2020/04/25

(Apesar do confinamento) 25 de Abril, sempre!

gravura de José Santa Bárbara

Hoje não descerei a Avenida da Liberdade, como sempre fiz nos últimos 24 anos.
Há 46 anos atrás, também não o tinha feito, embora por razões diferentes. Nessa data - nesta data - estava exilado noutro país e impedido de regressar a Portugal.
Uma outra forma de "confinamento", nessa época protegido do "vírus" fascista que governava Portugal.
Nao é fácil protegermo-nos de vírus, ainda que a ciência ajude. Desde logo, com vacinas adequadas e, caso sobrevivamos, através da imunidade criada pelos anti-corpos.
Foi assim com as doenças infantis que todos contraímos na idade própria: do sarampo à varíola, da varicela à tosse convulsa. Para algumas, existia a vacina; para outras, o remédio era a quarentena forçada, que nos imunizava para o resto da vida. Também tomei a famosa BCG (contra a tuberculose), que em Portugal era obrigatória e que, nalguns países, nunca foi. Lembro-me bem, de ser chamado a um centro clínico holandês, onde aguardavam dezenas de refugiados portugueses para serem testados, dado que havia suspeitas que um de nós poderia estar infectado e contaminar os restantes. O médico, que me atendeu, ficou surpreendido por estarmos todos vacinados. Ninguém estava infectado. Nem o suspeito.
Durante os meus 8 anos de exílio, confirmei aquilo que já sabia. Não só estava imunizado contra as mais diversas doenças infantis, como tinha adquirido outras imunidades. Uma delas, contra o fascismo.
Uma "longa travessia", como cantou o Zé Mário, ao longo da qual vamos ficando mais fortes.
Esse vírus não apanhámos nós. E, aqueles que o apanham, são apenas a excepção que confirma a regra. 
Vem esta história toda, a propósito das comemorações deste ano, que vi em directo, através da NET.
Contrariamente a anos anteriores, estavam apenas 96 deputados e alguns convidados nas bancadas circundantes. Estiveram presentes, para além do PR, do PM e do Presidente da AR, representantes de todos os partidos.
Pese a tentativa grosseira de impedir a sessão, através de uma petição lançada em desespero pelo deputado fascista, a comemoração realizou-se na mesma. Da mesma forma que, como bem lembrou o PR, o Parlamento nunca fechou durante esta crise, também haverá celebrações do 10 de Junho, do 5 de Outubro e do 1ª de Dezembro, datas institucionais que não são pertença de ninguém em particular, mas pertencem aos portugueses em geral e por isso devem ser celebradas.
Foi bom seguir os discursos, ainda que à distância, desta vez forçada por um confinamento no estrangeiro. Nada a que não estivesse habituado, de resto.
Todos falaram. Até o fascista. Ainda bem. Prova que a democracia está forte e todos têm direito a expressar as suas opiniões, mesmo quando delas discordamos.
Confirmei aquilo de que suspeitava: estou imunizado contra o vírus do fascismo.   
Fascismo, nunca mais.
25 de Abril, sempre!

2020/04/19

Duas semanas noutra cidade (10): Modelos, Medos e Medidas Avulsas

photo NYTimes
A disseminação do coronavírus, agora de forma constante em todo o hemisfério Norte, obrigou a maior parte dos governos a tomarem medidas de acordo que, para além de sanitárias, reflectem o cariz de cada regime.
Depois do alarme ter soado na China (23 de Janeiro, n.r.), seguiu-se uma rápida reacção dos países limítrofes (Coreia do Sul, Taiwan, Japão...) que, alertados para o perigo de contaminação grave, rapidamente puseram em prática modelos sanitários, de detecção e prevenção, eficazes. Decisivo neste combate, foi o sistema de vigilância digital dos cidadãos que permitiu, em tempo real,  identificar quem estava infectado e avisar potenciais contaminados. Não é só na China, (portanto um estado totalitário) que os cidadãos são controlados no seu quotidiano. Também em sociedades asiáticas mais democráticas, o controlo digital é praticado, de forma semelhante, há muitos anos.
Em Taiwan, o estado envia simultaneamente a todos os cidadãos um SMS para localizar as pessoas que tiveram contactos com infectados e para informar sobre os lugares e edifícios onde houve pessoas contagiadas. Ainda numa fase inicial, Taiwan utilizou uma ligação dos diversos dados para localizar possíveis infectados em função das viagens que tinham realizado.
Na Coreia do Sul, quem se aproxima de um edifício onde tenha estado um infectado, recebe um sinal de alarme através de um "app", especial criado para o Coronavírus. Todos os lugares, onde havia infectados, estão registrados nesta aplicação. Não se tem muito em conta a protecção de dados nem a esfera privada. Em todos os edifícios da Coreia foram instaladas câmaras de vigilância em cada andar, em cada escritório, em cada loja. É praticamente impossível a movimentação em espaços públicos sem ser filmado por uma câmara de vídeo. Com os dados do telefone móvel e do material filmado por vídeo, pode criar-se o perfil de movimento completo de um infectado. Os movimentos de um infectado, são todos publicados. Nos escritórios do ministério coreano da saúde, existem pessoas, chamadas "trackers" que, dia e noite, não fazem outra coisa do que visionar o material filmado por vídeo para completarem o perfil do movimento dos infectados e localizar as pessoas que tenham tido contacto com estas.
Outra diferença fundamental, entre a Ásia e a Europa, são, sobretudo, as mascarilhas protectoras. Na Coreia do Sul, não há praticamente pessoas, que saiam à rua, sem mascarilhas respiratórias especiais, capazes de filtrar o ar do vírus. Não são as habituais mascarilhas quirocirúrgicas, mas mascarilhas protectoras especiais, com filtros, também usadas pelos médicos que tratam os infectados. Nas primeiras semanas, após o alarme, o tema prioritário na Coreia foi a distribuição massiva de máscaras à população. Perante as longas filas de espera nas farmácias, os governantes tomaram medidas radicais: foram construídas, à pressa, novas máquinas para fabricá-las. Aparentemente, com sucesso. Existe, inclusive, um "app", que indica quais as farmácias mais próximas que dispõem de máscaras.
Assim que souberam do vírus na China, as 4 fábricas farmacêuticas existentes, receberam dinheiro e autorização do governo, para fabricarem "kits" de teste. No pico da crise, chegaram a ser testados 20.000 cidadãos por dia. Para analisar os testes, foram criados 56 laboratórios especiais. As pessoas eram testadas nos hospitais ou em clínicas de proximidade, em casa e dentro dos próprios carros. Os infectados foram isolados em casa e o resto da população pode prosseguir a sua vida. Mais importante ainda, os sul-coreanos não esperaram por ajudas exteriores e fabricaram todo o material de que necessitavam em fábricas nacionais. O único país que fez mais testes do que a Coreia do Sul, foi a Alemanha (60.000/diários), graças a um bom sistema sanitário de prevenção e à capacidade industrial de que o país dispõe.
Na maioria dos países europeus e após um período de subvalorização da crise, o número de infectados e mortes disparou, tendo atingido números impensáveis há dois ou três meses, ainda que, comparativamente, o número de falecidos devido às gripes anuais, seja maior.
Dois meses após terem sido detectados os primeiros casos na Europa (Itália), o número de mortes por coronavírus continua a crescer nos países mais industrializados, sem que se veja um fim à vista: Itália (23.227), Espanha (20.453), França (19.323), UK (15.464), Bélgica (5.683), Holanda (3.684)...
Por outro lado, as medidas de contenção tomadas em cada país, divergem na sua aplicação e nos instrumentos postos à disposição pelos respectivos governos e serviços sanitários.
Uma das falhas, parece residir na capacidade de responder em tempo (material e logisticamente) a uma epidemia nova e com estas dimensões. Um dilema que atravessa a maioria dos países europeus, como bem exemplificou Erdad Balci, no semanário holandês HP/DeTijd do passado dia 23 de Março: "A Holanda, com a sua economia do conhecimento e o seu sector de serviços, viu-se reduzida a um país em vias de desenvolvimento, que tem de pedir materiais simples para que os seus súbditos não morram. É tempo de acordar". Utilizando a metáfora do "cavalo de competição que ganha sempre e que, por isso, continua a correr depois de perder...", o articulista prossegue: "na passada quarta-feira, chegou uma avião de mercadorias a Schipol, com um carregamento de 80.000 máscaras sanitárias vindas da China. Os chineses ofereceram as máscaras, porque tinhamos necessidade. Grande alegria à chegada das paletes, com direito a fotografia da tripulação chinesa e aplausos dos presentes. O carregamento gratuito é o espelho em que nos devemos mirar. Para obter uma coisa tão simples como máscaras orais, a Holanda teve de pedir a uma potência estrangeira que, na primeira oportunidade, também acaba com a nossa "open society" (em inglês, no texto). A chegada das máscaras, é o mesmo tipo de ajuda para o desenvolvimento, que um poço de água num aldeia africana. Sabíamos, há meses, da existência do vírus, mas não conseguimos fabricar máscaras para nos protegermos!". A razão, explica Balci, reside num factor muito simples: o desmantelamento progressivo da industria no Ocidente e a transferência de investimentos para a China e países límitrofes, onde a mão-de-obra é barata e os operários obedientes. Só que, agora, estamos todos nas mãos dos chineses. Esta constatação, leva-nos a outro tipo de questões que a crise epidémica levantou.
A pandemia põe à prova os regimes políticos em todo o Mundo.
A rivalidade entre USA e China, está a ser vista como uma competição entre dois modelos políticos opostos: A democracia e o autoritarismo. Qual deles respondeu melhor a esta crise e qual dos dois vai prevalecer depois da crise?
A China foi o primeiro país a registrar o contágio do Covid19. Em Novembro de 2019, ocorreu o primeiro caso em Wuhan, na província de Ubei, que seria abafado até começarem a correr notícias de que o médico que tinha detectado o vírus - Li Weng Lian - tinha sido afastado e, posteriormente, falecido devido à infecção, que alastrou em pouco mais de um mês. Em Janeiro deste ano, a China confirmava a epidemia e informava a OMS. As nações ocidentais não podem declarar que não sabiam da existência deste vírus.
Trump, como sempre, seguiu uma politica errática. Começou por fechar as fronteiras e abandonou o palco internacional, acusando a China de ser responsável pela disseminação do vírus, que apelidou de "vírus chinês". Xi Jinping seguiu uma política assertiva. Abre a China ao Mundo e quer ocupar o vazio deixado pelos EUA na liderança global.
A ideia que daqui resulta é a de que o autoritarismo é mais eficaz que a democracia e sairá reforçado desta crise.
Nesta crise, encontramos três componentes, que correspondem "grosso modo" a três tipos de regime  diferentes:
1) O Autoritarismo: do qual o melhor exemplo é a China. Começou por negar o problema, depois tentou escondê-lo, impedindo o médico de denunciar a doença, no que perdeu um mês que pode ter sido decisivo no combate à epidemia. Finalmente, tomou medidas draconianas e, uma vez controlado o surto,  fez aproveitamento político. Foi eficaz na resposta. Venceu o vírus (ainda que não saibamos se os números são exactos), enviou ajuda, material sanitário e médicos, para os países mais atingidos (Itália e Espanha). É o líder mundial desta crise.
2) As Democracias governadas por Populistas: Trump, Bolsonaro, Boris Johnson. Começaram por ridiculizar a gravidade da doença ("é só uma gripezinha", dizia Bolsonaro) contribuindo para a desinformação e adiando as soluções. Desvalorizaram o papel da ciência e as opiniões de médicos, em nome de uma suposta superioridade étnica. Finalmente, foram forçados a reagir, tarde e a más horas. Hesitaram entre o valor da vida humana e os interesses económicos.    
O resultado não foi o melhor. Em apenas quatro semanas, os EUA atingiram já os 40.000 mortos (metade das quais no estado de Nova Yorque) e os 30 milhões de desempregados (20% da força de trabalho). A maior percentagem dos últimos 10 anos!
Do Brasil, nem vale a pena falar: Bolsonaro, o pior presidente da história brasileira, continua a passear-se entre os seus adeptos, tão mentecaptos como ele e, entretanto, despediu o ministro da saúde, por este ousar criticar a sua gestão nesta crise. O país é um barril de pólvora, com milhões de pessoas a viver em condições infra-humanas nas favelas do Rio e São Paulo, para além dos 200.000 presos, confinados em prisões sobrelotadas. O caos é tão grande que os militares (chefiados por Mourão, vice-presidente) estão à beira de forçar uma demissão (por "impeachment" ou acordo) de Bolsonaro e da sua família, o que não augura grande futuro para o país.
Entre os populistas, há ainda quem se aproveite dos poderes de excepção para reforçar a autocratização do regime. É o caso de Orban (Hungria) que aproveitou a epidemia, para decretar o "estado de excepção" por tempo indeterminado. Quem desobedecer pode apanhar 5 anos de prisão! A Hungria passou a ser a primeira ditadura na União Europeia.
3) As Democracias Liberais: umas mais cedo, outras mais tarde, todas levaram o problema a sério e tomaram decisões com base na ciência, ainda que os "confinamentos" (lockdowns) sejam diferentes de pais para país. Os mais liberais (Suécia, Finlândia, Noruega, Holanda, etc...) optaram por um sistema semi-aberto, onde os cidadãos são responsáveis pelo seu comportamento; enquanto outros (Portugal, Espanha, Itália...) seguem guiões mais tradicionais e prolongaram os estados de excepção até à primeira quinzena de Maio.
Uma coisa, parece certa. Depois da pandemia, nada ficará como dantes. Resta saber se para melhor. Os indicadores, para já, são péssimos. Primeiro, assustaram as pessoas com o vírus e, agora, assustam-nas com a próxima crise económica. Como bem explicou Naomi Klein em "A Doutrina do Choque: a ascensão do capitalismo do desastre", o sistema aproveita-se do medo, causado por crises (económicas, humanitárias ou outras) para manipular e reforçar o seu poder. Nuvens negras no horizonte.

(continua)