Diz-se que aquela prática de introduzir riso artificial nos programas de TV terá tido origem num técnico de som americano, chamado Charley Douglass, que trabalhava na CBS, nos primórdios da televisão. Douglass, diz-se, ficava irritadíssimo porque o público do estúdio que assistia, ao vivo, aos programas daquele canal americano, ria nos momentos errados, não ria nos momentos certos, ria alto demais ou por tempo demasiadamente longo. Lançou-se então ao trabalho e inventou uma "máquina de rir," provida de uma ampla variedade de risadas e gargalhadas, que eram metidas no programa quando julgado aproriado. Na altura, o truque servia para "ajudar" o público, pouco acostumado ainda às práticas televisivas. A "laugh track," como é conhecida, pegou, e à medida que o público se foi tornando mais habituado aos códigos da televisão, foi desaparecendo, para, mais tarde, voltar com esta ou outra variação, com mais máquina e menos público ou vive versa. A prática mantém-se e espalhou-se. Até a televisão portuguesa copiou o modelo.
Sem conhecer os bastidores deste estúdio onde se está a produzir esta comédia trágica, o mundo (particularmente a Europa) tem andado, desde fevereiro, a fazer o papel de "laugh track," como nas sitcoms americanas, perante os desenvolvimentos da guerra. O que poucos vêem, são os cartazes que dos bastidores mandam o público rir e muito menos as máquinas que, em pós-produção, introduzem a gargalhada, que induz o espectador a achar graça a coisas que, tantas vezes, não têm qualquer graça.
Quando tudo pareceria nos conduziria à reacção mais correcta, a lágrima ou o grito de dor perante o que se está a passar e perante a nossa impotência, a máquina milagrosa do riso faz-nos rir do palhaço trágico. Nem passa, sequer, pela cabeça deste público manso e dúctil o futuro possível que pode resultar desta tragédia para onde estamos a ser conduzidos e, muito menos, a possibilidade que têm de parar de ver a série, esquecer as deixas dos assistentes de estúdio e encarar de frente as opções que temos pela frente.
A gargalhada de plástico impede, dizem os estudiosos destas coisas da comunicação, o público de ouvir a piada. Suscita-lhe apenas a reacção alvar. Impede-o, por exemplo, de fazer esta simples pergunta: e se a Rússia ganha mesmo esta guerra? O que vai acontecer aos folgazões que neste momento assistem a tudo isto, refastelados nos seus sofás, a virar minis e a comer tremoços, como se estivessem a assistir a uma partida de bola?
Não quero agoirar... mas muitos analistas, vêm avisando —sem "laugh track"— que as coisas não estão nada famosas para os lados da equipa da casa. Este analista, por exemplo, é peremptório: afirma que o Ocidente está arrumado. E explica claramente porquê. Os suecos e os finlandeses não terão percebido bem de que lado vem o vento e parecem não ter problema com as correntes de ar. Este outro esclarece: tal como Roma e Bizâncio, o actual império não tem, simplesmente, os meios para contrariar as hordas que vêm das estepes. E todos sabemos o que aconteceu a Roma e Bizâncio. Estes dois exemplos não têm relação editorial, digamos, mas são coerentes entre si. E este outro, também em consonância com os outros dois, diz, sem hesitar: a Rússia está no caminho para atingir todos os objectivos militares que se propôs atingir com esta guerra. Acrescentando que a Europa está, nesta altura, no meio de um "choque económico" que se pode "tornar muito pior do que já é." Muitos outros analistas se têm pronunciado de forma que aponta na mesma direcção. Infelizmente, distraídos com a "laugh track" muitos não perceberam ainda a "piada" de tudo isto. Este artigo, por exemplo, aborda o papel do média em todo este processo. a propósito da suposta gaffe de G.W. Bush, ao confundir o Iraque com a Ucrânia. A presença da "laugh track" e da distração que provoca, surge aqui perfeitamente clara.
E enquanto os talk-shows e sitcoms sobre o que se passa na Ucrânia se sucedem, com gargalhada a compasso, a pergunta que deixo no ar é: e Portugal? O que nos aconteceria (acontecerá?) se a horda vinda das estepes marchasse (marchar) mesmo por aí fora, como tantos receiam? Para onde nos andam a querer empurrar? A nós, aos filhos e aos netos da geração que foi empurrada para uma guerra totalmente traumatizante, nas colónias. A nós, que sabemos que a Europa, como disse o analista que referenciei acima, está no meio de um "choque económico," um "choque" que se pode tornar ainda pior. A nós que temos a certeza que não há PRR que possa cobrir mais est crise, a nós que já vivemos há tempo demais num país que anda sempre de calças na mão? O que nos aconteceria (acontecerá?) se a horda vinda das estepes se lembrar que os Portugueses abriram as portas da sede da Democracia portuguesa a um fascista, que levou a cabo uma purga política sem precedentes e totalmente antidemocrática no seu país, mantendo, a pedido, apenas uma força e conservando, simbolicamente, Bandera como herói nacional? Quem pode atribuir algum crédito a esta criatura e dar-lhe cobertura institucional?! Poderiam, o pressuroso Costa, o sibilino Silva e o talk-show host Sousa, desligar, por um momento, a máquina das gargalhadas e dizer-nos, olhos nos olhos, o que planeiam fazer, o que querem, em resumo, fazer de nós...? Vamos, governo e PR, digam-nos! E, já agora, publiquem também a vossa declaração de interesses neste conflito, para memória futura.
(NB- a imagem não é da RT; é da CNN e ilustra o caso pouco divulgado da chamada Ilha Zmiyinyy, também conhecida por Ilha da Cobra.)