2011/11/19

AL QUI MIA DE SI LA BAS

Como numa alquimia
As sílabas efervescendo do contacto que costuram
Que faz delas súbitas asas em corpo de palavras
Na pele e entre a página e a respiração
Assim é nas mãos pousar silêncios
Colhê-los com olhos abertos
Desenhar as frases longitudinalmente
Endireitá-las com uma faca de precisão em incisões invisíveis mágicas
Que não as firam às letras e não lhes amputem nem pernas nem acentos e cedilhas
Nem lhes ponham reticências que nas cabeças estão
Suspendê-las
No limite da página na vertigem
Ao encontro da sua própria respiração e latitude

Qualquer arremedo de ficção
Nasce do desencontro entre os ritmos cardíaco o silêncio e as teclas
Desencontro na impossibilidade da tensão harmónica
Que a tensão harmónica faz sono
E para que seria esta
Passa agora um peixe amarelo
Mas podia ser o insecto cor de violino do chileno célebre
Os dedos estão repletos do rasto de letras encavalitando-se à procura do seu sítio
Uma vogal na sombra de uma consoante
E a palavra desejo
A abrir para uns lábios
Ou para o sorriso de que fala Bolano em entrevista recente

Essas coisas ficam
Os sorrisos
E deles resta o que os nomeia
E uma certa percepção nervosa a aflorar à face das mãos
Esta coisa de sermos animais tácteis é mesmo mais que sermos racionais
Somos racionais até ao ponto de efervescência das letras na flor da pele
E de uma imagem que amarelece na memória e é diabo no inconsciente
Vagueando nele como o outro pela estrada fora
O inconsciente é sabido: tem as suas avenidas
Este diabo já avistado
Está como as fotos de Marte cada vez mais precisas e preciosas
Ou como outrora a Ásia para Colombo e a Guiné para o Cão
Tudo uma questão de medo
Medo do que se não vê nem conhece
Foi avistado mas dá-nos a volta ao miolo e o psiquiatra pescador
Não lá vai nem com a ciência nem com a conversa
É
Espécie de cauda de cascavel a circular nos sonhos fragmentários que vais sonhando com cada vez maior falta de nitidez e que de repente explodem de nitidez antes que disso tenhamos consciência e não estou a simplificar pois não é exactamente apenas um força mas também um destino que se procura
Que miopia afectará a luminosidade do cinema dos sonhos?
A página um laboratório mesmo
Nesta era digital
Mas ao surgir do papel imaginando-o
Todo o ritual regressa como era
E eis a alquimia da coisa

2011/11/17

A política dos três pilares em versão tuga

O ministro Gaspar, também conhecido por ministro das finanças, congratulou-se ontem, ufano, com a avaliação da troika sobre o cumprimento dos "três pilares do programa de ajustamento, designadamente, a evolução das finanças públicas, a estabilização do sistema financeiro e a concretização da agenda de transformação estrutural." Há uma metáfora sinistra nisto tudo.
Temos três pilares para uma ponte sem tabuleiro. Uma ponte que deliberadamente não une porque já caiu antes de abrir ao tráfego.
Os dois primeiros "pilares" resultam de problemas de contabilidade criativa, que deveriam levar à cadeia quem os provocou e lavrou os resultados em livro de caixa. O terceiro "pilar" é, recordemo-lo, eufemismo para a venda em saldo das participações do Estado em diversas empresas. A satisfação do ministro e os recados da troika deveriam indignar os portugueses.
No fim de tudo isto, e quando o ministro Gaspar der por concluida a sua missão de mero gestor da massa falida e a troika se for embora, deixando um derradeiro elogio sobre o cumprimento do "programa de ajustamento", ficaremos todos exactamente como estávamos antes, sem que se tenham operado quaisquer modificações de fundo que permitam encarar o futuro com outro optimismo. Pagámos para deixar o ministro Gaspar e a troika que o pariu todos contentes.
Tudo isto a troco de um sacrifício sem precedentes do grosso do povo Português. Financiámos os pilares, mas fica-nos a faltar o tabuleiro da ponte para que a possamos atravessar.
Quase que aposto que quando levarmos a sério o projecto de passar mesmo a ponte, o ministro Gaspar não vai ficar na nossa margem...

A Política de Espírito

Pode um Duque ser democrata? Pode, mas não era a mesma coisa...

2011/11/15

Sevilha é uma festa!

Está-se bem em Sevilha.
Não fora o extravio da bagagem, algures em Barajas, esta tinha sido a visita perfeita. Para tal muito contribuiu a disponibilidade da minha anfitriã sevilhana, Rosario Solano, uma "cantaora" de fados que, de há anos a esta parte, vem divulgando a arte fadista no país vizinho. Foi dela o primeiro concerto, subordinado ao título "Fados à Minha Maneira", apresentado num Centro Cultural da cidade, onde contou com o acompanhamento de dois músicos locais: Manolo Imán e Yorgos Karalis.
O dia seguinte seria preenchido com uma visita a Carmona, verdadeira "ex-libris" andaluz, onde as influências islâmicas, judaicas e cristãs, se cruzam ao longo das ruas e casas de um branco alvíssimo. Foi aqui que Francesco Rosi filmou, em 1984, alguns dos exteriores da "Carmen", com Plácido Domingo, naquela que é provavelmente a melhor adaptação cinematográfica da ópera de Bizet. O "parador" da cidade, construído em estilo árabe sobre as ruinas de uma antiga fortificação e vista para a planície imensa, é de cortar a respiração.
A segunda actuação desta curta, mas preenchida visita, seria dedicada ao Flamenco mais tradicional (cante jondo) num dos "tablaos" do bairro de Santa Cruz. Aqui actua regularmente La Choni (irmã de Rosario) uma das "bailaoras" mais promissoras da nova dança flamenca. Um programa rigoroso onde, ao longo de uma hora, passaram em revista os "palos" mais clássicos: "soleás", "seguiryas" e "bulerias", cantadas, dançadas e tocadas por três intérpretes de excepção.
Voltaríamos a ver Choni e Cia Flamenca, na noite seguinte, agora no Teatro Municipal de Palacios, um "pueblo" a 20 quilómetros de Sevilha, onde apresentou o seu mais recente espectáculo "La Gloria de mi Mare". Trata-se de uma peça multidisciplinar plena de humor e dramatismo, onde os quatro actores em cena, para além de teatro, cantam, tocam e dançam. "La Gloria..." ganhou recentemente o Prémio Escenarios de Sevilla 2011 para o melhor espectáculo de Teatro. Duas horas de prazer, onde a qualidade de todos os intérpretes é notável.
A noite não podia acabar sem uma visita a uma das "peñas" mais antigas de Andaluzia, descrita e filmada em diversas obras de referência flamenca. Por ela passaram nomes como D. António Chacon (primeira metade do século passado) e António Mairena, "cantaor" e teórico do Flamenco, cuja foto domina a sala central do edifício.
A visita à capital andaluza não terminaria sem um concerto seminal, na moderna sala do Teatro Central de Sevilha, construído na Cartuja para a Expo de 1992. Nela actuaram, na noite do último sábado, Dave Holland (contrabaixo) e Pepe Habichuela (guitarra flamenca), apoiados por três membros da família Carmona, entre os quais se destaca o guitarrista Josemi Carmona, filho de Pepe. O quinteto interpretou temas do albúm "Hands" e da obra mais conhecida de Habichuela, "Yerbaguena" de 2001. Flamenco-Jazz ao mais alto nível, numa hora e meia do mais puro gozo musical.
Era já noite alta, quando comemos as últimas "tapas" no bairro de Triana. Como dizia a canção, Sevilha tem mais encanto na hora da despedida. Que viva Sevilha!

(foto EuropaPress/Teatro Central)

2011/11/14

Sobre a evidência

Nada serve carregar a evidência do que a berra
Poderia ser um dito de Keuner
Esse Brecht desavindo com o outro
Empregado na História e por assim dizer tão oficial
Que acampou para a eternidade próximo da campa de Hegel
Se não me engano

Dela se servindo para nela inocular os valores do espectacular
Os videirinhos do drama e da média
Lambem o chantilly do seu salário
Somando sangue ao que é por si encalhado e vistoso
Para satisfazer os níveis de adrenalina sadomasoquista
Que o hiper-consumo de massas naturaliza e o patrão exige

Ao por si da evidência acrescentaram as pirotecnias softwerianas dos meios sofisticados
Da tecnologia ideológica na nossa vida pós moderna
As mediações que multiplicam
Gritante
A evidência na sua proliferação
Como também numa outra natureza diversa do que é
Enervando o que a excede das cores que retintas transbordam
De cromatismo falando e não de rios

A operação necessária é a inversa
A de lhe subtrair
O que nela é mais que ela
E a obscurece de hiper-evidente

As velhas contas do drama
Oitocentista
Fabricavam-se no proscénio
E nessa proximidade
A ruga da actriz
Punha mais drama que a própria intriga tecia
A costura na liga entusiasmava
De como que dizer
Permitir à costureira e ao empregado de escritório
—mesmo ao provinciano actor amador —
Entrar num Olimpo de pacotilha
Que viam como luxo sem limite de estrelas
O tropeçar na sílaba o sotaque arranhado
Tudo coisas que ao rés-do-chão de uma respiração comum
São mais do que a penúria e o desleixo:
Eis porque na tragédia se morria em bastidor
Prevalecendo a notícia à foto do caso
A voz que rugia mais que o esfacelado corpo martirizado
E quando este vinha era já sepulto e longe do acto

Estas estratégias
De deferimento do momento bárbaro
Na Tragédia
Só à inteligência devem o seu modo
E o caso é que quem as compunha
Das guerras tinha a experiência
E por certo da morte em directo
Dela correndo em pensamento quando com ela se deparassem na criação
Do mesmo modo Tucídides fala do Porto de Siracusa:
Um mar pejado de cadáveres
De tal modo
Que estes faziam um chão que o encobria

A luz que tudo torna visível
Não é a que abre os olhos abertos
A luz que torna visível
É a que se alia ao que a sombra pode de contornar
E é a que sabe que os negros de escuro são necessários a qualquer estratégia de clareza
Pausas são respirações e estas são cerebrais
E sendo neuronais são evidentemente cardíacas
E por isso misturando aquela harmonia de uma pitada de empatia
Com uma pitada de crítica d’olho analítico
E uns grafismos de raciocínio em sequência que pertencem à gramática do lance em jogo já que a cada objecto ou situação pertence a sua especificidade estética
Uma natureza morta mimética nada tem a ver com o infinito das janelas em sucessivas camadas de abstracção cosmopolita

Nenhuma evidência é mais trágica do que a do coelho que cede aos faróis que o ofuscam
Deixando a vida num ápice em pleno excesso de luz
Conclui-se não lhe vê a origem
Pois no caso o que luz seria móvel
Massa metálica ameaçando
Máquina de morte sobre quatro rodas
Nem a si se vê o láparo como alvo
Os olhos nos faróis em adeus final
Nem o fora vê nem o dentro acorda o instinto
Olhos na luz hipnotizado
O excesso pára e não esclarece

É este o modo trágico da evidência que é simulacro da clareza
Porque luz
Mas da clareza nada fica
E na retina se instala o que oposto do negro fero
É já menos que este
Pois este não come do mesmo modo o que escuta
A luz que cega é a mesma que ensurdece
E o ouvido na noite cerrada alcança o que no ultra-som alcança a baleia em outro oceano
Ao coelho nem as orelhas salvam dos faróis nem o famoso faro
Nem o futuro em cenoura

Essa candura de banda desenhada dos coelhos
Não pertence ao real
É um modo de tirar ao real
O que ele é
Pintando-o com as cores convenientes da moleza supostamente protectora de uma civilização de peluche
Nada mais útil e didáctico que as arestas

Nem a evidência é por si legível
Pois o por si evaporou-se
Desde logo após os primeiros talheres de sílex
E após a queda da evidência no seu relato
Se as formas de premeio não a refizessem
Ela manteria as qualidades que Vaz de Caminha naquela índia
Descobriu
Na beleza das partes vergonhosas
Expostas quando a lei ministrada de Deus as encobria
E das quais ou de quem não tirou os olhos
Até ao consumar da prosa
O que é evidente desividencia-se com a força do preconceito no corpo desnudo mais a marca do crime aberta luz na foto celebrizada pelo concurso
E seu punctum
Ferida aberta ao culto ritual da nossa impotência sensível

Pode o corpo encenar-se e dar-se a ver aos cordeiros
E abutres
Que do lado de lá do ecrã
Apascentam as suas neuroses
No sossego perturbado do fim da intimidade
Cercados de máquinas e imagens
Nós mesmos no exterior de qualquer hipótese de interior
Paisagens que são um oceano único galgando as margens de todas as singularidades
E empurrando-as para cotas historicamente inimagináveis de egocêntrico anonimato e ausência ruminada num dentro entre o calcinado e o mole
Jogando-nos peixes fora de água no seu caudal de coliformes fecais reluzente nas sucessivas horas de ponta

O corpo abandonado
Quem o ressuscita se apenas a Jesus calhou e não à estudante de treze anos
A quem nenhum terceiro dia acenou
Menos ainda a striper de dezanove
Exposta a sua singularidade num varão para ex Cinderelas
Sejam corpos ou o acidente nuclear
Por exemplo Fukushima ou as quatrocentas e trinta mulheres assassinadas em Ciudad Juarez
Sublinhá-lo de forma aristotélica
Nada clarifica

Que é do comércio da evidência sem o excesso que a torna escândalo
Dirão os mercados
E que é dele sem choque ou sangue ou excesso de luz e crueldades

Porque nada poupam à evidência
Os que dela se servem
Manobrando-a numa transparência suposta que cega
Eis a questão