2020/04/03

Duas semanas noutra cidade (6): Todavia, vivos...


Hoje, acordámos, com uma notícia previsível: de acordo com o "site" da OMG que monitoriza o "coronavírus" a nível mundial, o número de infectados, ultrapassou o primeiro milhão. Mais exactamente, 1.030.570 pessoas, das quais 54.226 falecidas.
Em Espanha, onde me encontro, o número de infectados era, esta manhã, 117.710 e, o número de mortes, 10.935. Em termos absolutos, a Espanha é já o segundo país com mais infectados a nível mundial e, em termos relativos, o primeiro país, com um total de 2350 infectados por milhão de habitantes.
Números terríveis, que entram diariamente pela rádio e tv dentro, em contínuos boletins emitidos pelo Ministério Nacional de Saúde, a partir da "task force" criada para esta pandemia, instalada no palácio de Moncloa em Madrid.
A Andaluzia, registrava 7.374 infectados e 408 mortos, um número relativamente baixo, quando comparado com as regiões mais infectadas (Madrid, Catalunha e País Vasco).
Em Sevilha, o hospital "Virgen del Rocío", criou dois circuitos paralelos de detecção e tratamento de potenciais doentes, onde estes são testados e internados. Comparativamente a Madrid, onde o número de mortes em lares de idosos ultrapassou as 3000 pessoas (infectados incluídos), a cidade de Sevilha também registava um número relativamente baixo: 57 falecidos. As agências funerárias não têm capacidade para responder atempadamente a esta calamidade e muitos corpos, tiveram de permanecer em morgues, antes de serem incinerados. Dadas as medidas sanitárias impostas, muitas pessoas não conseguem sequer despedir-se dos seus familiares. Um filme de terror, que fez manchete na comunicação internacional. Acresce, que a maioria dos "lares" são residências privadas, que não dispõem de equipas médicas permanentes, o que dificulta a detecção (e testes) dos residentes infectados.
Perante a situação, o governo já anunciou o prolongamento do estado de excepção, que durará até ao dia 26 de Abril. Entretanto, a polícia aumentou as medidas de coacção e, nos transportes públicos de Sevilha, passou a controlar os passageiros para avaliar da necessidade da sua deslocação. Quem não consegue justificar a viagem, pode ser obrigado a sair ou a pagar uma multa. A desobediência, pode custar entre 200 e 20.000 euros, no caso de automobilistas que infrinjam a lei.
Nem tudo é mau, no entanto. Diariamente, pelas 20h, milhões de cidadãos do país, continuam a assomar à janela, para agradecer aos profissionais de saúde que enfrentam esta luta sem desfalecer. Uma homenagem que, ontem, graças à temperatura amena de Sevilha, se prolongou no tempo. Após o ritual das palmas, os moradores permaneceram nas janelas e em açoteias vizinhas, onde aproveitaram para pôr a "conversa em dia", muitos deles pela primeira vez entre si. Não faltam críticas aos governantes, pois sempre há algo mau nos hospitais, nas farmácias ou nos supermercados. Habituados à sociedade de consumo, os espanhóis (como os europeus em geral) lamentam-se das "carências" e, o que é pior, temem pela sua existência, agora mais frágil. Um bom teste de sobrevivência e resiliência, quando comparado com a situação (essa sim, deplorável) dos refugiados, amontoados em campos gregos, italianos e líbios. É de esperar que este período de austeridade e confinamento traga, a todos, mais humanidade e solidariedade em tempos de crise.
Solidariedade tem sido, de resto, uma das palavras mais inflacionada por estes dias. Depois das reservas mostradas pelos chamados países do "bloco do marco" (Holanda, Alemanha, Austria e Finlândia) em apoiar a criação de um fundo europeu especial para esta crise (os chamados "coronabonds") seguiram-se as infelizes declarações do ministro holandês das finanças, que só vieram piorar as coisas. A reacção crítica e de repúdio por parte de António Costa, no que foi apoiado pelos restantes países do Sul, seria transcrita nos principais orgãos de informação europeus, como o El País, Le Monde, The Guardian, NRC, De Volkskrant, HP/Tijd (estes três últimos, holandeses).
No Público, a articulista Teresa de Sousa, especialista em assuntos europeus, resumiu bem a situação, num artigo intitulado "Se o Sul se afundar, o Norte opulento deixará de existir":
"Já não é apenas um caso entre António Costa e Mark Rutte e o seu ministro das Finanças. Nem apenas um caso entre Países-Baixos de um lado, e a Itália e a Espanha, os dois países europeus mais brutalmente fustigados pela pandemia, do outro. De repente, os Países-Baixos transformaram-se no lugar geométrico de prova de vida a que a Europa e as suas democracias, estão a ser sujeitas neste exacto momento da História. O debate interno ameaça a coligação de governo (holandês n.r.). A pandemia aproxima o sistema de saúde da ruptura".
As críticas europeias, acabariam por fazer "mossa" na frente germânica, que se apressou a "emendar a mão". Já esta semana, Mark Rutte (primeiro-ministro holandês) veio declarar que não tinha sido muito "diplomático" (a expressão é "bot", em neerlandês) e, ontem mesmo, Von der Leyen (presidente alemã da Comissão Europeia) reafirmou o apoio da Europa à Itália, anunciando um crédito sem limites ao país mais fustigado por esta crise. Algo é algo.

P.S. Recebemos um mail da "COVID19", uma linha de apoio, aberta pelo MNE, para portugueses impedidos de regressar ao país. Pedem desculpa pelo atraso na resposta e perguntam se ainda necessitamos de ajuda (?). Vale mais tarde, que nunca. Claro que necessitamos de ajuda. Ainda estamos vivos...

(continua) 

2020/03/30

Duas semanas noutra cidade (5): "Confinamiento", Vírus e outras mortes

foto ABC Sevilla
A Espanha, entrou hoje no segundo período de "confinamiento". Até ao próximo dia 11 de Abril, na melhor das hipóteses, continuaremos "todos" em casa. Todos, é como quem diz. Diariamente, podem ser vistas pessoas na rua, fazendo compras ou, simplesmente, passeando os cães. Há cães que nunca devem ter saído tanto, tal o número de vizinhos a passear a trela...
As ruas de Sevilha, habitualmente fervilhantes de alegria, transformaram-se em tristes "calles", cujos únicos meios de transporte são, agora, os autocarros (vazios), os táxis e as ambulâncias. Nas principais vias de La Macarena, o bairro onde me encontro, há unidades para-médicas e carros de polícia em permanente estado de alerta. No centro (em redor da Plaza de Armas) o exército está de prevenção e colocou diversos blindados em pontos estratégicos, junto ao rio, para dissuadir os mais afoitos que por lá costumam passear.
Celebrações tradicionais, como a "Semana Santa" e a "Feira de Sevilha", atracções turísticas que, anualmente trazem milhares de forasteiros à cidade, foram este ano canceladas, com consequências que se prevêem desastrosas para a economia local.
Ainda que a Andaluzia, em termos relativos, mantenha uma baixa taxa de infectados quando comparada com as regiões de Madrid, País Vasco e Catalunha (as mais afectadas), os números não mentem. A Espanha passou a ser o 3º país com mais infectados a nível mundial (85.195) e o 4º país em número de mortes (7.340). Os dados são da OMS e podem ser consultados através da aplicação "worldometer". Uma catástrofe humanitária sem precedentes, a maior no país desde a 2ª guerra mundial.
Como em todo o lado, o oportunismo aproveita-se da crise. Os partidos mais à direita (PP e VOX) continuam a criticar o governo e a clamar por mais meios sanitários, ignorando deliberadamente a contenção de gastos e a privatização da saúde nos governos de Rajoy que, na eminente falência de La Caja, teve de pedir um resgate de 100.000 milhões de euros para salvar a banca (um dos maiores resgates na UE). Rajoy, acabaria por ser demitido, devido a uma moção de censura do Parlamento, tantos eram os casos de corrupção em que o PP estava envolvido. Na província foram, entretanto, reportados os primeiros casos de assaltos a moradias isoladas, por supostos agentes sanitários que se apresentaram aos moradores para inspeccionar as suas casas. Uma nota positiva: devido à diminuição do tráfico, a poluição ambiental, nas regiões mais industrializadas, caiu drasticamente. Nas ruas de Madrid, foram avistados os primeiros pavões e javalis, a passear à noite...
Nem todas as mortes, no entanto, são uma consequência do vírus. Outras mortes, por causas diferentes, vão chegando ao nosso conhecimento, através de amigos e da imprensa estrangeira. 
É o caso do cantor Pedro Barroso (1950-2020), pioneiro da "nova canção portuguesa" dos anos '60 (programa Zip-Zip) que tive o prazer de conhecer na Holanda. Lembro uma histórica intervenção em Nijmegen, organizada pelo grupo local de apoio à Reforma Agrária em 1976; uma curta digressão, que incluiu as cidades de Wageningen e Amsterdão em 1979; e, finalmente, em Amsterdão, onde voltaria a actuar em 1980, naquela que foi a sua última visita como cantor. Viria a reencontrá-lo em Lisboa, há dois anos atrás, durante um evento dedicado à cidadania, no páteo do Liceu Camões, liceu que ele frequentou em jovem. Estava já doente, afectado pela doença que viria a vitimá-lo este mês. A nossa amizade, apesar da distância física e temporal, manter-se-ia até final.
Da Holanda, chegam-me notícias de personalidades que acompanhei de perto e com quem me cruzei, durante a minha longa estada em Amsterdão. Registo quatro nomes importantes:
O político Harry van der Berg (1942-2020), deputado e ministro do PVDA (social-democrata), célebre por ter apoiado a causa dos refugiados e transportado diversas malas com milhares de escudos para Portugal (supostamente enviadas por Willy Brandt para ajudar Mário Soares na sua "cruzada" contra o comunismo). Mais tarde, veio a saber-se que o dinheiro era enviado pela CIA, que utilizava o deputado holandês, dado que este era detentor de um passaporte diplomático, o que não levantava suspeitas. O episódio, referido em todas as necrologias, já era conhecido há muito e está descrito, em detalhe, no livro "Contos Proíbidos: memórias de um PS desconhecido" de Rui Mateus, publicado pela editora D. Quixote, em 1996. O livro, que esgotou num ápice, nunca mais seria reeditado.  Vá lá saber-se porquê...
Outro personagem marcante, foi o professor Goudsblom (1932-2020) emérito sociólogo e conselheiro do governo holandês para questões sociais, que tive o privilégio de ter como docente na Universidade de Amsterdão, onde leccionava na década de setenta. Dos seus colégios, guardo a imagem do grande auditório da faculdade, repleto de "caloiros", que o escutavam religiosamente, enquanto nos iniciava nas ideias de Marx, Weber, Comte e Durkheim.
Da área da cultura, destaco a cantora Liesbeth List (1941-2020), representante da canção ligeira de qualidade, a solo e em duo, com Ramses Schaffy, o seu "partner" preferido. Cantou Teodorakis em holandês, à època preso pela junta militar grega. Relembro uma histórica actuação, num "meeting" de solidariedade com o povo grego, organizado no Hotel Kranapolsky em Amsterdão, no início dos anos setenta, onde seria a estrela da noite.
Destaque, ainda, para o jornalista Peter van Bueren (1942-2020), figura central da critica cinematográfica holandesa, durante mais de 40 anos, primeiro no diário de "De Tijd" e, mais tarde, no "De Volkskrant", onde terminaria a sua carreira em 2002. No mesmo ano, ser-lhe-ia atribuido o "Lifetime Film Achievement" pela sua contribuição para o cinema, durante o Internacional FilmFestival de Roterdão que eu, à época, acompanhava como colaborador do DN. O Peter morava no mesmo bairro de Amsterdão e encontrávamo-nos, frequentemente, no mercado da Ten Katestraat. Tinha um conhecimento enciclopédico e um humor cáustico, muito holandês, que nem sempre era apreciado por todos os colegas de profissão.  
Em Espanha, registo dois falecimentos de figuras públicas, na última semana:
A artista italiana Lucia Bosè (1931-2020), popularizada durante os anos do neo-realismo e cuja carreira se dividiu entre Itália e Espanha, onde vivia. No dia da sua morte, a televisão espanhola prestou-lhe homenagem, com a projecção do clássico "A Morte de um Ciclista", de Juan António Bardem" (1955), onde desempenha o principal papel.
Finalmente, a morte do activista Chato Galante (1948-2020), preso político durante o regime franquista e membro da "Asociación de Presos y Represaliados por La Ditadura Franquista". Era igualmente activista na ARMH (Asociación para la Recuperación de la Memoria Histórica). Vimo-lo recentemente na película "El Silencio de Otros" (prémio Goya 2019), documentário impressionante sobre o trabalho de exumação dos corpos fuzilados e enterrados em valas comuns, durante a guerra civil e durante a ditadura franquista. São mais de 115.000.   
A semana não terminaria, sem mais uma notícia alarmante, ainda que provável: o director do Centro de Coordenação de Alerta e Emergência, Dr. Fernando Simón, porta-voz do governo espanhol para a epidemia do Covid19, contraíu a infecção e encontra-se confinado em casa.  

(continua)