2020/09/13

Cucú...

Há várias palavras que me vêm à mente quando penso no recente episódio do apoio do Primeiro Ministro António Costa à candidatura do presidente de um clube de futebol. Nenhuma delas é simpática. Fiquemos por três das mais benignas: vergonha, irresponsabilidade e traição. 
Quando António Costa se candidatou ao cargo de Secretário Geral do seu partido fui um dos que passou por todo aquele processo de inscrição no PS para poder votar nas eleições abertas que o conduziram a esse cargo. Não sou dessa área política e nunca estive militantemente envolvido nela. Tenho, aliás, as mais sérias reservas em relação ao PS. Mas o trauma causado pelo Coelho et al era imenso e numa perspectiva democrática e de esquerda, o PS parece ser um partido que tem um papel importante a desempenhar. Entendi então — eu e, pelo que sei, muita gente como eu — que a unidade de esquerda é um valor absolutamente vital e que, nesse contexto, Costa parecia a pessoa indicada para a promover. Aquele primeiro mandato correu inegavelmente bem. A fasquia também não estava muito alta, é certo, tal foi o descalabro do governo anterior. Mas mesmo com a fasquia baixa haveria sempre a possibilidade de passar por baixo, o que não foi o caso. Este segundo mandato começou mal. A pandemia veio pôr a capacidade do governo e da oposição à prova. Se é certo que a oposição foi igual a si própria, ie, um desastre, do PS esperar-se-ia muito mais. A oportunidade oferecida pela crise para criar condições de reequilíbrio e retoma foi vergonhosamente desperdiçada. Nem a pseudo indignação perante as atitudes criminosas dos dirigentes de alguns países europeus nem a bravata da "bazuca" podem esconder a falta de golpe de asa, a submissão aos grandes interesses e a condescendência para com as forças que teimam em conduzir o mundo para o cataclismo final. O governo PS tem sido um desastre que se tem, a pouco e pouco, aproximado daquele partido que nos habituámos a ver envolvido com a direita, no regabofe a que eufemisticamente se chamou de "arco da governação." A reaproximação de algumas figuras particularmente sinistras do PS, a que ultimamente temos assistido e as públicas provas de dissensão interna vêm provar que a deriva era real e não uma fantasia. Não era, afinal, fruto de uma qualquer teoria da conspiração mal enjorcada. A provocação insuportável feita agora aos partidos da coligação informal de esquerda, que foi feita a propósito do OE, não é uma tentativa de estabelecer um compromisso realista, é uma chantagem miserável, mais um episódio naquele processo de meter o socialismo na gaveta, que infelizmente parece ter dado novamente à Costa... Passámos da terceira via para a via Vieira. Uma vergonha tudo isto, portanto, em nome do chuto na bola... 

Mais do que o exercício de um direito que assistiria a Costa, como cidadão, não fosse ele Primeiro Ministro, esta inclusão na "comissão de honra" de um candidato à direcção de uma agremiação do chuto na bola cava um fosso brutal na sociedade portuguesa. A "futebolização" do processo político é um erro trágico. O futebol tem peso, é certo, mas terá efeitos em todas as direcções. Afasta os adeptos dos outros clubes e não é sequer unânime dentro do seu clube. Tudo isto seria mau em qualquer altura, porque a responsabilidade sagrada de um dirigente político é construir a unidade do povo que serve e contribuir para a preservar. Mas num momento como este, essa responsabilidade é ainda maior, porque o que ele está a pedir repetidamente aos portugueses é que não se esqueçam disso. Só juntos vamos conseguir ultrapassar a "crise," ouvimos dizê-lo até à exaustão. Perdeu agora toda a autoridade para o fazer e colocou com isso o povo que serve numa situação de risco. Ele é o chefe de um executivo que tem responsabilidades na condução de uma política que por mais bem gizada que estivesse tecnicamente (e aí também há inúmeras razões de queixa,) necessitaria sempre de uma coesão total do país para ter sucesso. Imagine-se o que é um tipo qualquer de outro clube se recusar a usar máscara ou, infectado, a obedecer a uma imposição de quarentena porque o Costa é "lampião"... O pior que nos poderia acontecer era entramos em autogestão. Mas as portas estão escancaradas para que isso aconteça. Uma irresponsabilidade, portanto, em nome do chuto na bola... 

Quando fomos fazer aquela inscrição no PS para conduzir António Costa ao cargo de Primeiro Ministro, fizemo-lo em prol da ideia de Democracia e numa perspectiva de esquerda. Democracia e esquerda! O contrato era este: preservar os princípios da Democracia numa perspectiva de esquerda, assente em ideais de esquerda, humanistas e de solidariedade social. Esta atitude do Primeiro Ministro põe em causa este combate e fere o nosso contrato. O futebol é um campo de divisão. Enfraquece, estupidamente, o combate ao criar condições para afastar dele os cidadãos, em vez de os congregar. E começa logo por afastar gente de outros clubes e, até muita gente dentro do seu clube, que não se identifica com o candidato que ele apoia. As consequências de tudo isto vão certamente ser desastrosas para o regime democrático, na perspectiva de um pensamento de esquerda. Não foi isto que nos levou a apoiá-lo. Trata-se, portanto, de um traição aquilo para que António Costa arrastou aqueles que atraiu em 2015. Em nome do chuto na bola... 

Tudo isto é tão bazaroco que a única explicação possível que encontro é esta: António Costa está cansado, farto do cargo, deve ter arranjado já um tacho qualquer numa dessas instituições internacionais, onde todos eles acabam, quer provocar eleições e pôr-se ao fresco. Poderá também estar a precipitar uma crise no próprio PS. Porque se é certo que o PS é necessário à Democracia, também é verdade que o PS é necessário... ao PS. Uma coisa é garantido: vai à vida dele. Outra coisa garantida: com o meu voto e o meu empenho, os Costas deste mundo não vão de certeza voltar ao poleiro.