2018/07/05

Na rota do Flamenco (5)

Entre 1992 e 2014, desapareceram quatro dos maiores nomes da "renovação flamenca", a geração surgida no panorama musical espanhol - após a queda do regime franquista - que rompeu com o denominado "flamenco operático" e outros estereótipos do género, popularizados através dos "tablaos" para consumo turístico. Camarón de La Isla (1950-1992), Enrique Morente (1942-2010) no "cante"; Antonio Gades (1936-2004) no "baile" e Paco de Lucia (1947-2014) no "toque", foram as figuras principais desta transição que contribuiu para a renovação do "cante jondo" e a sua projecção internacional. O género deixou de ser uma arte marginal (interpretada por ciganos) e desprezada durante a ditadura, para se afirmar nos circuitos musicais de renome, sendo hoje reconhecido pela Unesco, como Património Imaterial da Humanidade.
Um longo caminho, com mais de 200 anos, onde pontuam nomes como El Planeta, Silverio, Antonio Chacón, Manuel Torre, El Fosforito, Manolo Caracol, La Niña de Los Peines, Tomas Pavón, Antonio Mairena, Fernanda e Bernarda de Utrera, Carmen Amaya, Antonio Gades, Farruco, Ramón Montoya, Sabicas, Pepe Habichuela e tantos outros...   
A vitalidade do Flamenco pode ser constatada nos inúmeros locais onde continua a praticar-se, sendo a cidade de Sevilha um bom exemplo desta popularidade. Para turistas apressados, "O Museu del Baile Flamenco" (com sessões contínuas diárias e um corpo de baile residente), situado a meio caminho entre o Centro e o Barrio de Santa Cruz, pode ser uma boa alternativa. Para os mais conhecedores, a "Casa de la Memoria" (Centro Cultural Flamenco) situada em pleno Centro (Calle Cuna), oferece sessões de flamenco tradicional, com actuações de "cante", "toque" e "baile" de muito boa qualidade. Foi lá que vimos a excelente "bailaora" La Choni e, mais recentemente, uma sessão dedicada ao "cante jondo", com Ana Real, David Bastidas e Marta "La Niña" (cante), Yolanda Osuna e Óscar de los Reyes (baile) e Raúl Cantizano (toque). Um programa para iniciados, com incursões polifónicas nas "saetas", "martinetes" e "soléas", de nível. Outra boa opção, é "CasaLa Teatro", um teatro de bolso (28 lugares), situada em pleno Mercado de Triana, no bairro do mesmo nome, junto à Ponte de Isabel II. Vimos lá um trio flamenco constituído por Carmen Lara, Celedonio Garrido e Sergio Gòmez, que valeu bem a visita.
Porque, em 22 de Junho, actuava Miguel Poveda na cidade, não resistimos ao apelo de um dos maiores nomes do Flamenco actual, que ali apresentou o seu último concerto "Enlorquecido", dedicado ao poeta andaluz Federico Garcia Lorca.
O concerto, esgotado com antecedência, teve lugar no auditório "Rocío Jurado" (inaugurado em 1991 para a Exposição Universal de Sevilha) que dispõe de 4000 lugares sentados. Pesem os preços algo exagerados e as deficientes condições de comodidade (cadeiras de plástico), o programa era aliciante e não defraudou as expectativas.
Poveda, velho conhecido do público português, tinha estreado duas destas canções no programa que apresentou aquando da sua última passagem pela Gulbenkian, no passado mês de Novembro. Desta vez, foram doze os poemas de Lorca escolhidos pelo cantor e musicados pelo pianista Joan Albert Amargós, os quais constituem a primeira parte do concerto. Excelentes músicos (13 pessoas em palco), entre os quais Amargós (no piano) e Jesús Guerrero (na guitarra), que também tinham acompanhado Poveda em Lisboa.  
Entre os clássicos "Chapéu de Três Bicos" e "Sevilhanas del Siglo XVIII", tempo para novo reportório, com "No me Encontraron", "Alba", "El Silencio", ou o pictórico "Son de Negros en Cuba". Um concerto, misto de flamenco e rock sinfónico, onde o som (óptimo) era apoiado por imagens projectadas em fundo, que sublinhavam a dramaticidade das canções, numa simbiose perfeita entre as diversas técnicas multimédia utilizadas.
A segunda parte, deu-nos a ver o Poveda, cuja carreira acompanhamos há vinte anos. Flamenco puro e duro, onde as "saetas", as "soléas" e as "seguiriyas", foram interpretadas com a mestria de alguém que domina os "palos" básicos do Flamenco como poucos. Nos "encores", tempo ainda para homenagear Camarón e Morente, com uma interpretação épica do hino "La Leyenda del Tiempo". O concerto, que duraria duas horas, terminaria com as tradicionais "bulerías", cantadas e dançadas, por todos os músicos em palco. Um magistral Poveda, no auge da sua maturidade artística.  
Sim, o Flamenco está vivo e recomenda-se!

2018/07/02

Na rota do Flamenco (4)

Reservámos para o fim do nosso curto périplo, a cidade de S. Fernando, vizinha de Cádiz, a capital da província do mesmo nome.
Situada à entrada do istmo, sobre o qual foi edificado o porto mais importante da Andaluzia, San Fernando - também conhecida por "La Isla" - é uma densa urbe de 97.000 habitantes, limitada a sul por uma extensa área de salinas e braços do mar, que é atravessada pelo Caño, o rio da cidade. 
Falar de Cádiz e de S. Fernando, é falar de duas das mais emblemáticas cidades flamencas de Andaluzia. De Cádiz partiram (e chegaram) as conhecidas cantigas de "ida e volta", que haveriam de influenciar os "cantes aflamencados", de origem hispano-americana: as "guajiras", as "colombianas", as "habaneras", as "milongas", as "vidalitas" e as "rumbas".
Entre os flamencos notáveis, nascidos nesta província, destaque para Manuel de Falla (compositor) Paco de Lucia (guitarrista), Sara Baras (bailaora), os "cantaores" Niña Pastori, José Llerena Ramos "El Chato" e, o maior de todos, Camarón de La Isla.
José Monje Cruz, El Camarón (1950-1992) é hoje o maior legado do Flamenco na cidade. Logo à entrada, na Praça Juan Vargas, deparamos com o monumento em sua honra, uma estátua em bronze, da autoria de Antonio Mota, fundida em 1992 e recentemente decorada com letras garrafais vermelhas, por ocasião do 25º aniversário da sua morte. O departamento de turismo criou, inclusive, um trajecto (La ruta de Camarón de La Isla), assinalado no mapa da cidade: inclui a "Casa-Museu", situada na Calle Carmén, onde nasceu e viveu o cantor; a mítica "Venta de Vargas", a "peña" flamenca onde Camarón começou a cantar aos oito anos de idade; o monumento referido; a "Fragua de Camarón", onde ele aprendeu a profissão de ferreiro; o "Mausoléu de Camarón", situado no cemitério da cidade e a "Peña de Camarón", lugar tradicional do "cante". A marca "Camarón" é, de resto, visível na maior parte dos estabelecimentos e lojas de "souvenirs", desde os artefactos mais simples aos mais elaborados (canecas, cachecóis, t-shirts, porta-chaves, estatuetas, bustos, reproduções do mausoléu...).
Porque era sábado e a "siesta" é sagrada, tivemos de aguardar pelas cinco da tarde, para visitar a Casa-Museu, ex-libris da "ruta Camarón". Trata-se de uma casa renovada, construída sobre as ruínas do pátio, onde a família do cantor viveu com mais seis famílias, em divisões minúsculas, dispondo apenas de uma cozinha e lavabos comuns, num dos bairros mais pobres da cidade. Acontece que a casa estava fechada (!?). No posto de turismo da cidade, uma simpática funcionária, informou-nos que, com a crise, o "ayuntamento" não tinha dinheiro para destacar uma pessoa a tempo-inteiro para a função, pelo que o Museu só abria em dias de festa ou nos meses de Verão, durante os festivais de Flamenco. Depois de nos contar a história da família do cantor, cujos descendentes continuam a habitar a cidade, aconselhou-nos a visitar a igreja matriz, um austero local de culto, onde, de acordo com a "lenda", o cantor ia rezar junto do nazareno vestido de roxo à esquerda da porta principal. Lá fomos, não sem antes termos preenchido o livro de reclamações do posto de turismo, na esperança de poder visitar a Casa-Museu numa próxima excursão a bela cidade de S. Fernando.
A recompensa surgiria em Sevilha, dois dias mais tarde, quando assistimos ao documentário "Camarón: flamenco y revolución", uma longa-metragem de Alexis Morante, com guião de Raúl Santos, narrada por Juan Diego, conhecido actor sevilhano. O filme, realizado em 2017, foi este ano apresentado no festival de Málaga, tendo aí recebido os maiores elogios. Nele se conta a atribulada e fascinante vida do cantor, da qual não são omitidos os aspectos mais dramáticos (dependência de drogas e a ruptura com Paco de Lucia), num estilo moderno e inovador, onde o "flash-back" e as sequências de animação, alternam com imagens de arquivo, nem sempre em ordem cronológica, mas certamente fiéis ao homem que foi El Camarón, por muitos considerado o maior "cantaor" da história do Flamenco.     
(continua)