2020/03/21

Comunicar em tempo de pandemia


Vivemos uma situação sem precedentes a nível mundial. Não, não me refiro ao famigerado vírus. Vírus, como chapéus, há muitos e a situação terá, mais tarde ou mais cedo, uma solução. O que me preocupa é que o mundo (não é aqui Benavente, Portugal ou a Europa, é o Mundo!) está neste momento metido em casa. Quem não está em casa, imagino, serão os marginais das sociedades modernas, os nómadas, eremitas, desterrados, velhos, loucos ou insociáveis, mais ou menos tradicionais, que já não contavam, e continuam a não contar, para o jogo perverso da globalização. As ruas das cidades, pelo que se consegue ver, estão desertas. Aquela imagem dos animais contidos entre baias, nas grandes unidades pecuárias, segregados e imobilizados, somos agora nós.

Estamos, cada cidadão, cada contribuinte, cada indivíduo, cada família mononuclear, mais ou menos hip, confinados, em todo o mundo, ao espaço trancado das nossas casas, com os movimentos rigorosamente controlados. É por bem, dizem. Será, concedo. Mas esta situação tem os contornos e carrega um tremendo potencial de abuso, comparada com a qual distopias como o Big Brother ou High Chancellor Adam Sutler, do V for Vendetta, pareceriam meninos de coro a cantar "The hills are alive!"

Ora, neste altura, a única coisa que mantém os “globalizados” juntos são as as comunicações. Não foram os telemóveis, os tablets e os computadores e, assim isolados, estávamos agora todos mergulhados numa escuridão e numa ignorância mais profundas que na Idade das Trevas. Na situação actual, de confinamento e isolamento forçados, numa dimensão e em circunstâncias nunca antes vistas, qualquer luz que se acenda nesta escuridão tem unicamente como suporte estes sistemas de comunicação. Mais do que simples objecto de desejo, por vezes, abusivamente omnipresente, este é o fino fio que nos liga presentemente a todos. É por ele que escrevo e é por ele que me lêem. É ele que vai garantindo as liberdades e um verdadeiro, mas geralmente pouco valorizado, exercício da democracia. Vencer as barreiras da comunicação é hoje um poder que já só parcialmente se mantém nas mãos de elites. Hoje está nas mãos de todos nós, mesmo que o exerçamos por vezes de forma pouco competente e que desse imenso poder não nos demos verdadeira conta. Não são as visitas virtuais, as leituras, os passatempos, músicas e outros “entretenimentos” que nos propõem para preencher este vazio forçado, que nos manterão ligados à realidade, mas a possibilidade de exprimir os nossos sentimentos livremente, de nos reunirmos, e, nesta altura, a troca de informações, o contacto com família e amigos, a possibilidade — que a publicidade e algum uso inapropriado fazem, por vezes, parecer insuportavelmente banal — de estar presente à distância. O vírus manté-nos à distância, o tal fino fio vence-a.

Lembremos, contudo, a morte do mensageiro. Lembremos as bombas nos emissores. Hoje ela pode ser substituída por uma simples ordem para premir um botão virtual.

O direito à livre circulação de informação, o direito à reunião e a liberdade de comunicação continuam, neste quadro de excepção, tão importantes como o direito ao trabalho e a um sustento digno, face a uma eventual crise que o vírus desencadeie — crise, de resto, cujos contornos não nos estão a ser bem explicados, mas isso é outro assunto. O direito à livre expressão e à circulação de informação é tão básico e vital como o acesso à energia eléctrica ou à água.
As tentativas de atropelo já começaram, mas por enquanto ainda sabemos o que vai acontecendo e podemos transmiti-lo aos outros e reagir. Imagine-se se a transmissão é cortada.

Se ficarmos sem comunicações (e os estados de excepção, dêem-lhe o nome que derem, têm uma enorme tendência para resvalar nisso) seremos náufragos, isolados, perdidos num qualquer oceano, sem qualquer contacto e com o nosso poder de acção seriamente cerceado. De facto, sozinhos em casa, não saberemos o que se passa lá fora, sem o acesso à infraestrutura de comunicações. Hoje ainda sabemos o que nos contam, beneficiamos das  conclusões que disso podemos tirar, da discussão que disso podemos (ainda) ter, uns com os outros. Neste momento não há testemunhas oculares. Mas, se nos tiram essa capacidade de comunicar e de exercer o nosso inalienável direito de nos organizarmos (organizar É comunicar!) estamos liquidados.

Por muito que tentem pintar o quadro de outras cores, não estamos em guerra. Não há segredos a defender, pelo contrário! Não há tácticas e estratégias de guerra para implementar, não há espiões, não há gente fardada e armada a querer invadir-nos as fronteiras. Nesse sentido, a metáfora da guerra usada por alguns governantes, é totalmente despropositada. Há um vírus. Uma doença que a todos atinge. A guerra pretende aniquilar, destruir e silenciar. A doença precisa de cura para os atingidos. Aquilo que se espera e exige hoje, pois, é solidarieadade e transparência totais.

Vivemos num estado democrático. Temos por isso que velar para que a infraestrutura de comunicações esteja disponível, tal como os outros serviços e direitos essenciais, e o seu uso responsável seja garantido durante este período de excepção sanitária. Se necessário for, com a sua nacionalização temporária e disponibilização gratuita. Comunicar, em tempo de excepção, não é um jogo online, é uma prerrogativa, da qual não podemos, em qualquer circunstância, abrir mão e que tem de ser garantida pelo Governo que elegemos.

2020/03/18

Duas Semanas noutra Cidade: Teatro, Flamenco, Vírus e Confinamento


No âmbito de um programa de intercâmbio, firmado entre a Escuela Superior de Arte Dramático de Sevilla (ESAD) e o Teatro da Rainha (Caldas da Rainha), deslocou-se na passada semana, à capital andaluza, a companhia portuguesa que, este ano, comemora o seu 35º aniversário.
Do programa pré-estabelecido, a apresentação da peça "Planeta Vinil" para além da observação-participativa em aulas de representação e na construção de títeres por professores e alunos de Sevilha que, em data ainda por determinar, retribuirão a visita com a representação de uma peça criada para o efeito, para além de "workshops" de voz e títeres, propostos pelo corpo docente da Escola.     
Quatro dias de intenso convívio e animação, cujo ponto alto constituiu a apresentação da peça portuguesa, da autoria de Cecília Ferreira, representada pelos actores Cibele Maçãs, Mafalda Taveira, Fábio Costa e Nuno Machado. A encenação esteve a cargo de Fernando Mora Ramos e a sonoplastia a cargo de Lucas Keating e António Anunciação.
A peça, uma metáfora sobre o planeta e o perigo de extinção da vida animal, não podia ser mais actual, em tempo de alterações climáticas. Nas palavras da autora:
"Uma criança ruiva, um peixe-napoleão, um escaravelho e uma galinha poedeira, fogem da Extinção. Não sabem ao certo quem ela é, mas pelo tom grave com que todos pronunciam o seu nome, e cada vez com mais aperto, estão certos de que se trata de uma criatura monstruosa e assustadora, que está a aproximar-se deles com largas e demolidoras passadas. Os quatro não decidiram fugir juntos, foi o caminho que os juntou. E nem sempre foi fácil a sua convivência, mas seguiram, guiados pelos seus instintos e convicções, em direcção à Porta do Fundo do Mundo, que lhes permitirá aceder, acreditam, ao Avesso - aquele que está limpo da Extinção e de outros monstros que tais.
Todos parecem saber como chegar até lá, mas o tempo excede-se, elucida e confunde, e o percurso cresce e inquieta" (do programa).
Anfiteatro da escola cheio, para apreciar esta peça para todas as idades que, nas palavras do seu encenador, pode ser vista por espectadores dos 7 aos 77.
Excelentes, as interpretações, de todos os actores, dirigidos desta vez por Mora Ramos, um actor de volta ao papel de encenador.
A representação mereceu rasgados elogios, tanto dos alunos como dos docentes presentes, após a qual se seguiu um debate entre os actores e o público.
A visita a Sevilha, não terminaria sem uma passagem pela Casa de La Memoria, para mais uma sessão de Flamenco, a cargo do corpo dos artistas residentes, que garantem a qualidade da arte neste centro de excelência da cidade.

Como era inevitável, a pandemia existente dominou todas as conversas. A Espanha é, de resto, o segundo país europeu em números de casos detectados e o quarto a nível mundial. Os alarmes nos meios de comunicação social sucedem-se ao minuto e os números de infectados e de vítimas cresce exponencialmente. Também por esse motivo, os membros da companhia optaram por regressar mais cedo que o previsto.
Prevendo o pior, tentámos a habitual reserva num dos autocarros que fazem a ligação entre a cidade e  Faro. Debalde. Tinham sido cancelados e só havia lugares no último autcarro que saía à meia-noite de segunda para terça-feira.
A segunda hipótese seria alguém levar-me à fronteira de carro. Telefonámos para a Guardia Civil. Não era permitido o trânsito, à excepção de ambulâncias, carros da polícia ou de empresas e pessoas que trabalham em ambos os lados da fronteira. Multa para prevericadores: 600euros.
Terceira tentativa: o avião. Preços obscenos e horas de espera infinitas de "tranfers" em Madrid. Exemplo: a Ryanair (não por acaso, considerada a pior companhia "low-cost" nos "rankings" internacionais) oferecia voos directos e via Madrid, a partir de185euros. Uma mala no porão, 70euros. A escolha de lugar, em classe económica, 17 euros. Custos administrativos, pela operação bancária, 7 euros. Ou seja, na hipótese mais barata, com 4 horas de espera em Barajas, a módica quantia de 280 euros...  
Quarta tentativa: o "Blablacar". Para nossa surpresa, ainda funcionava. Escolhido o dia (terça 17) e paga a passagem, restava a confirmação. Confirmado na mesma noite, para as 15h, com 5 horas de viagem "nonstop" até Lisboa. Só que...algumas horas mais tarde, a viagem foi canceldada pelo operador, com os habituais pedidos de desculpa e a promessa de devolução do dinheiro.
Quinta tentativa: um autocarro para Lisboa. Ainda restava um lugar, no último autocarro antes de fechar a fronteira. Reserva feita, pela NET, restava o pagamento. Só podia ser efectuado, mediante a inscripção como aderente da empresa. Preenchido o formulário de viajante frequente, voltámos à página de reserva. Tarde demais: o último lugar tinha sido comprado!
Sexta tentativa: um voo alternativo. Uma obscura companhia de voos internos, em colaboração com a Ibéria, voava a partir de Jerez de La Frontera, para Lisboa via Madrid (3 horas no total). Preço 128euros. Melhor, era impossível. Reservado e comprado.
Entretanto, na televisão espanhola, assisto ao discurso do primeiro-ministro português, em deferido, anunciando o fecho das fronteiras. Duas horas depois, um email da Iberia a anunciar o cancelamento do voo. Devolverão o dinheiro, claro.
Em desespero de causa, consulto o "site" do Ministério de Negócios Estrangeiros. Como esperado,  noticia a abertura de uma "linha de apoio a portugueses no estrangeiro". Fornecem um número de telefone e um mail: Covid19@mne.pt. O telefone está permanente ocupado. O mail foi enviado.
Sexta tentativa: telefonema para o Consulado em Sevilha. Respondem que pouco podem fazer. Informam que, se eu conseguir chegar à fronteira, deixam-me entrar (era melhor!). Depois poderei pedir um táxi para me levar a V. R. Sto. António. Aguardam instruções de Lisboa.
Passaram mais de 36 horas. Esta manhã, telefonema do Consulado: se eu puder esperar, o Consulado está a organizar o regresso de autocarro para portugueses que se encontram em Espanha. Estão a tentar agrupá-los em Sevilha, dada a proximidade da fronteira. Necessitam de 20 pessoas, no mínimo, para justificar o aluguer de um autocarro. A viagem será garantida até Faro. Se eu quiser esperar...