2019/11/19

A culpa dos heróis é serem sempre poucos (José Mário Branco)


Hoje é um dia fodido.
Morreu um amigo e companheiro de longa data.
Dos chamados "insubstituíveis", ainda que saibamos que os cemitérios estão cheios de pessoas invulgares.
Já lá vão mais de 50 anos. Estávamos em 1968 e eu vivia há dois anos em Amesterdão, onde me tinha exilado, por recusar a guerra colonial. Naquela época, eram poucos os portugueses exilados na Holanda. A maior parte, colaborava com o Angola Comité, uma organização holandesa que apoiava os movimentos de libertação africanos e denunciava a guerra colonial. O Angola Comité pediu-nos ajuda na divulgação e organização de uma sessão sobre a guerra em África. Necessitavam de um português que cantasse umas canções de teor político. Os poucos cantores exilados, viviam todos em França e alguém (Isabel) lembrou-se de um amigo que tinha conhecido na faculdade. Chamava-se José Mário Branco e cantava em Paris. Contactámo-lo e ele aceitou o convite.
Lembro-me, como se fosse hoje, da sua primeira actuação. Foi na Aula Magna, da Universidade de Amesterdão, onde o Zé Mário, rouco de constipado, cantou "A Ronda do Soldadinho" que, só mais tarde seria gravada e distribuida, com a ajuda do Angola Comité. Uma epifania.
Acompanhei a sua fase de exílio à distância, ainda que fosse adquirindo todos os discos, entretanto editados, desde as "Cantigas d'Amigo" (1969), até ao seminal "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades" (1971), uma pedrada no "charco" da cinzenta música popular portuguesa, a que se seguiu "À Margem, de Certa Maneira" (1973).
Voltaria a encontrá-lo no pós-25 de Abril, já em Lisboa, primeiro no GAC, do qual foi co-fundador e, mais tarde, no grupo de teatro "A Comuna" onde, para além de actor, foi responsável pela música da peça "A Mãe", album que "comprei" através de um "crowdfunding". 
Em 1976, o Zé Mário voltaria a Amesterdão, para cantar no âmbito de uma "Semana Portuguesa", organizada pela comunidade local na Mozes en Aronkerk, uma igreja protestante, que apoiou durante anos a causa dos refugiados portugueses.
Seguiram-se gravações e actuações memoráveis que, por estes dias, serão lembradas em obituários de circunstância ("Ser Solidário/Solitário", "FMI", "A Noite", "Correspondências", "Ao Vivo em 1997", "Resistir é Vencer"...).  Em Amesterdão, onde eu continuava, era mais difícil vê-lo ao vivo, mas, sempre que havia oportunidade, lá o contactávamos para mais uma sessão. Aconteceu, pela terceira vez, em Dezembro de 1984, quando o convidámos para participar numa "festa natalícia" das associações portuguesas locais. Aproveitámos a sua passagem pela cidade para filmá-lo durante a actuação, onde gravámos a canção "Eu vim de longe", que viria a fazer parte da banda sonora de um filme que estávamos a fazer para a televisão holandesa.
Data de 1989, a sua última passagem pela Holanda. No âmbito de uma digressão organizada pelo "Círculo de Cultura Portuguesa", que abrangeu Amesterdão, Roterdão e Haia, voltaria a cantar, agora ao lado de Carlos do Carmo e António Pinho Vargas. Canções de sempre, tão actuais então como na época em foram escritas. Foi um privilégio ter produzido tais concertos.
Voltaríamos a entrevistá-lo, em 1993, na sua casa em Lisboa, para um documentário da VPRO, uma emissora de televisão holandesa. Dessa vez não cantou, mas falou de música, política e não só...
Anos mais tarde, após o meu regresso a Portugal, voltei a reencontrar o Zé Mário. Primeiro, no Teatro da Trindade, onde ele gravaria o celebrado duplo-album "Ao Vivo em 1997". Três sessões memoráveis, cujo ambiente está bem testemunhado na gravação. Outra, após um concerto para comemorar Abril, organizado no Coliseu dos Recreios (2008). Nessa noite, foi o último a cantar e esperou até às 3horas da madrugada para poder fazê-lo. No regresso, deu-me "boleia". Estava "mais morto que vivo", nas suas próprias palavras. Tinham-no feito esperar, mais de 6 horas, nos camarins do Coliseu...
A última vez que nos encontrámos, foi em Grândola onde, em Outubro de 2018, foi lançado o CD "Grândola (para sempre)", uma colectânea de versões internacionais da canção popularizada por José Afonso. O Zé Mário foi lá falar sobre a produção do "Cantigas do Maio" em Paris e das peripécias que envolveram a gravação da "Grândola". Uma aula.
Uma semana antes, tinha estado na Associação José Afonso, para falar do seu último CD, uma compilação de inéditos, gravados entre 1967-1999. Sala "à pinha", para ouvir histórias inéditas. Às tantas, alguém lhe perguntou quando é que voltava aos palcos. Ao que ele respondeu: "O que tinha para dizer, está nos discos. Comprem os discos e ouçam-nos". O homem insistiu: "É pá, há sempre motivos para cantar...", ao que o cantor retorquiu "Pois há, pá, mas eu não tenho paciência para concertos tipo missa, com isqueiros e telemóveis a acender e a apagar. Agora, não tenho assunto, mas, se fôr preciso, lá estarei de novo". O outro insistiu: "Mas, não tens mesmo assunto?". "Não, pá, o que é queres? Que eu suba para cima do palco e comece a cantar "não tenho assunto, não tenho assunto, não tenho assunto?...Não dá".
E agora?
Agora, não sei como terminar este texto. Acho que fui eu que fiquei sem assunto. Restam-me os discos e as memórias. Só posso estar agradecido. 
Obrigado, Zé Mário!