2016/11/22

Aftermath (2)

Quinze dias passados sobre "a noite que abalou o Mundo", as notícias continuam pouco animadoras. Para quem pensava que a prática de Trump seria diferente da retórica eleitoral, as primeiras medidas anunciadas, prenunciam o pior. Nada que deva espantar. Só os incrédulos ou desatentos poderiam esperar um comportamento diferente deste representante do "establishment" americano que, através de um discurso básico e emocional (onde a explicação racional deu lugar à linguagem dos efeitos) procurou incutir no espírito dos americanos - desiludidos com o sistema - que a culpa desta situação era das "elites" que governavam o país. Como se Trump, o multimilionário que se orgulha de não cumprir a lei e de não pagar impostos, não fizesse, ele mesmo, parte do sistema que gera as "elites" que o beneficiam. Um demagogo, portanto.
Não por acaso, estados como Indiana, Montana, Ohio, Pensilvânia e Virgínia (o chamado "cinto da ferrugem") onde outrora existiram grandes indústrias, nomeadamente do aço e do carvão, votaram maioritariamente em Trump. Bastou o candidato acenar com a recuperação das siderurgias e das minas do carvão, para obter o voto de uma classe operária maioritariamente desempregada e desiludida com os efeitos da crise da globalização que a atingiu em cheio. Se esta promessa vai concretizar-se, já é mais duvidoso. O mesmo, relativamente aos grandes grupos de construção civil, muitos deles fazendo parte do seu próprio empório, a quem acenou com chorudos contratos para, segundo as suas próprias palavras, renovar as rodovias, as pontes e os caminhos de ferro decadentes. Um plano "Keynesiano", aparentemente ao arrepio de toda a lógica neoliberal, mas que rendeu apoios e votos das corporações interessadas. Que os impostos vão descer (resta saber, para quem?) já toda a gente percebeu: se ele não pagou impostos, por ser "esperto", algum benefício deve ter tido...Como o dinheiro não dá para tudo (sem impostos, ainda dá para menos), terá de haver cortes nalgum lado. O sistema de saúde pública, vulgo "Obamacare", será o primeiro a sentir os efeitos desta austeridade para os mais pobres. Depois, haverá o famigerado "muro" na fronteira mexicana, que Trump confirmou querer construir (ele é "bom nisso" disse à entrevistadora da CBS). Querer limitar a entrada de muçulmanos e não querer refugiados sírios, são outros pontos do seu programa. Os islamofóbicos agradecem e, por isso, deram-lhe o voto. Finalmente, a questão rácica, que lhe rendeu os votos dos brancos anglo-saxónicos e protestantes (WASP), muitos deles pertencentes à mesma "elite" que critica, e que são filiados em grupos tão obscuros com o Ku Klux Klan de má memória. As suas nomeações para o governo, vão desde um racista assumido para a pasta de secretário-geral dos assuntos de estado (na prática, o seu braço direito), até a um membro do Tea Party, a agremiação mais à direita do espectro político americano, para dirigir a CIA. O mesmo relativamente ao Juiz do Supremo Tribunal, um conservador da ala mais à direita do partido. As minorias vão enfrentar dias difíceis e 11 milhões de emigrantes ilegais (estimativa) podem ser, agora, alvo de perseguição e expulsão imediata. Na primeira conferência de imprensa alargada (cerca de 40 jornalistas convidados para um "briefing" informal) Trump criticou tudo e todos de forma violenta, em especial o representante da CNN, a quem acusou de manipular as notícias sobre a sua pessoa. Enfim, a lista é extensa e o homem ainda nem começou a governar. Imaginem, a partir de Janeiro...
Como chegámos aqui?
Muitas e variadas têm sido as opiniões sobre este resultado eleitoral, aparentemente imprevisível, mas não de todo improvável. Entre as análises lidas e escutadas por estes dias, escolhemos a do filósofo francês Alain Badiou que, no dia a seguir às eleições americanas, deu uma palestra na UCLA (Los Angeles) onde se encontrava como convidado. Badiou destaca quatro razões fundamentais para explicar a vitória de Trump e do populismo crescente nos EUA e na Europa. "1) A violência e  brutalidade do actual capitalismo desregulado, que aumentou as diferenças laborais e a exclusão social na maior parte dos países. 2) A decomposição das oligarquias políticas clássicas (partidos, sindicatos, organizações estatais) que deixaram de constituir referências para grande parte da população. 3) A frustração popular, causada por sentimentos de não-pertença a uma sociedade da qual foi descartada. 4) A ausência de estratégias alternativas, seja a nível ideológico-partidário, seja a nível de movimentos apartidários, que possam constituir modelos de referência para o futuro". Ou seja, estavam reunidos os elementos necessários para a chamada "tempestade perfeita".   
As ideias populistas (de direita) há muito que vêm ganhando terreno na Europa e a América não ficou imune a este fenómeno. O "brexit", no qual poucos britânicos acreditavam, foi apenas o primeiro aviso de que algo estava "podre" no Reino Unido. O surgimento do partido independentista, liderado por outro demagogo (Farage) acabaria por dividir os conservadores e contribuir para a vitória do "não". Também no Reino Unido, a elite ligada à finança, a maioria dos colarinhos azuis e dos rurais conservadores, votariam no "exit". Razões principais: recusa ao centralismo de Bruxelas, medo do futuro e xenofobia em relação aos estrangeiros que "ameaçam" os seus postos de trabalho. Paradoxalmente, a maioria dos votos "não", foi nas regiões rurais, onde a presença de emigrantes é minoritária (!?). Ao contrário, foi nas grandes cidades (Londres, Manchester, Liverpool, Birmingham), onde a multiculturalidade é maior, que o voto "sim" ganhou. Exactamente como nos EUA, onde os votos pró-Hillary, foram obtidos na Costa Leste (Nova Iorque, Washington, Boston, Filadélfia...) e na Costa Oeste (Los Angeles, S. Francisco, etc.) os estados com maior educação e os mais desenvolvidos. Ao contrário, os votos de Trump seriam obtidos, na chamada "América profunda", onde dominam os "red necks", os protestantes evangélicos, o KKK e os trabalhadores proletarizados da cintura industrial, ainda que muitos dos seus apoiantes sejam originários da classe média urbana.
Porque, em ambos os países, a eleição foi democrática, devemos concluir que a maioria (relativa, é certo) do eleitorado, votou nos representantes que defenderam um maior isolacionismo e uma maior exclusão social e política dos grupos minoritários - emigrantes, muçulmanos, grupos de género e negros (no caso dos EUA). Por outras palavras, ganharam os candidatos cujos discursos defenderam os valores mais conservadores e nacionalistas e um modelo de democracia menos aberta e tolerante, portanto, mais autoritária. O populismo de direita, ou o (novo) fascismo, em ascensão.
Seguem-se, agora,  quatro eleições, não menos importantes: Itália (já este ano), Holanda, França e Alemanha (em 2017). Dos seus resultados, muito pode depender o futuro da Europa e da própria ideia da União, como projecto político e social. Guardadas as devidas distâncias, a situação actual começa a apresentar preocupantes semelhanças com o período dos anos 20 e 30 do século passado. Depois de uma guerra devastadora (1914-18) e de uma crise económica e financeira (1929) cujos efeitos perdurariam até às vésperas da 2ª guerra mundial, a Europa assistiu ao aparecimento de movimentos e líderes populistas, que souberam interpretar esta frustração popular e que, através da "linguagem dos efeitos" e da criação de imaginários inimigos internos e externos (os judeus foram apenas os "bodes expiatórios"), alimentaram nas massas, acríticas e desmoralizadas, a ideia que um "novo mundo" era possível. Bastava acreditar e obedecer. Conhecemos os resultados.
Aparentemente, as forças progressistas em geral, e a esquerda em particular, não aprenderam a lição. É necessário identificar as razões desta regressão e perceber onde é que o sistema  - e os seus representantes - falhou nas respostas adequadas. Para os interessados na comunicação de Badiou,  deixamos aqui o vídeo e o texto da sua intervenção, que contém suficiente matéria para reflexão.