2007/05/04
Câmara Obscura
O folhetim da Câmara Municipal de Lisboa tornou-se a nova novela da política portuguesa. Na boa tradição dos seriados brasileiros, fica sempre algo por esclarecer de episódio para episódio. Há que manter o "suspense", para prender o espectador aos telejornais. Estes, como sabemos, podem ser diários, de hora a hora ou (se a notícia assim o exige) de "última hora". Qual será o desfecho, amanhã? Teremos novo anúncio de Carmona, agora demitindo-se de vez? Ou teremos mais manifestações de solidariedade para com um presidente que perdeu a confiança política do partido que o apoiou? Haverá eleições? Daqui a quarenta ou a sessenta dias? Quem são os candidatos? Os mesmos de sempre, ou outros, "independentes" e "novinhos" em folha? Perguntas cruciais, como se percebe, agora que alguns dos casos mais mediáticos dos últimos meses vão perdendo a actualidade. Já que não há "notícias boas", ao menos que haja "más notícias". Infelizmente, a questão da CML não se reduz a Carmona ser pouco hábil ou não. Já toda a gente percebeu que não é. Será, quanto muito, um homem sério e um bom engenheiro, o que já não é pouco. Mas, a questão principal, não reside no homem. Vem de longe e tem fama como o célebre "brandy". Há quantos anos é que Lisboa não é bem governada? Esta é a questão e por alguma razão o passivo da Câmara ultrapassa hoje o milhão de euros... Também por isso (mas não só) os partidos da oposição não desejam eleições. Eles sabem (melhor o PS e o PCP) que o problema não é o actual presidente da Câmara. Ele é apenas a face de um "sistema" que elimina liminarmente todos aqueles que não jogam a seu favor. Que os lisboetas sejam também utilizados neste jogo sujo, é deplorável. Que mais iremos ouvir nos próximos dias? A seguir com atenção, como todas as novelas...
2007/05/03
Campeonato Nacional da Língua Portuguesa (CNLP) e barbaridades
O CNLP é uma organização lúdico-cultural que se inspira numa boa causa e apresenta inegáveis méritos. Porém, não podem nem devem ser escamoteados os aspectos negativos que tem revelado e que haverá todo o interesse em eliminar em futuras edições. Por exemplo : 1 . O carácter altamente polémico do critério de correcção de algumas questões dos testes de qualificação. 2. A existência de erros de português na redacção do articulado do próprio regulamento do concurso. Estes foram entretanto corrigidos na quase totalidade, após alerta lançado por alguns concorrentes. 3 . As falhas, silabadas, erros cometidos na última fase da final - a das perguntas-respostas orais - por parte da apresentadora (cuja telegenia e esforço de bem fazer as coisas são inquestionáveis, mas insuficientes). 4 . Questionários também eles inquinados e, por conseguinte, geradores de confusão para os concorrentes, agravando assim as derrapagens da apresentadora. Ora, tudo isto denota uma certa superficialidade na elaboração das provas e no respectivo controlo, que não se coaduna com a pomposidade de que esta competição faz alarde. Onde acaba o desleixo e começa a incompetência ? Quero agora referir tão-só dois exemplos, entre vários outros significativos, que se impõem por escandalosos e, creio, com influência no resultado final do recente CNLP : 1.º Foi perguntado a um dos concorrentes seniores qual a função sintáctica de "amor eterno" na frase "os namorados (ou os apaixonados) prometeram-se amor eterno". O concorrente respondeu, e bem, "complemento directo", mas a resposta considerada correcta era..."complemento indirecto"(!). 2.º A concorrente sénior vencedora respondeu erradamente a uma das últimas perguntas. O termo era "inconsútil", que significa "sem costuras". Pois bem, quer a resposta dada quer a "oficial" apontaram para "sem consumo"(!). É, pois, de todo desejável que esta competição não se deixe subjugar por vícios decorrentes do seu formato demasiado tributário da lógica mediática imperante - a da espectacularidade , com os seus corolários de frivolidade e laxismo -, em prejuízo do rigor e da profundidade que a matéria em causa merece e exige.
2007/04/30
Um quadradinho de verde na aldeia de Telheiras

Dinamizadora desse grupo (segundo outros intervenientes na sessão de lançamento, nunca a ART teve tanto dinamismo como quando ela foi sua presidente), a autora, sendo socióloga, foi levada a interessar-se também pelo «significado sociológico do caso e a agir como investigadora».
O «objectivo de estudo que deu origem a este livro» foi «perceber de que forma uma acção colectiva, baseada num entendimento partilhado sobre o uso de uma parcela de território de um bairro -- no caso concreto, o bairro de Telheiras, em Lisboa -- pode ser entendida como uma aprendizagem ambiental».
Este livro situa-se definitivamente de fora da mainstream das cabeças pensantes e dos opinion makers, a qual se pauta pela realpolitik: «É no quadro de uma teoria da acção e do sujeito permitindo a utopia pragmática, o realismo utópico, que este trabalho académico se filia». "Fora de moda", como se vê, o que interessa a Ana Contumélias é saber «em que medida vivências ligadas ao território geram e activam identidades colectivas locais (...) resultantes do sentido de pertença, construídas através da apropriação quotidiana da cidade, do bairro, da praça ou do jardim». Há a consciência de que estamos «num tempo em que aprendemos a desconfiar das Grandes Utopias (...) mas se pressente que os espaços locais podem ser o lugar certo para o germinar das pequenas, mas mobilizadoras utopias».
A utopia confrontou-se com a realidade dos poderes e da burocracia. Tenho a convicção de que um dia «a noção de humanidade como um todo ganhará nova acuidade e sentido» e «o civismo tornar-se-á fundamentalmente um civismo ecológico»; mas eu vou esperar sentado, para não me cansar muito. É que estou convencido de que gestos como estes estão bem à frente do seu tempo.
Os habitantes mais antigos de Telheiras ainda dizem "vou a Lisboa", quando se deslocam ao centro da cidade e as dezenas de pessoas que se inscreveram como desejando ser jardineiros/horticultores ainda lá moram, em Telheiras.
Também ainda lá está, sem que a comunidade o utilize, o quadradinho verde, terreno passível de ser utilizado pelos "jardineiros/moradores de Telheiras". Surpresa seria se um dia eles ganhassem o direito de ali fazer hortas. A lógica de desenvolvimento da cidade é a do negócio imobiliário que não se compadece com utopias.
No entanto, como dizia Sartre em Maio de 1968 e Ana cita, é preciso "alargar o campo do possível"; estas acções, se outro efeito não tiverem, terão certamente o da experiência de intervenção cívica que conferem aos intervenientes.
Um dia iremos acordar ajoujados ao peso de uma cidade inumana em que nos habituámos a viver, e vamos querer vizinhos, e amigos, e fruição, e convívio; e exigiremos intervalos na sucessão de prédios para podermos cultivar as nossas hortas. Só nessa altura estaremos à altura de ser verdadeiros jardineiros ou horticultores.
A parte mesmo boa deste caso é o conforto que podemos retirar de saber que ainda existem pessoas como Ana Contumélias; pessoas com quem o futuro é possível.
Um quadradinho de verde na aldeia de Telheiras, de Ana Contumélias, Plátano Editora
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