2008/07/04

A realidade já não é o que era dantes

Já não é importante a "mensagem", quando se escreve. Pode contar-se uma simples história que aconteceu, ou que se imaginou que aconteceu. A história pode até nem ser "completa". Pode contar-se apenas uma fracção do acontecimento, como se só se tivesse assistido a essa parte e não se soubesse como a coisa se desenvolveu depois. Deixa-se isso à avaliação -- à imaginação -- do leitor. Como certas fotografias que, ao registarem apenas fracções de uma realidade, podem ser "vistas" de várias maneiras.
A fotografia é sempre uma ilusão. Nesse caso a ilusão é, pois, dupla. Ou múltipla; porque hoje em dia há a possibilidade de colher uma fotografia digital. Esta não passa de um enorme conjunto de informação (tanto maior quanto a capacidade de armazenamento de dados da máquina, isto é, a sua sofisticação) que pode ser trabalhada à medida do querer do fotógrafo. Eu pego em todos os píxeis que têm a informação de um determinado tipo de vermelho e mudo-lhe as características para, por exemplo, o avivar, ou mudar a sua cor.
A reprodução da realidade já não é o que era; a tecnologia tem um papel cada vez mais importante. E, como a realidade é também informada (portanto modificada) pela realidade reproduzida, hoje já não se sabe bem o que é a realidade.
Isto prende-se com a velha questão de que quanto mais uma pessoa sabe, mais tem consciência do que lhe falta saber. Porque lhe vão aparecendo novos temas, novas dúvidas, novos caminhos possíveis do saber. Mandaram-me há pouco tempo um power point que dizia que as profissões que irão ter mais procura dentro de poucos anos ainda nem sequer foram criadas.
Lembro-me de um texto de André Bazin que contava a seguinte história: Uns missionários foram, certa vez, projectar um filme numa aldeia muito primitiva de África. Os locais viram o filme atentamente e, quando depois lhes perguntaram do que tinham gostado, eles disseram que foi da galinha branca. Os missionários não tinham qualquer memória de no filme existir uma galinha branca e não deram por ela, mesmo depois de reverem o filme. Tiveram de o passar plano a plano na moviola para se aperceberem de que, sem que tal tivesse minimamente a ver com a acção, em determinada cena havia uma galinha branca que cruzava um canto da imagem. Fora esse acontecimento circunstancial e não a história que o filme contava, o que os sensibilizara. Acontecimento esse completamente casual e involuntário do ponto de vista de quem realizou o filme, já para não falar dos objectivos de quem o projectava.
É a isto que dantes se chamava "diferentes níveis de leitura".
Vem isto a propósito da minha ambição de contar histórias simples, daquelas que acontecem no dia a dia das pessoas. Histórias para toda a gente poder reconhecer; na medida da respectiva experiência e do seu saber anterior, claro. Não é nada fácil, garanto.

2008/07/01

O Modelo Europeu

No dia em que a França inicia a presidência da Europa a 27, o primeiro-ministro polaco veio anunciar que não assinará o Tratado de Lisboa, por este ter perdido qualquer sentido após o "não" irlandês. Esta era a notícia que Sarkozy dispensava. Logo agora, quando o presidente francês está em queda de popularidade acelerada e necessitava do Tratado para salvar a imagem de um país que, recorde-se, há três anos tinha dito "não" a Nice. Porque uma má notícia nunca vem só (Lei de Murphy) é bem possível que a República Checa siga o exemplo da Polónia. E vão três...
Bom, perante isto, que fazer (perguntar-se-ão a esta hora os eurocratas de Bruxelas)?
Aparentemente, sem saber ainda a resposta polaca, o inefável Sarkozy avançava ontem na TV5 com uma (im)provável solução para a crise europeia: "se há 1 "não" e 19 "sim", então o projecto Europa deve continuar com os 27 de Nice".
Ou seja, uma Europa a duas velocidades. Como a França e a Alemanha sempre quiseram, de resto.
Ou seja, quando o modelo não se adapta à realidade, adapta-se a realidade ao modelo. Estão a perceber?