digamos, mas são coerentes entre si. E este outro, também em consonância com os outros dois, diz, sem hesitar: a Rússia está no caminho para atingir todos os objectivos militares que se propôs atingir com esta guerra. Acrescentando que a Europa está, nesta altura, no meio de um "choque económico" que se pode "tornar muito pior do que já é." Muitos outros analistas se têm pronunciado de forma que aponta na mesma direcção. Infelizmente, distraídos com a "laugh track" muitos não perceberam ainda a "piada" de tudo isto. Este artigo, por exemplo, aborda o papel do média em todo este processo. a propósito da suposta gaffe de G.W. Bush, ao confundir o Iraque com a Ucrânia. A presença da "laugh track" e da distração que provoca, surge aqui perfeitamente clara.

E enquanto os talk-shows e sitcoms sobre o que se passa na Ucrânia se sucedem, com gargalhada a compasso, a pergunta que deixo no ar é: e Portugal? O que nos aconteceria (acontecerá?) se a horda vinda das estepes marchasse (marchar) mesmo por aí fora, como tantos receiam? Para onde nos andam a querer empurrar? A nós, aos filhos e aos netos da geração que foi empurrada para uma guerra totalmente traumatizante, nas colónias. A nós, que sabemos que a Europa, como disse o analista que referenciei acima, está no meio de um "choque económico," um "choque" que se pode tornar ainda pior. A nós que temos a certeza que não há PRR que possa cobrir mais est crise, a nós que já vivemos há tempo demais num país que anda sempre de calças na mão? O que nos aconteceria (acontecerá?) se a horda vinda das estepes se lembrar que os Portugueses abriram as portas da sede da Democracia portuguesa a um fascista, que levou a cabo uma purga política sem precedentes e totalmente antidemocrática no seu país, mantendo, a pedido, apenas uma força e conservando, simbolicamente, Bandera como herói nacional? Quem pode atribuir algum crédito a esta criatura e dar-lhe cobertura institucional?! Poderiam, o pressuroso Costa, o sibilino Silva e o talk-show host Sousa, desligar, por um momento, a máquina das gargalhadas e dizer-nos, olhos nos olhos, o que planeiam fazer, o que querem, em resumo, fazer de nós...? Vamos, governo e PR, digam-nos! E, já agora, publiquem também a vossa declaração de interesses neste conflito, para memória futura.

(NB- a imagem não é da RT; é da CNN e ilustra o caso pouco divulgado da chamada Ilha Zmiyinyy, também conhecida por Ilha da Cobra.)

2022/05/17

Taxi Driver (24)

Está livre? 

- Entre, entre...então, para onde vamos? 

Para a Buraca, s.f.f.

- Muito bem. Já vi que veio do hospital. Está tudo bem consigo?

Para já, parece que sim. Não me queixo. Há quem esteja pior; os ucranianos, por exemplo...

- Não se esqueça do que vai dizer...A propósito da Ucrânia, tenho um casal amigo, de nacionalidade ucraniana, que já mora cá há uns bons anos. Ainda esta semana estive com eles e disseram-me que muitos ucranianos estão a voltar para a Ucrânia. O senhor acredita nisto?   

Acredito. É natural, querem ajudar o seu país. Os homens principalmente. As mulheres ficam cá com as crianças. De resto, quem não saiu até agora, dificilmente poderá fazê-lo, dado que todos homens adultos (a partir dos 16 anos) estão mobilizados para o serviço militar. 

- Pois, já ouvi falar nessa lei. Penso que é geral. Não estou nada de acordo. Acho que não devemos obrigar ninguém a ir para o serviço militar. Eu odeio o militarismo. 

De facto, a guerra não interessa a ninguém, mas há muita gente a ganhar com isso...

- Olhe, eu fui obrigado a ir para a tropa, na altura em que não se podia recusar. Cheguei a falar com o tenente de serviço (estava em Mafra) e dizia: "meu tenente, não me obrigue a fazer estes exercícios que eu não sou capaz e não tenho jeito nenhum para isto". Sabe, o que é que ele fazia? Punha-me de castigo e não me deixava ir a casa nos fins-de-semana...meses a fio! A minha mãe chegou a ir ao quartel falar com ele e ele disse-lhe: "os quartéis são para homens! As mulheres, devem estar em casa a cozinhar"...

Mas, isso foi há quanto tempo? 

- Então, eu tenho 50 anos. Nessa altura tinha dezoito, faça as contas...

Mas, isso já foi depois do 25 de Abril. Do que sei, a tropa deixou de ser obrigatória há muitos anos. Agora, só vai quem quer. Só aceitam voluntários.

- Sim, mas naquela altura ainda éramos obrigados. Não estou nada de acordo. Eu era incapaz de pegar numa arma para matar alguém. Nem um animal. Quando a minha mãe matava um frango ou um coelho, eu saia de casa para não ver...

Ou ser morto...

- Ou ser morto. Mas eu preferia ser morto a ter de matar alguém. Nunca na vida! 

Percebo. Estou inteiramente de acordo consigo. Aliás, eu também não fiz a tropa, ainda que por razões diferentes. Não fui objector de consciência. 

-   Pois, o tenente, obrigava-me a ficar de fascina e a esfregar o chão do quartel. Todas as semanas, quando chegava a vez de distribuir as cadernetas de licença militar, chamava-me e dizia: "Ramos, está aqui a tua caderneta!". Rasgava-a à minha frente e dava-ma aos bocados. Acredita?

Sim, conheço muitas histórias dessas, mas do tempo da ditadura e da guerra colonial. 

- Uma coisa sem sentido nenhum, o serviço militar. Só devia ir para a tropa, quem tivesse vocação e quisesse fazer carreira daquilo. Não está de acordo? 

Não podia estar mais de acordo. 

- Isto é um massacre. Todos os dias na televisão a ouvir as mesmas notícias: Putin, Putin, Putin...

Certo. Uma "lavagem ao cérebro", feita por quem ganha com a guerra. E há muita gente que ganha e bem com a guerra. Com todas as guerras...

- E vou dizer-lhe uma coisa: conheço bem a comunidade ucraniana e ele há cada um que mete medo. Ele é assaltos, máfias e até fascistas. 

Essa vertente é conhecida. Era na Ucrânia, que muitos grupos europeus de extrema-direita se treinavam. Só que essa característica é comum a todos os países do leste europeu. Os russos não são melhores. 

- Lindo, lindo, lindo!... Era mesmo isso que eu queria dizer. Como é que se chama? 

Rui...

- Eu chamo-me Ramos. Você é o máximo! Agora é que disse a verdade! 

Tenho dias...quanto é que lhe devo? 

- Por ser para si, sr. Rui, são 4 euros e 45 cêntimos.

Obrigado. Boa tarde e bom trabalho.