2012/12/31

Entre Belém e Copacabana, venha o diabo e escolha

No final de mais um ano, há sinais que não enganam.
O primeiro e mais significativo é, sem dúvida, a aprovação do Orçamento de Estado por essa figura que ainda dá pelo nome de presidente da república. Não que se esperasse outra coisa, mas determinados actos dizem mais dos seus autores de que tudo que sobre eles se possa escrever. Com o pífio argumento de que “mais vale um orçamento mau do que não ter orçamento” (não vão os “mercados” desconfiar...), o inquilino de Belém manteve o pais num patético “suspense”, para acabar por fazer o que sempre desejou: o frete ao governo que legitima, apesar de todos os sinais nos dizerem que esta politica é profundamente errada e este orçamento impraticável.
O segundo sinal, não menos simbólico, foi a ida em bando (os “good fellas” nunca andam sozinhos) de Miguel Relvas, Dias Loureiro e José Luís Arnaud, para o Rio de Janeiro onde, alojados no Copacabana Palace, vão assistir à passagem do ano. Certamente de consciência tranquila, após as lucrativas operações comerciais em que estiveram envolvidos (ANA, BPN e REN), os “rapazes bons” não deixarão de beber o merecido “champagne” na cidade maravilhosa.
É esta a “família” que nos governa e se governa. Foi assim durante o ano que hoje acaba e é assim há muitos anos. Provavelmente, continuará por muito mais tempo, pois, a acreditar na profecia, “a tradição ainda é o que era”. Ou não?

2012/12/27

“Olhar a lua e não o dedo que a ela aponta”

Artur Baptista da Silva é, por este dias, o homem mais célebre de Portugal. Não é caso para menos. Depois de uma conferência no Grémio Literário, que lhe valeu um convite de Nicolau Santos para participar no programa “Expresso da Meia-Noite”, apareceu e “arrasou” a concorrência. As suas opiniões, sobre as consequências do modelo de intervenção internacional na crise dos países da Europa do Sul, nomeadamente em Portugal, assim como a sua critica ao papel da Alemanha, só pode surpreender quem não ande atento e informado. Afinal, o que disse de substancial Baptista da Silva, que não se soubesse?
Disse que o “resgate”, a que Portugal está sujeito, é de 78 mil milhões de euros, dos quais 34 mil milhões são juros a pagar às três identidades da Troika (FMI, Banco Central Europeia e Comissão Europeia) a taxas que chegam a atingir 5% a 10 anos e mais de 4% em média.
Que a dívida actual (120% do PIB) começou muito antes da crise internacional de 2008, pois, quando entrámos no Euro, já a dívida pública era de 60%. do PIB.
Que parte substancial, dessa dívida original, foi criada ao longo dos diversos programas europeus, que obrigavam Portugal a endividar-se para poder receber apoios da UE. Sem dinheiro para participar, Portugal não podia concorrer aos subsídios, por isso tinha de pedir emprestado para se modernizar.
Que os juros exigidos aos países intervencionados são imorais, pois enquanto a países, como a Grécia e Portugal, são cobradas taxas de juro de 4%, os bancos dos países credores obtém esses mesmos empréstimos, do BCE, a 1%. e emprestam-no a taxas agiotas. Deu, inclusive, o exemplo do Hypo Bank, em Munique, (o segundo maior banco alemão de empréstimos) que, ameaçado de falência, foi resgatado pelo Deutsche Bank em Outubro de 2008 e, posteriormente, nacionalizado em 2009. De acordo com a informação de Baptista da Silva, o Hypo teria pedido um empréstimo de 175 mil milhões de euros ao BCE, para colmatar o “buraco” existente. Dado que a intervenção só custou 120 mil milhões, teriam sobrado 55 mil milhões. Para onde foi este dinheiro? Como não podia voltar ao BCE, ficou no Banco. Ou seja, o Hypo Bank ganhou 55 mil milhões de euros que pôde utilizar em novos empréstimos a taxas valorizadas! Um escândalo, segundo Baptista da Silva, de que ninguém fala. Dessa forma, os bancos alemães enriquecem, enquanto os países do Sul da Europa estão cada vez mais pobres. Mas, Baptista da Silva disse mais: disse por exemplo, que o Memorando com a Troika deve ser renegociado, pois as condições impostas a Portugal e a outros países com programas de intervenção semelhantes, só podem dar maus resultados: mais impostos, menos salários, reformas e subsídios, mais desemprego e mais recessão, aumentando assim o ciclo da pobreza e a dependência cada vez maior dos bancos agiotas. É este o modelo seguido para a Europa do Sul e está a falhar.
Bom, depois disto, não é de admirar que o homem tivesse sido citado em tudo o que era sitio. Não pelo que disse, mas pela exposição e frontalidade com que o fez, ainda por cima perante audiências especializadas que não conseguiram contradizê-lo. Ou seja, o “aldrabão Silva” limitou-se a dizer que o “rei vai nu” e ninguém o criticou por isso, mas pela sua audácia em fazê-lo, especialmente não sendo reconhecido pelos pares.
Está por provar que a acusação ao Deutsche Bank é falsa (fomos verificar e a Wikipedia confirma a operação de 2009, na qual o governo alemão suportou a intervenção com 102 mil milhões de euros). Ninguém o desmentiu. Quanto às restantes opiniões estão dispersas por dezenas de artigos de opinião e trabalhos de reputados cientistas sociais, que dizem exactamente o mesmo que Silva.
Como nos lembra o provérbio japonês: “Devemos olhar a lua e não o dedo que para ela aponta”.

2012/12/23

O Mundo, tal como o conhecemos, está a acabar

Lisboa, quatro e meia da tarde. À saída da estação do Rossio cruzo-me com uma mulher de idade, bem vestida, que me interpela. “Se eu disponho de um momento?”, pergunta-me... Respondo-lhe afirmativamente e ela, puxando-me para o lado, mostra-me um saco de plástico com duas ou três camisas: “Se eu quero comprar uma?”... Não sei que responder e digo-lhe que não necessito de camisas. Puxa-me pelo braço e desfaz-se em lágrimas. Não tem dinheiro, tem uma pequena reforma e o marido está num lar que ela tem de pagar. Não sabe como há-de sobreviver e tem de pagar todas as despesas. Insiste que eu lhe compre a camisa. Após segunda recusa, confessa que nunca pensou ter de fazer tal coisa e está desesperada. “Onde é que vamos parar? O que é que nos está a acontecer?”
Tento consolá-la e digo algumas palavras de circunstância, sem estar muito certo do que se estava a passar. Estabelece-se um curto dialogo. Enquanto falamos, noto-lhe o desespero estampado na cara. Chora convulsivamente. Consigo acalmá-la e ela, já mais conformada, tenta vender-me a camisa pela última vez. Há dignidade na sua pobreza e sinto-me culpado de algo para que não contribui. Despedimo-nos e ela agradece-me, desejando-me boa sorte. À distancia, olho uma última vez para trás e vejo-a entrar na estação à procura de alguém a quem consiga vender a peça de roupa. Provavelmente do seu marido, que não a pode usar...
Não posso deixar de pensar na profecia Maya. O Mundo não acabou ontem, é verdade, mas, para demasiados portugueses, o mundo a que estavam habituados deixou de existir.
A avaliar pelas previsões mais optimistas, tudo será pior em 2013.
Recentemente, o líder do partido grego Syriza, a propósito da situação de intervenção a que estão sujeitos os dois países, dizia que “o Portugal de amanhã, será a Grécia de hoje”. Referia-se à situação de extrema pobreza para a qual foram atirados milhares de gregos nos últimos anos. Uma miséria extrema, que atingiu a classe média, hoje obrigada a procurar comida nos contendores de lixo em Atenas. A degradação humana, na Europa que construiu o estado social.
Algo de terrível nos está a acontecer e a paralisia é má conselheira. Quando se perde a dignidade, não há camisa que cubra a nossa vergonha. É essa a maior miséria.

2012/12/19

Ignomínia!

Vale a pena ver este video publicado no 5 Dias por Raquel Varela. Vejam, vejam e digam lá se ainda é preciso promover debates sobre o que cabe ou não ao Estado fazer, quem paga o quê, e onde se vão buscar os fundos. Vejam, vejam e digam se haverá dúvidas sobre o futuro que esta quadrilha, que nos levou até aqui, nos preparou. Vamos deixar continuar o massacre, em nome desta "estabilidade política" e desta "imagem para o exterior" para "apaziguar mercados" com que o tentam mascarar...?
Aviso prévio: antes de ver tome uma daquelas pílulas para revestir o estômago...


2012/12/14

Bullying: você defendê-lo-ia?


É uma prática que parece merecer reprovação generalizada. Até os meninos da JSD colocaram um cartaz, aqui à porta da escola da minha terra, a condenar o bullying.
Reproduzo da Wikipédia: "bullying: termo utilizado para descrever atos de violência física ou psicológica, intencionais e repetidos, praticados por um indivíduo (do inglês bully, tiranete ou valentão) ou grupo de indivíduos causando dor e angústia, sendo executadas dentro de uma relação desigual de poder."
O bullying é uma prática abjecta que saiu dos seus locais habituais, das escolas e dos locais de trabalho. Agora é prática política. Nem mais nem menos: o governo pratica bullying contra o povo português.
Se o leitor procurar entender o que é o fenómeno do bullying, se estudar as suas características, tal como são definidas pelos peritos que estudam este assunto, se analisar as justificações para a sua punição exemplar vai perceber a razão pela qual digo isto, está lá tudo.
O governo instituiu o povo português como vítima para os seus insultos; acusa a vítima de ter pouco préstimo; ataca-a fisicamente; ataca e interfere com a sua propriedade; espalha rumores negativos a seu respeito; deprecia a vítima sem motivo; obriga a que esta faça o que ela não quer, ameaçando-a para que siga as suas ordens; coloca a vítima em situação problemática com alguém (normalmente uma autoridade), forçando uma acção disciplinar contra a vítima por algo que não cometeu ou foi por si exagerado; faz comentários depreciativos sobre a vítima, sobre as suas características e carácter; isola a vítima socialmente; exerce chantagem; profere sobre ela afirmações depreciativas; faz com que a vítima passe vergonhas em frente dos outros, etc..
Em suma, institui um clima agressivo e de medo permanente, forçando a vítima (nós todos!) a seguir os seus pérfidos desígnios, numa relação desigual de poder.
Não se fique apenas pela leitura das minhas palavras, procure informar-se a fundo sobre o assunto. Se está a ler este texto, tem acesso aos meios para saber mais sobre o tema.
Tendo o comportamento deste governo como pano de fundo, faça a comparação. Recorde-se do discurso do governo, passe em revista os meios e expedientes usados para instituir este discurso e tire as suas conclusões.
Lembre-se de que o bullying é objecto de legislação que criminaliza o acto. Diga lá então se haverá ou não motivo para julgar este governo por esse crime?
O governo Passos Coelho não passa de um bando de bullies a exigir correctivo urgente.

2012/12/10

O melhor filme do ano?



Chama-se “Amor” (Amour) e foi realizado pelo austríaco Michael Haneke. Já ganhou, só este ano,  a Palma de Ouro de Cannes e, na semana passada, o prémio do melhor filme europeu, o da melhor realização e o dos melhores actores (Jean-Louis Trintignant e Emannuelle Riva). É candidato ao Óscar para o melhor filme estrangeiro em Hollywood e...está em exibição num cinema perto de si.
Por isso, e não é pouco, se viu, já percebeu do que se trata; senão, corra a vê-lo, pois este é um filme que não pode mesmo perder. Mais, se tiver de ver apenas um filme este ano, “Amor” é a escolha certa.
Porque é que eu escrevo isto?
Bom, se calhar, porque gostei tanto do filme, que o recomendo a todos que leiam este texto. Depois, porque entre os cineastas europeus, Haneke, há muito que ocupa um lugar especial na minha galeria de cineastas-autores, aqueles que fazem o “seu” cinema, sem aderirem às modas “mainstream”.
È difícil não gostar dos filmes de Michael Haneke. Eu não me lembro de nenhum. Desde  “Benny’s vídeo”, um dos seus primeiros trabalhos, passando por “71 Fragmentos de uma Cronologia do Acaso”, “Funny Games”, “Código Desconhecido”, “A Pianista”, “Tempo do Lobo”, “Caché” (por muitos considerado a sua obra-prima) e “Laço Branco”, que venho acompanhando o seu percurso e, em todos os seus filmes, sem excepção, a redescoberta de uma faceta diferente, numa superação constante daquela que é tida como a sua visão critica e implacável das relações nas sociedades modernas. Por isso, é difícil ficar-lhe indiferente. Em todos os seus filmes, sentimos a mesma sensação de desconforto e, ao mesmo tempo, o fascínio de querer ver tudo até ao fim, pois sabemos que, no fim, sairemos recompensados. Não pelas explicações (os filmes de Haneke não são simples e muito menos apresentam soluções), mas pelo que eles nos dão a ver e de que não ousamos falar. E portanto, tudo que ele nos dá a ver, existe e está em cada um de nós.
“Amor” reconta, na sua simplicidade, a relação de um casal de idosos que se amam, na vida e na morte. Assistimos, durante mais de duas horas, à degeneração física e psíquica da personagem feminina (fabulosa Emmanuele Riva) que sofre um AVC do qual nunca mais recupera, até ao fim previsível, no qual é assistida pelo marido (comovente Trintignant). Não há uma palavra a mais num diálogo, por vezes cómico, por vezes austero, em “coupages” cirúrgicas, dentro de um apartamento em Paris, transformado pelo realizador de acordo com a sua casa paterna de Viena. Uma lição sobre o fim da vida, num filme maior que a vida. Como escrevia um critico esta semana: “É que daquela casa - e daquele filme - ninguém sai vivo”. Eu saí, também porque vos queria contar esta experiência.

2012/12/07

NOTAS DE VIAGEM: no meio da “crise” holandesa (2)

Ons aller ziel
PS Theater
Pesem as restrições económicas, anunciadas na passada semana pelo governo holandês, é difícil descortinar sinais visíveis de austeridade, neste país que passa por ser um dos mais ricos da Europa.
Os cafés e restaurantes continuam cheios, assim como as esplanadas, aquecidas nesta época do ano, enquanto as lojas fervilham de consumidores nacionais e estrangeiros, carregados de sacos das mais famosas marcas. O mesmo podemos dizer dos eventos (exposições e museus) que pudemos visitar. Nem mesmo os preços médios praticados (muito acima do que estamos habituados) parecem assustar os frequentadores da cultura citadina. Um pequeno resumo do que conseguimos ver:
Na galeria FOAM,  especializada em fotografia contemporânea, uma excelente retrospectiva de norte-americana Diane Arbus (1923-1971), constituída por  200 fotos, a preto e branco, dos temas que marcaram a sua obra: pares de namorados de todas as idades, gémeos, idosos em lares de acolhimento, jovens com o síndrome de Down, ruas e parques de Nova-Iorque. A solidão, a tristeza e a alegria, numa fotografia antropológica com a “patine” das décadas de cinquenta e sessenta. Entrada: €10.
No Museu Histórico Judeu, renovado em 2005,  para além da colecção permanente que relata a diáspora, as zonas habitacionais, a ocupação alemã e o holocausto, uma excelente exposição do artista plástico William Kentridge e as pinturas naíves de Sal Meijer, um cidadão que amava a sua cidade. Tempo ainda para ver um excelente documentário holandês, sobre as origens da música Klezmer (da Roménia ao Canadá). Porque o bilhete incluía a Sinagoga Portuguesa, vizinha ao Museu, lá voltámos, agora com a curiosidade de visitar a cave, recentemente aberta, onde podem ser admirados os tesouros deste templo sefardita, construído em 1675 e que alberga a mais antiga biblioteca judaica do Mundo. Entrada: €12.
Igualmente renovado, após um polémico concurso ao qual concorreu Siza Vieira, está o Stedelijk Museum, um dos mais populares da cidade, famoso pela sua colecção de arte moderna e contemporânea dos séculos XIX e XX.  O “Stedelijk”  modernizado, alargado e desfigurado, numa intervenção a todos os títulos criticável pelo mau gosto e desproporção de formas, estava apinhado no dia em que o visitámos. Se já era popular, agora toda a gente quer ver o novo anexo (conhecida pela “banheira”) que alberga uma colecção de “design”, a todos os títulos notável. Entrada: €15.
Já desesperávamos de  ver algo gratuito, quando fomos alertados para a nova “coqueluche” da cidade, o edifício futurista  (a lembrar o avião “Concorde”), que alberga a nova  cinemateca da cidade. Verdadeiramente espantoso, como espantosa é a sua localização, na margem norte do IJ, atrás da estação principal de comboios. 
Chama-se “Eye” (um trocadilho entre o nome do  canal que liga a cidade ao mar do Norte e o “olho” cinematográfico) e reconciliou-nos com a arquitectura. Com uma colecção com mais de 40.000 títulos,  a cinemateca tem 4 salas de projecção, 1 sala de exposições temporárias,  uma sala infantil (onde se podem aprender todos os passos necessários para fazer um filme), uma sala escura, onde é possível visionar excertos de filmes clássicos, bastando, para isso, premir uma das quatro “slot-machines” existentes, para além de uma loja e 2 cafés e restaurantes, com vista para a cidade. Um espanto. À excepção das exposições e dos filmes, tudo o mais é gratuito. Os “amigos da cinemateca” pagam 30 euros por ano e têm redução nos bilhetes que custam entre 8 e 10 euros. Por comparação, na Cinemateca de Lisboa, os “amigos” pagam os mesmos 30 euros anuais, mas apenas €1,35 por sessão...
Num pais onde a Cultura vai sofrer um corte de 50% no próximo orçamento, o teatro não é excepção. O grupo PS-Theater, de Leiden, encenou a peça “Ons aller Ziel” (A Alma de todos nós), uma metáfora sobre a miséria, onde a personagem principal (uma jovem rica e fútil da alta sociedade) convida os amigos para uma festa de caridade, onde estes devem apresentar-se vestidos de mendigos, sem-abrigo e vestimentas árabes. Durante a festa, a bebida servida é o “champagne”. Durante a peça, é confeccionada uma sopa de beterraba e lentilhas, que no fim é oferecida aos espectadores. No átrio de entrada do teatro, estava colocado um carro, onde também podiam ser depositados contributos para o Banco Alimentar. Sim, na Holanda,  um dos países mais ricos da Europa, o Banco Alimentar é cada vez mais popular...
Uma última nota para a digressão “Daisy Correia canta José Afonso”, a decorrer até Maio do próximo ano, com mais de 20 concertos agendados para toda a Holanda. Criado e interpretado por uma jovem cantora holandesa de ascendência portuguesa (Daisy Correia), este é o tributo ao Zeca que faltava. O ciclo está encerrado.

2012/12/04

NOTAS DE VIAGEM: no meio da “crise” holandesa

Nada como sairmos da pátria para ver as coisas em perspectiva. Os dias passados entre Paris e Amsterdão, deram-nos uma imagem, necessariamente impressionista, que ajuda a relativizar lugares-comuns. Parece ser oficial: a crise chegou aos Países-Baixos, bastião de austeridade e rigor orçamental, onde a frugalidade e a poupança, mais do que conceitos, são um “modo de vida”. O que, até há pouco era um problema exclusivo de países periféricos, como Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha (vulgo PIIGS), parece ter-se alastrado ao núcleo duro do “marco” de que fazem parte a Alemanha, a Holanda, a Áustria ou a Finlândia.
Depois de longos meses de formação, o novo governo holandês – uma coligação de liberais de direita e sociais-democratas – tomou posse no passado mês de Outubro. Confrontada com a crise da “zona euro” e a relativa estagnação do crescimento económico (causa do aumento do desemprego e dos subsídios sociais daí inerentes), a coligação governamental anunciou na passada semana um novo pacote de medidas de austeridade: corte de 16 mil milhões de euros no orçamento para 2013, com especial incidência nos rendimentos mais baixos, nas prestações sociais (com excepção das reformas), na educação, na saúde e na cultura. Simultaneamente, foi anunciada uma nova grelha fiscal (5 escalões) e aumentada a percentagem do IRS e do seguro de saúde obrigatório.  Onde é que já vimos este filme?
De acordo com  o “De Volkskrant” do passado dia 29,  a desigualdade de rendimentos será maior em 2013. Os grupos de rendimentos mais baixos (entre €500 e €1200 brutos) verão os seus rendimentos descer cerca de 2%, enquanto um trabalhador que ganhe uma vez e meia o ordenado médio nacional (€3.819,45 brutos) verá o seu vencimento aumentar em 2%.  Simultaneamente, o ordenado mínimo nacional (€1.456,20 brutos) será aumentado em 0,13% (€1,62 mensais em termos líquidos).
Ao contrário da classe média portuguesa, a classe média holandesa é a mais beneficiada deste novo escalonamento fiscal, o que não deixa de ser surpreendente. A razão desta medida, é explicada pela violenta reacção deste grupo, após o anúncio do acordo governamental de Outubro, que previa um aumento substancial do imposto do seguro de saúde (obrigatório na Holanda) para os maiores rendimentos. Essa receita extra reverteria para os mais desfavorecidos que, dessa forma, não veriam os seus seguros de saúde aumentados. Com a nova grelha fiscal, os mais desfavorecidos, não só verão o seu seguro de saúde (€150 mensais em média) aumentado, como verão os seus vencimentos diminuídos.
Outro dos ministérios mais afectados será o da Ajuda ao Desenvolvimento, onde estão previstos cortes no valor de mil milhões de euros até 2017. Será uma diminuição progressiva (cerca de 200 milhões anuais), mas representativa da tendência actual na sociedade holandesa, agora mais sensível aos discursos da direita que defende cortes nos apoios a estrangeiros dentro e fora do pais.
Aparentemente isentos neste pacote de austeridade, parecem estar os reformados mais pobres que, até ver, mantêm as suas pensões congeladas. Isto, até ao dia 1 de Março. Nessa data, será feita uma avaliação das provisões do Fundo Nacional de Pensões e, caso estas estejam abaixo do previsto, poderão haver cortes até 3% do rendimento.

2012/12/01

NOTAS DE VIAGEM: em Paris, com a música do Zeca

No ano em que passam 25 anos sobre a morte de José Afonso, o Theatre de La Ville, em Paris, levou a cabo uma homenagem ao cantor português que actuou naquela prestigiosa sala em Novembro de 1981. O concerto, que esteve para acontecer em 2011, nos trinta anos da passagem do Zeca pelo teatro, só agora teve lugar, devido à dificuldade em conciliar datas. Lá fomos, aproveitando a proximidade da cidade onde nos encontrávamos (Amsterdão), também movidos pela curiosidade de ver um “naipe” de intérpretes que nunca antes se tinha juntado em palco e de rever Paris, afinal a cidade onde tudo pode acontecer. Porque o tempo escasseava, optámos pelo Thalys, a versão TGV da Benelux, que liga Amsterdão a Paris em menos de 3 horas e meia. À chegada à Gare du Nord, a primeira surpresa: a entrada da estação do metro tinha um cartaz do Zeca, anunciando o espectáculo, situação que se repetiu ao longo dos corredores do metro que fomos atravessando e, mais tarde, quando chegámos a Chatelet, a estação que serve o Theatre de la Ville. No dia do concerto e enquanto atravessávamos a cidade, os cartazes e as menções ao concerto repetiam-se: nas estações de metro, nos jornais (Liberation), na rádio e na Net (MediaPart). A máquina de promoção estava a funcionar e isso era bom sinal. O concerto, que partiu de uma ideia do primeiro director artístico do Theatre de la Ville, Démarcy-Mota, tinha um conceito arrojado: misturar “compagnons de route” do Zeca (Francisco Fanhais e Júlio Pereira) intérpretes da sua obra (João Afonso, o sobrinho) e gente que, do Zeca, só tinha ouvido as gravações (António Zambujo e Mayra Andrade). Como era esperado, o público luso-francês compareceu em massa e, se mais bilhetes houvera mais teriam sido vendidos. Uma sala de 1000 lugares, onde não cabia um alfinete. A primeira batalha estava ganha. Seguiu-se a parte musical propriamente dita, que não chegou a durar hora e meia, tempo médio dos concertos no Theatre de La Ville e que o mestre de cerimónias controlou com “mão de ferro”. Nem os pedidos de “encore”, depois da inevitável “Grândola” (cantada de pé pela assistência), demoveu o director do teatro da sua tarefa. Também por isso, o concerto soube a pouco,. Do que vimos e ouvimos, devemos destacar a presença e a interpretação de António Zambujo, definitivamente uma aposta ganha; o sentido e sentimento de João Afonso, a quem coube as canções mais difíceis (Redondo Vocábulo, por exemplo); o “ensemble” dirigido por Júlio Pereira, que assegurou a direcção e o apoio dos restantes elementos. De Fanhais, que teve a difícil tarefa de abrir o concerto com uma difícil “Utopia” cantado a capella; e de Mayra Andrade, sensual e alegre, mas longe da alma afonsina que se espera de um concerto deste tipo, resta-nos acrescentar que cumpriram, o que não é pouco. Uma bonita homenagem, de que se continuou a falar na recepção oferecida pela direcção do Teatro e pela Embaixada portuguesa, após o concerto, aos artistas envolvidos. Como diria Hemingway, “Paris, é uma festa!”.




Pour José Afonso, revoir le concert live sur... viaMediapart

2012/11/25

Responsabilidade


Por que razão merece a notícia honras de manchete no JN de hoje? É simples: um polícia que comete ilegalidades é o homem que morde o cão.
"A PSP tem por missão assegurar a legalidade democrática, garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos, nos termos da Constituição e da lei," lê-se na declaração de princípios do site da PSP. Bastará dar uma vista de olhos para ver nele inscrito um imenso rol de boas intenções, de imagens gentis, de sorrisos cidadãos.
Diz-se ainda que é função da PSP "garantir as condições de segurança que permitam o exercício dos direitos e liberdades e o respeito pelas garantias dos cidadãos, bem como o pleno funcionamento das instituições democráticas, no respeito pela legalidade e pelos princípios do Estado de direito; garantir a ordem e a tranquilidade públicas e a segurança e a protecção das pessoas e dos bens; prevenir a criminalidade em geral, em coordenação com as demais forças e serviços de segurança; prevenir a prática dos demais actos contrários à lei e aos regulamento."
Inatacáveis são tais princípios, tranquilizantes são tais funcões.
Já todos vimos (para sermos justos) a observância destes princípios e o cumprimento destas funções reflectidos na actuação da Polícia em diversas ocasiões, mas pergunto-me como é que se enquadra tudo isto numa actuação de pura e comprovada provocação, como foi caso no dia 14 e em casos anteriores ocorridos em passado recente? Como?! Que sentido de responsabilidade revelaram nessa sua actuação os comandantes desta autoridade e os agentes que nela intervieram? Que diferença há entre eles e o chefe que o JN noticia?
Que Estado é este que age, ele próprio, ao arrepio das suas próprias normas regulamentares? Que outra possível justificação tem para isso que não seja a da destruição do próprio Estado? Que sentido de responsabilidade revelam os agentes da Lei pelo uso deste poder, exercido nestas condições?
A segurança e os direitos dos cidadãos contituem responsabilidade do Estado. Está na Lei. É só fazê-la cumprir.
Olhemos agora para o Ministério da Educação. Observamos que dela, da Educação, diz o próprio Ministério que "determina o futuro do país e deve gerar igualdade de oportunidades para as gerações futuras."  Diz ainda este organismo estatal que "para obter bons resultados é necessário determinação e rigor." Nota o Minstério que a "cooperação de pais, professores e alunos é fundamental para a criação de um ambiente de trabalho favorável, que privilegie a exigência." Sublinha o Ministério que "defende como princípios o esforço, a disciplina e a autonomia."
Como é possível, pergunto eu, cumprir todos estes desígnios quando há crianças a desmaiar de fome ou a recorrer à caridade estatal porque não têm, reconhecidamente, meios em casa para se alimentarem? Como é possível instigar "determinação" e "rigor" em estado de debilidade física? Como é possível obter um ambiente de trabalho favorável, que privilegie a "exigência", quando se corre para a escola para saciar a fome? Como é possível obter a cooperação entre pais, professores e alunos com os pais a serem lançados no desemprego, os professores a verem o seu papel na sociedade reduzido ao de mero embrulho e os alunos a verem o país transformar-se, pouco a pouco, em zona de guerra, e a verem o futuro dos pais e de si próprias resumir-se a uma quimérica solução migratória?
O futuro do país depende da educação e, assim, o Governo, di-lo e bem, "assume a Educação como serviço público universal." A sua actuação aponta porém num sentido totalmente oposto. Revela-se nesta sua incoerência uma absoluta e deliberada falta de sentido de responsabilidade.
Educação universal, eis uma outra responsabilidade do Estado. Está na Lei. É só fazê-la cumprir.
Podia desfiar aqui uma lista sem fim de casos em que as responsabilidades do Estado não são cumpridas por desleixo ou em resultado de uma atitude que lhes desvirtua, de forma perfeitamente deliberada, o sentido. É assim na Justiça, é assim no Ambiente, é assim na Economia, é assim nas Finanças, é assim na Saúde, é assim em praticamente todos os sectores que o Estado tutela ou administra directamente.
Esta atitude, ora simplesmente badalhoca ora criminosamente deliberada, é a dos fantoches que dominam hoje e que têm dominado a hierarquia do Estado e que partilham o bodo do Orçamento a seu bel-prazer, de forma impune, não cumprindo os preceitos a que estão obrigados, não cumprindo as suas responsabilidades, permanencendo inimputáveis, fazendo até crer que cabe àqueles a quem têm que prestar contas que a irresponsabilidade é afinal deles. Procurando criar-lhes a ideia de que o seu incumprimento tem alguma espécie de justificação divina.  Forçando-os mesmo a pagar a sua própria irresponsabilidade e desmandos. Porque não há alternativa...
Ora, está tudo perfeitamente definido na Lei. Estão lá os princípios que separam as responsabilidades do Estado e dos seus cidadãos, a imputabilidade de uns e os limites precisos da inimputabilidade de outros. Face ao preceituado, não há margem para dúvidas. Estão lá os deveres e direitos. Está lá definido o que é alternativa ao quê. É tudo perfeitamente claro. Está na Lei. É só reclamar o seu cumprimento.

Reclamar o seu cumprimento da Lei é o que faz o Estado, por exemplo, quando pune o assassino ou multa o condutor embriagado. Ou quando vier a punir o chefe que usava matrículas falsas...
Estado é justiça, Estado é exemplo, Estado é bitola a que todos devem recorrer para sanar os seus diferendos, suprir equilbradamente as suas necessidades, precaver os seus direitos, regular e cumprir os seus deveres.
Que Estado é este então que mente e desvirtua as suas funções a toda a hora? O que fazer com este Estado? É este o debate urgente e é por aí que o país sai da crise.
A Lei Geral existe, chama-se Constituição da República.
Aqui está afinal uma exigência simples, mas de enorme alcance, transversal, capaz de unir os Portugueses, independente de credos, ideologias ou interesses particulares; susceptível de proporcionar, de uma modo simples, este desígnio simples de todos nós: viver com Justiça, com Igualdade de oportunidades e de deveres.
A Constituição é Lei, e enquanto o for, é para cumprir.

Em Portugal as responsabilidades e a "accountability" dos cidadãos e do Estado que os representa funcionam apenas num sentido. Por mim, gostava apenas que nos entendessemos simplesmente sobre o modo de tornar o princípio biunívoco.

2012/11/15

Estado de direito ou estado de direita?


Concordo totalmente com o ponto de vista do Daniel Oliveira expresso neste seu artigo. Ter-lhe-á faltado referir (mas faço-o eu aqui), que o Estado tem a absoluta obrigação de proteger os cidadãos que observam a Lei e não de os espancar. 
Ou seja, num país a sério, a PSP e o MAI deveriam ser acusados e sujeitos ao veredicto dos tribunais, se tudo se passou assim, como tudo leva a crer que se passou, de facto...
A PGR tem aqui ampla e clara matéria para actuar, mas os cidadãos que foram vítimas dos maus tratos da polícia e as organizações cívicas que lutam pelos direitos civis deveriam também agir com decisão.
Ou, com o pretexto da austeridade e o beneplácito da troika, já metemos todos o Estado de Direito definitivamente na gaveta??!

2012/11/14

Antes...

... Porque o depois, sabêmo-lo pela dura experiência do dia a dia, a realidade é bem diferente. Senhoras e senhores, sem mais demoras, apresento-vos Pedro Passos Coelho!


2012/11/11

Alguém paga!

Quando a minha prima Ermelinda ouviu aquela senhora do Banco Alimentar afirmar, contava-me ela, que vivemos acima das possibilidades, estremeceu um pouco. Quando a ouviu dizer, com um tom de censura e aroma a incenso e a estearina a arder na voz, que vivemos acima das possibilidades porque "alguém pagava," voltou a estremecer. Quando a ouviu dizer que temos de deixar de comer bifes todos os dias, ficou incrédula. A ela, que já há tanto tempo que não come bifes todas as semanas sequer, pareceu-lhe, dizia-me ela, que a senhora a estava a ameaçar que teríamos provavelmente de deixar de comer de todo.
Aquilo não lhe parecia tontaria ou brincadeira. A senhora falava a sério. O pensamento fê-la estremecer mais uma vez. Quando, depois da surpresa inicial, começou a pensar na hipótese de toda a gente deixar de comer bifes, ou de os comer apenas uma raríssima vez por outra, concluiu que o matadouro, o talho e o supermercado iam à falência com a quebra do negócio. O pensamento, fê-la estremecer ainda uma vez mais.
Não se surpreendeu, revelou-me, quando ouviu dizer que a venda do Nestum estava em alta e imaginou que a Nestlé se aguenta certamente bem no meio desta crise. Coitados dos pequenos negócios, contudo. Mesmo, os grandes negócios nacionais, pequenos à escala internacional, não têm hipótese. Deve ser impossível gerir uma cadeia de supermercados com base na venda de Nestum.
E estremeceu uma vez mais.
Depois pensou que, quando preconizava o fim do bife, a senhora do Banco Alimentar estava também implicitamente a dizer "alguém paga!" —o mesmo que ela nos acusava de "termos feito" todo este tempo. Isto porque alguém vai então ter de pagar os subsídios que os trabalhadores. aqueles que vão ser despedidos em virtude da quebra de vendas do matadouro, do talho e do supermercado e o consequente e inevitável encerramento do negócio— terão, por lei, de receber.
Se o matadouro, o talho e o supermercado forem à falência, vão à falência os fornecedores das facas com que se cortam as carnes, dos sacos de plástico em que elas são embaladas, dos frigoríficos em que são guardadas, vão à falência os fornecedores das caixas registadoras, dos programas de facturação, os contabilistas que lhes fazem a escrita e por aí fora. E os fornecedores deles! Vai tudo ao ar! Mas alguém paga.
A vida é assim: neste modelo de sociedade, para irmos vivendo, alguém paga. Sempre. Esta sociedade vive do "alguém paga!" Porque alguém vende. E alguém compra.
É assim que está estruturada. Uns produzem o que os outros consomem. Uns procuram e outros oferecem. E, continuava a prima Ermelinda naquele seu solilóquio que nem me atrevia a interromper, se a senhora conhece uma sociedade alternativa, sem produção nem consumo, devia-nos então ter explicado as suas ideias sobre ela. A sua posição exige-o.
Mas, disparava ainda a prima Ermelinda, ao pagarmos todos (nesse caso o alguém somos nós) estes subsídios ao pessoal despedido dos talhos, matadouros, operários das cutelarias, contabilistas, etc., o dinheiro para o bife e para o resto torna-se ainda mais escasso. Se calhar, não vai sobrar dinheiro sequer para pagar os impostos que cobrem as despesas do pequeno almoço das 10 000 crianças famintas (que o próprio governo reconhece existirem) e das cantinas colectivas abertas de emergência para acolher velhos e novos pobres. Tudo isto estará inevitavelmente em risco. O próprio Banco Alimentar acabará por deixar de ter donativos e os voluntários que nele trabalham estarão sem força para prestar a sua colaboração, definitivamente esgotados.
Ou não... interrogava-se subitamente a Ermelinda. Ou será que haverá sempre uma verba do "fundo de resgate", proporcionado por uma entidade qualquer (alguém  paga!), que garantirá o funcionamento mínimo do metabolismo basal de toda esta gente, para evitar o colapso dos Bancos Alimentares e das cantinas colectivas, resultante da exaustão dos seus dirigentes e dos proponentes da solução caritativa?
A prima Ermelinda, sem me deixar sequer comentar as suas perguntas, questionou então se a senhora do Banco Alimentar sabia mesmo do que está a falar e perguntava-me (a prima Ermelinda não é parva...) se ela teria competência para ocupar o cargo de que é titular. É que até a tia Laurinda, mãe da prima Ermelinda, que vive numa casa a cair de podre, num bairro totalmente degradado com 200 euros por mês, e, para se manter dentro das suas possibilidades, é uma velha consumidora de Nestum, a tia Laurinda, notava ela, que vive assim há muito, mas não é parva, tinha já chamado a atenção para tudo isto há já bastante tempo.
O que a minha prima Ermelinda não percebe é como é que uma senhora tão fina, que dirige uma organização tão grande e prestimosa, que agrupa tanta gente e lida com uma diversidade tão grande de problemas e de entidades, não pensou nisto. Como é que ela emite estas opiniões deste jaez e continua a ocupar o lugar que ocupa, depois do que disse?
E, queres ver, perguntava-me ainda a prima Ermelinda, que, seguindo o velho Princípio de Peter, ainda vão dar a esta senhora tarefas mais complexas? E se isto fosse coisa mais profunda, exclamou de repente a Ermelinda, um desígnio europeu, quem sabe? A senhora era ideal para o cargo: transformar a Europa dos grandes valores da Democracia, da Justiça, da Liberdade e dos Direitos Humanos, a Europa toda, de norte a sul, num super asilo de pobres e velhos, sustentados a Nestum.
Embora me fosse confessando ser pouco dada a teorias da conspiração, a Ermelinda rematou a nossa conversa admitindo que se alguém quisesse exterminar a população de modo eficaz, praticar o "crime perfeito," o método era o ideal. Ninguém desconfiaria, nem o Colombo!
Ao ouvir a senhora do Banco Alimentar, dizia ela, ao constatar que as ideias que expressa não poderão ter saído certamente de uma cabeça daquelas, esta pergunta não deixava de lhe apoquentar o espírito: a mando de quem andaria então ela a papaguear tudo isto...?

2012/11/07

Que futuro para Isabel Jonet?


A conversa de Isabel Jonet, ouvida assim a frio e avaliada pelo seu valor facial, é um enorme zero. Não há uma ideia, coerência no discurso, humildade perante o sofrimento, manifestação de virtude, perspectiva histórica, preocupação em extrair uma lição da experiência (que deveria ser rica!), sinal de busca honesta da verdade. A sua argumentação não contém uma só explicação aceitável ou séria para os fenómenos que afligem a nossa sociedade, não há, por parte deste alto quadro dirigente de uma grande instituição social, uma partilha credível da sua experiência, não se ensaia uma avaliação profissional ou uma crítica consequente, numa área onde afinal exerce a sua actividade principal.
Não há nada, é o vazio.
Os profissionais da caridade têm uma responsabilidade dupla. Para além de terem de exercer a sua profissão com competência numa área especialmente frágil, têm a obrigação de sinalizar, sem equívocos, que "abraçaram" uma profissão temporária e não pretendem perpetuar a matriz que a ditou, sob pena de poderem ser considerados instigadores da desgraça alheia. A profissão de agente de caridade devia ser, pela própria natureza da sua substância, precária. O negócio da caridade, a ter de existir, devia ser efémero. Qualquer sinal de permanência ou continuidade deveria fazer imediatamente soar os alarmes e levar o agente da caridade a mudar de ramo, concentrando-se no combate aos factores que sustentam o "negócio", exercendo a crítica da sua natureza, apoiando os "clientes", ajudando-os a encontrar condições para alterar as condições que ditaram o seu infortúnio. A caridade pode ser uma virtude, mas é também sempre um recurso extremo e efémero.
Não parece pensar assim Isabel Jonet. Ela gosta da crise. Se a crise for controlada ela perde o emprego. O que sabe Isabel Jonet fazer fora do Banco Alimentar?
Esta intervenção suscitou, pelo que percebo, reacções de todo o tipo, onde o denomiador comum é a indignação. Tenho ouvido de tudo sobre ela: que é um nojo, que é pateta, pouco articulada, que parece estar sob o efeito de uma qualquer substância ilícita. Não creio. Acho que é mesmo uma perigosa demagoga, populista, com tiques fascistóides.
Portugal merecia ter uma outra  Marianne.
Cometeu um outro pecado: qualquer mérito que o seu B.A. pudesse ter está agora seriamente comprometido depois destas declarações. Já há muito que se levantavam legítimas dúvidas sobre as virtudes da iniciativa. Agora estão dissipadas.
O que me custa perceber, porém, é de onde vem todo o interesse em promover esta criatura e a sua actividade bancária, e de que estranhas razões decorre todo este tempo de antena... Resta ficar a atento ao futuro de Isabel Jonet.

2012/11/02

O espirro do operário

A tentação de evocar as semelhanças entre a chamada Restauração da Independência de 1640 e este período triste da história do País é enorme. Há, quando visto pela rama, entre aquela época e os dias que correm, conturbados e desesperantes, alguns pontos de contacto.
O brutal jugo fiscal, o mal estar quase transversal na sociedade e até uma certa "crise dinástica" são argumentos que, aparentemente, podem contribuir para aproximar as épocas. Mas, de facto, os tempos são outros.
Restauração não é refundação. Nem a "dependência," que a acção dos conjurados do século XVII conseguiu contrariar, tem as mesmas características nem a perda de soberania de hoje tem o mesmo significado que a de ontem nem estamos perante os mesmos antecedentes históricos nem, sobretudo, a Merkel é Felipe II.
Um traço inegavelmente comum é a vontade, hoje como ontem, de deitar os traidores pela janela. Acção concretizada em 1640 e com fortíssimas possibilidades de se repetir 372 anos depois. É que quando a reforma do Estado Português é quase literalmente encomendada a uns quaisquer "cámones", como muito bem lembra Alfredo Bruto da Costa, sem que o Estado, que somos todos nós, saiba, chegámos ao ponto em que alguém vai mesmo ter de voar pela janela fora...

Hoje assistia a um interessante documentário sobre a origem da vida na Terra. Falava-se sobre a possibilidade, real, de ela resultar da "visita" de uns quaisquer organismos primários provenientes de Marte. Formas simples de vida como bactérias, poderão ter atravessado o espaço a bordo de meteoritos marcianos e aqui poderão ter evoluido para formas de vida mais complexas.
Um dos astronautas que pisou a Lua durante a missão Apollo 12 contava no documentário, para ilustrar este argumento, que uma das tarefas que teve foi a de resgatar uma câmara de video de uma missão Apollo anterior. O recipiente que continha essa câmara estava revestido de poliestireno extrudido, vulgarmente conhecido por esferovite. Dizia ele que o operário encarregado de montar a câmara naquele recipiente estaria constipado e teria espirrado para cima dele enquanto executava o seu trabalho. O material foi depois observado em Terra e verificou-se que as bactérias lançadas pelo espirro do operário —disfarçadas entre as partículas do polímero e que, portanto, não se conseguiam observar logo após a encomenda apolínea ter sido devolvida ao remetente— voltaram subitamente a desenvolver-se, assim que as condições ambientais o permitiram.
As bactérias teriam permanecido completamente inertes durante os anos que passaram entre estas duas missões Apollo, em condições inimagináveis, viajaram de volta, com dramáticas saídas e entradas na atmosfera, e, assim que surgiram factores ambientais favoráveis, retomaram o seu processo de multiplicação.

A vida ensina-nos que a vida segue sempre o seu curso. Um espirro, uma simples bactéria que teima em resistir, um Miguel de Vasconcelos jogado pela janela fora e voltamos rapidamente à normalidade que isto já começa a chatear, mesmo, muito a sério.

2012/10/29

Essa coisa da Refundação

Desde que ontem, no decorrer das jornadas parlamentares do PSD, o primeiro-ministro lançou o repto ao PS para Refundar o programa do Memorando em curso, que os analistas de todos os quadrantes se desdobram em interpretações sobre o significado da coisa.
Mas, afinal, o que quer “refundar” Passos?
Admitindo que, como aprendemos, “refundir” significa “tornar a fundir; transvasar; transformar profundamente; mudar a forma a; refazer, reunir-se, derreter-se; sumir-se; transformar-se, derramar de novo (Diccionário Porto Editora, 6º edição), temos de concordar que as interpretações abundam.
Avanço três:
1) Passos Coelho  já percebeu que se estampou e que não há saída para o buraco onde estamos metidos. A continuação deste programa de ajustamento vai conduzir o pais para um abismo sem fundo e, neste quadro, o primeiro-ministro lança mão da  última possibilidade de ter aliados nesta estratégia. Com o PS, pode dividir as culpas e manter uma parte da população mais calma.
2) Passos Coelho, aconselhado por outrem (Ângelo Correia, o PR, Gaspar?) lança mão de um aliado que lhe pode dar a almejada maioria parlamentar, única forma  de mudar a Constituição, o último obstáculo à implementação da receita do FMI.
3) Passos Coelho, prevendo a queda do governo - seja por demissão, seja por iniciativa presidencial - tenta uma saída airosa para o programa de ajustamento, ainda que ele já não seja parte da solução.
Seja qual for o cenário, e outros haverá que não passam necessariamente pela patética figura do primeiro-ministro, uma coisa parece certa: ninguém acredita que este programa de ajustamento vai resultar pelo que continuar a aplicá-lo só por insanidade ou má-fé. Já vimos que a insanidade é uma característica de alguns membros deste governo. Mas, para mim, há um perigo maior: as pessoas que estão a aplicar este programa não são todas necessariamente doentes ou incompetentes. Não, eles (Gaspar, Borges, Macedo) são altos quadros qualificados em instituições internacionais, onde se ensina esta cartilha. Uma cartilha que exige a “refundação” da sociedade, única forma de começar de novo, segundo um novo modelo: um modelo onde não exista um estado social e onde os trabalhadores sejam de tal forma subservientes que qualquer ajustamento possa ser aplicado sem resistência da maior parte da população. As minorias contestatárias serão isoladas e castigadas de acordo com a nova democracia musculada.
É esta a “refundação” que nos é proposta. Também lhe podemos chamar outra coisa: “refodação”, de  refodido, um termo que se aplica a quem já foi fodido uma vez.

2012/10/24

A solução final

Segundo as notícias mais recentes, o governo  propõe, entre outros cortes do mesmo teor,  reduzir em 10% os subsídios de desemprego mais baixos.
Ora, eu julgo que o governo pode ir muito mais longe. Eu, por exemplo, defendo outra coisa: um gajo fica desempregado, já não trabalha, não serve para nada, o desemprego vai aumentar (é mais que certo!), vamos ter ainda mais gente desta a chatear, em manifestações e nos centros do IEFP... nááá, é forno crematório com eles!
Fica mais barato ao Estado e ainda se aproveita a gordura para fazer velas para Fátima. 
E, cheira-me, há-de haver um membro do governo, perdão!, dos partidos do arco da governação, que tenha uma empresa de fornos de certeza, a quem se pode adjudicar o jeitinho...
Sejamos destemidos!

2012/10/20

Arqueologia, ideologia ou marketing?


O "Laço Branco" é um filme de Michael Haneke. Uma alegoria, segundo o seu autor, à "origem de qualquer forma de terrorismo, seja ele de natureza política ou religiosa." Jardim Gonçalves, esse símbolo de probidade, essa figura exemplar da sociedade portuguesa, podia ser um personagem deste filme.
Aconselho quem não viu o filme —a quem porventura escapará assim o sentido da metáfora— que o veja urgentemente. Aconselho também, aviso já!, a que se muna previamente de um saco de vómito, desses que se distribuem nos aviões...
O mesmo deverá fazer se ouvir esta entrevista dada por Gonçalves à TSF. Nela o (a)fundador do BCP confessa-se adepto dos partidos, contra os "independentes", partidário da solução do centrão (particularmente interessante é a sua justificação para a participação do PS numa possível coligação de centro... atenção João Galamba, isto fica sem resposta!!?) e da não intervenção do Presidente da República. A entrevista é escuta obrigatória para qualquer patriota que ame verdadeiramente Portugal. É escuta obrigatória também porque permite perceber as causas do presente e os contornos do passado recente do País. Está lá tudo, no que é dito e no que não é dito.
Entendo perfeitamente as ideias do senhor J. Gonçalves. Ele é cristalino. Só não percebo por que raio se foi desenterrar esta múmia...

2012/10/18

Xadrez, tiros e hara kiri ao vivo

A política, diz-se, é xadrez. No caso da coligação do governo, descobriu-se um novo tipo de desfecho: não há xeque-mate, nem sequer empate —que implicaria uma situação neutra, sem consequências—, há xeque-mate duplo. As brancas ganham às pretas e vice versa.
PSD e CDS sairão, ambos, desta partida a perder e feridos de morte.
Dizem alguns que à decisão do CDS de votar a favor do orçamento se seguirá uma saída dos ministros daquele partido, a consequente remodelação, talvez mesmo com Gaspar, essa figura cheia de carisma, a timoneiro, e o PSD deixado assim a afogar-se sozinho no oceano. É bem possível. É bem possível que seja este o testamento deixado por esse mago da estratégia chamado Paulo Portas, esse enfant terrible da política portuguesa, vencedor do circuito das feiras e campeão do beijo-na-velha. Depois de dias de silêncio em que o País andou totalmente suspenso e angustiado, sem saber o que iria fazer o CDS, o partido promete um espetáculo de hara kiri político, live, perante os portugueses...
Porque o que é mais provável, no caso de tudo isto vir a acontecer, é que o CDS se eclipse neste movimento de génio (nos Açores já tiveram o aperitivo...) que tanto custou a parir. O CDS quebrou o longo silêncio para entrar na inexorável via da extinção que conduz ao silêncio da morte.
Serão excelentes notícias se isso acontecer. É possível, vamos ter esperança...
No meio disto, e se de facto o CDS deixar a coligação, iremos certamente assistir ao naufrágio solitário do navio almirante, PSD. Cumprir-se-á o desígnio de Portas e o big brother da coligação vai ao fundo com um tiro fatal. É inevitável que, perdendo o táxi, e abominando, como abomina, os transportes públicos, o PSD vá ter de fazer a longa e cansativa jornada que tem pela frente a pé. Pode ser também que, nesse esforço, gaste definitivamente as solas e se perca de vez por essas encruzilhadas.
Já agora que falo de tiros (não me refiro ao desconforto dos militares, tão eloquentemente expresso ontem...), aguardemos —sem nenhuma expectativa especial, devo confessar— o que vão fazer os partidos do arco da não-governação. Vamos ver se vão continuar a dar tiros no pé. E aguardo também —com uma expectativa ainda menor— o que vai fazer o outro partido do arco da desgovernação, o PS. Também dentro dele há quem se coloque na posição de mera testemunha acidental. Esses têm hoje uma oportunidade de ouro para dar o tiro decisivo no porta-aviões, mas a tarefa parece impossível de realizar apenas com pólvora seca, como tem sido norma até agora.
A crise, como a luta, continua.

2012/10/13

Choque, Pavor e “Água Benta”

A cada dia que passa Portugal está mais parecido com a Grécia.
As novas medidas de austeridade, ontem divulgadas por vários órgãos de comunicação e discutidas no Parlamento, prenunciam a maior crise económica e social de que há memória no Portugal democrático. Um verdadeiro “assalto”, para usar a expressão do “barão” do PSD e conselheiro de estado, Marques Mendes.
De facto, as “soluções” encontradas para substituir a famigerada taxa TSU, entre as quais o novo escalonamento do IRS, os cortes nas reformas, nos subsídios e na saúde (para referir apenas três áreas de vital importância na  qualidade de vida dos portugueses) são tão brutais que as consequências para a economia portuguesa só podem ser devastadoras. Desde logo, pela contracção da despesa familiar, para equilibrar um orçamento muitas vezes deficitário e onde, para grande parte das pessoas, se tornou vital escolher entre uma refeição e a medicação. Depois, o corte em serviços tão essenciais como a saúde, onde as taxas moderadoras e a diminuição de meios fez disparar o tempo das listas de espera ou o tratamento de doentes em estado terminal. Finalmente, a redução de consumo generalizado, que irá afectar sectores essenciais para a economia, como o pequeno comércio e a  restauração, onde a taxa máxima do IVA levará à falência milhares de pequenos e médios empresários. Desnecessário será dizer que outros tantos milhares de trabalhadores irão juntar-se ao exército de desempregados (1.3 milhões) no próximo ano e que, por essa altura, muitos dos que hoje ainda auferem um subsídio, já não receberão nada!
Um verdadeiro cenário de horror,  há muito anunciado na “cartilha” neo-liberal que nos governa e que, por esse Mundo fora, vem impondo uma receita com o fim último de devastar as economias mais débeis e, dessa forma, poder impor um novo contrato social e salários mais baixos. A primeira parte do programa em curso está, portanto, a resultar: o Choque.
Perante tal cenário, previsto por especialistas dos mais variados quadrantes em Portugal e no estrangeiro, as pessoas começam a perceber que, não só a sua vida vai piorar drasticamente nos próximos anos,  como não há fim à vista para a austeridade e (o que é pior) os sacrifícios que lhes pediram não serviu para nada! 
É esta consciência civil, acelerada nos últimos meses pelas medidas fundamentalistas de um governo “à nora” que nem com sacrifícios da população consegue cumprir as metas a que se propôs, que está a provocar uma onda de indignação em todo o pais.
Prevendo o pior e sem soluções para uma crise, também ela provocada pelos partidos da coligação que nos governa, Passos Coelho e os seus “spin doctors” espalhados pelos mais diversos meios de comunicação, tentam convencer-nos diariamente da inevitabilidade da austeridade. Não há alternativa a estas medidas, dizem, porque a alternativa seria sempre muito pior. A segunda parte do programa está, portanto, a resultar: o Pavor.
Mas, nem tudo são rosas e o - aparentemente calmo - povo português começa a rebelar-se. Primeiro nas redes sociais, depois nas manifestações mais ou menos espontâneas e, agora, com uma cobertura que atinge dezenas de cidades portuguesas em simultâneo. Nunca, como hoje, a consciência civil foi tão grande. Também na rua, porque a democracia não se esgota na representatividade do parlamento. Muito menos, num parlamento completamente tolhido pelos “lobbies” e interesses da partidocracia reinante.
É neste quadro que a Igreja, ontem pela voz do Cardeal Policarpo e hoje pela voz do padre e teólogo Carreira das Neves, vem alertar para a “ditadura da rua” que não pode governar num regime democrático, onde o parlamento é o único lugar para o debate politico...
Não são inocentes estas palavras. Com a Igreja em crise, a crise actual da sociedade portuguesa pode ser uma  “benesse” para os espíritos cristãos, sempre tão  solícitos a acudir aos pobrezinhos e apavorados da vida. O Banco da Jonet que o diga! Por alguma razão, a Igreja não paga impostos e as suas fundações não foram abrangidas nos recentes cortes que atingiram muitas dessas instituições.
Como se não bastasse o governo, e a sua politica de “choque e pavor”, ainda temos de aturar a Igreja, com a sua politica de resignação.

Na rua!


2012/10/12

O que está em causa


Uns chamam-lhe marretada, bomba, bomba relógio, bomba atómica, massacre, saque, roubo, assalto, à mão armada ou não, conforme as versões, tsunami, terramoto, carga policial, terrorismo de impostos! Outros (alguns até saídos dos meandros do governo e dos partidos que o compõem), concordando, dizem que é tudo isto, sim senhor, mas por culpa dos socialistas. É por culpa dos socialistas que a coligação PSD/CDS (que disse que nunca culparia governos anteriores) nos vem agora cortar nos serviços para os quais descontámos já com os nossos impostos e deduções —apoios sociais, saúde, educação, justiça, cultura, etc— e é por culpa deles que, se queremos usufruir do que pagámos, teremos de pagar agora mais.
Dizem que é pelo facto de os socialistas terem gastado à tripa forra que agora "temos" de pagar mais e mais e ter menos e menos.
Será, mas outros explicam entretanto que, ao fazer tudo isto, a situação vai piorar, ou seja, vamos ficar sem o pouco que temos, nos custou já tão caro, pagar mais, e, simultanenamente, vamos perder mais empregos, vamos ficar a ver a recessão aumentar, vamos ficar a ver o que na origem era um problema com uma qualquer solução, transformar-se num problema irremediavelmente insolucionável. Vamos também ficar a ver  que, depois disto, depois de ficarem sem direito ao Estado para o qual contribuiram, os poucos que restarem deste processo vão ter de pagar ainda mais, não para resolver os problemas, mas para não terem solução.
Ouvimos falar do OE2013 (é disso que tenho estado a tratar) e, dizem outros, finalmente, que não há onde ir buscar mais dinheiro. Não há forma de pagar a dívida indo buscar apenas dinheiro à despesa. As instituições estrangeiras avisam que assim é: por aí a coisa não vai lá. Segundo podemos ler, de facto, no OE prevê-se que na renegociação das PPP, por exemplo, se irá recolher 200 milhões de euros... Pouco mais do que um simples jackpot do Euromilhões em dia mais gordo. Assim, de facto, a coisa não vai lá.
O primeiro ministro fica enxofrado quando lhe chamam ladrão. Terá razão, coitado. Acho, contudo, que, para evitar mal entendidos, estava na hora de ele explicar —muito devagar e sem perder a compostura que o cargo lhe exige— todo este absurdo, antes que o povo o conduza ao cadafalso.
Porque é isso que está mesmo em causa. Não vá ele ter dúvidas...

2012/10/10

Rigor científico

Todos os ex-presidentes da república se têm pronunciado contra o estado actual da governação, condenando-a de forma explícita. Ao fazê-lo, está também implícita uma crítica unânime à actuação do actual PR. Se tomarmos estas críticas pelo seu valor facial, a análise destes três personagens, digna da maior atenção, é certeira e demolidora.
Eanes diz que "um país que se preza não deixa cidadãos em dificuldades," acrescentando em jeito de alerta que "quando não há unidade num país, os homens passam muito rapidamente da resignação à indignação."
Sampaio faz notar que "se não se conseguir ver a luz ao fundo do túnel, a esperança desaparece, há pessoas dispostas a acreditar em tudo, e é por isso que os extremismos estão a florescer," advertindo ainda, cauteloso, que a "austeridade excessiva pode prejudicar terrivelmente a democracia."
Mário Soares, por seu lado, afirma que "o Governo está moribundo e ninguém o toma a sério. Nem os empresários nem os trabalhadores. Nem gente do Povo nem intelectuais, professores ou cientistas." 
Pelos vistos, nem todos os cientistas pensam assim. Manuel Villaverde Cabral, por exemplo, acha que não. Na sua opinião, as críticas dos presidentes são "populistas" e servem apenas para "afagar o ego daqueles que viram os seus rendimentos diminuir." Porque é que não tentamos ajudar o governo," pergunta, espantado, o sociólogo, já que tudo por que passamos neste momento é fatal e a solução está fora do nosso alcance? Por que é que não ajudamos o governo, se ultimamente ele até conseguiu uma extensão do período de pagamento, sem aumento do juro?
De facto, "por que é que não ajudamos o governo?" Ora aí está uma boa pergunta para o sociólogo responder em vez de fazer perguntas que, longe de credibilizarem o rigor do cientista, mais indiciam um raciocínio fatalmente esclerosado?

2012/10/06

“Luísa Trindade”

foto Natacha Cardoso/Dinheiro Vivo
Não correram bem as comemorações do 5 de Outubro. Desde logo, por ser a última vez que a data era oficialmente comemorada. Depois, a escolha, envergonhada, de um pátio interior para a celebração do feriado, ao arrepio da tradição de um século que costumava juntar a população lisboeta na praça do município. Ainda antes do pífio discurso de Cavaco (mais um), o caricato episódio da bandeira, símbolo maior do trágico momento que Portugal atravessa. Finalmente, o grito desesperado de uma mulher que ousou quebrar o protocolo e dizer, alto, aquilo que muitos de nós gostariam de dizer aos governantes actuais. Ninguém pode ser humilhado e suportar um vexame eternamente. Os actuais sacrifícios exigidos à maioria da população portuguesa, para além de insuportáveis, são desiguais na sua aplicação e não apresentam saídas para a crise do endividamento. É esta falta de esperança generalizada que desencadeou os protestos dos últimos meses, materializados nas manifestações de Setembro e nos constantes cercos a que os membros do governo são actualmente sujeitos. As pessoas estão a perder o medo atávico de que eram acusados os portugueses e isso é bom. A impunidade não pode passar. Foi isto que o protesto lancinante da Luísa Trindade nos ensinou. São mais importantes as imagens da sua revolta que todos os discursos pensados para a ocasião. Se nada já era igual depois do 15 de Setembro, tudo será diferente depois do último 5 de Outubro oficial. À Luísa, o devemos. A “Teresa Torga” do nosso desencanto.

2012/10/05

De pernas para o ar



Eduardo Galeano escreveu um livro chamado "De Pernas para o Ar". O livro relata um mundo onde o vício é virtude e a virtude é algo a abater. Exemplos que podiam ilustrar adequadamente este livro de Galeano abundam em Portugal. Este aconteceu ainda hoje de manhã.
A imagem de Natacha Cardoso é brutal. Alguns dizem que é o retrato do País. Não é, é o retrato de Cavaco Silva. "Muitos portugueses vêem-se em situações de grande dificuldade. Situações que os seus pais nunca conheceram e que eles próprios nunca julgaram que viriam a atravessar," disse Cavaco no discurso do 5 de Outubro que decorreu hoje em cerimónia clandestina. O discurso é impróprio de um Presidente da República.
De um Presidente da República esperar-se-ia uma posição activa, preventiva, crítica, viril, contundente. Cavaco é passivo, reactivo, acrítico, piegas e balofo. Cavaco é o primeiro responsável por este estado de coisas, mas dele se esperaria agora —esperaríamos nós todos, os Portugueses de quem ele é Presidente— contributo decisivo e eficaz para não deixar arrastar este processo de apodrecimento que ele iniciou, de que se queixa, mas que teima em manter activo.
Já estamos há muito habituados à falta de sentido de Estado e de verdadeira dimensão política dos agentes políticos portugueses, ao rasteirismo da sua postura, ao oportunismo ou à falta de estamina da sua actuação. Mas, também nessa medida, é preciso dizer basta!
"Nestas alturas, há o risco de nos deixarmos abater pelo desânimo e pelo pessimismo. De sermos assaltados por sentimentos de medo e de frustração. De incerteza quanto ao nosso futuro e quanto ao futuro dos nossos filhos," acrescentou distraído o presidente, pouco depois de, ao som do Hino Nacional, ter erguido a bandeira de Portugal ao contrário. Um presidente de pernas para o ar.

2012/10/04

Querer e poder

Os analistas fizeram as contas e a conclusão parece ser unânime: o novo pacote, ontem anunciado pelo ministro Gaspar, mantém e agrava mesmo a desigualdade na divisão do esforço de recuperação da bagunça financeira do país.
O povo rejeitou a "solução" da TSU. Em resposta o governo apresenta um conjunto de medidas mais abrangente e ainda mais gravoso para a vida dos portugueses. A incoerência é manifesta, o embuste é total, a provocação é clara.
O povo tomou, entretanto, plena consciência de todas estas realidades. Colectivamente, algo fez "clique!" Não há retrocesso possível. O governo, porém, continua a agir como se o calendário marcasse ainda 14 de Setembro.
O povo não quer esta austeridade, o governo não quer outra austeridade. O conflito de interesses não oferece dúvida. O embate é inevitável.
Querer é poder, mas o poder reside e vai sempre residir no povo. Adivinhem quem é que vai então sair mal deste confronto...

2012/10/03

Esquerda e redenção

Vivemos em Portugal um momento ímpar. Existe hoje uma consciência dos problemas do país e dos meios para alcançar um devir mais equilibrado como, atrevo-me a dizer, nunca tivemos desde o 25 de Abril. Não estou a dizer que é suficiente para alcançar os desejados objectivos, mas sim que existe essa consciência, manifestada de mil formas, mais ou menos explícitas, como nunca se viu.
Essa consciência foi ganha no quadro do mais violento ataque feito contra o povo trabalhador português de que há memória, no meio de uma recessão sem precedentes, de um desemprego trágico, do esbulho inaudito dos rendimentos do trabalho e de uma tentativa reles de ataque aos direitos mais básicos do povo, incluindo o da liberdade de expressão.
Quando centenas de milhar de portugueses se movimentam nas ruas, quando o clamor atravessa e une gerações, hierarquias e género, e até derruba fronteiras sociais e políticas, antes julgadas intransponíveis, que resposta vemos nós do lado dos partidos da oposição?
O PCP e o BE, o mais que conseguem fazer, neste quadro de enorme revolta, agitação, angústia e expectativa por alternativas políticas credíveis, perante a arrogância indescritível do poder, é apresentarem juntos duas moções de censura separadas. Perante o quadro catastrófico e a necessidade reclamada por milhões de um sério esforço de união em torno de soluções verdadeiramente alternativas e eficazes para os problemas do país, o PS chuta para canto, e confirma-nos o papel que, por iniciativa própria, atribui ao troço "esquerdo" do arco do poder: malhar mais no bombo e juntar desastre ao desastre. Um verdadeiro escarro este PS.
Estão todos equivocados. O que o clamor popular e esta nova consciência revelam é que a maioria já percebeu perfeitamente ao que vêm os do poder, situem-se eles no arco ou nas órbitas. Já se percebeu a sinceridade das suas posições. E, não duvidem, vão ser castigados, eles também, duramente. Não me parece haver redenção possível.

2012/09/29

Case Study

As declarações de António Borges, hoje preferidas em Vilamoura perante uma plateia de empresários portugueses e estrangeiros, revelam o pior das nossas “elites”.  Como se não bastasse a arrogância com que sempre trataram quem trabalha (que mais direitos não tem do que pagar impostos), chama “ignorantes” aos empresários que ousam duvidar de medidas que só os poderia beneficiar...
Depois de afirmar que estes empresários chumbariam no primeiro ano da sua faculdade, Borges foi mesmo mais longe, ao declarar que o regime de austeridade imposto em Portugal estava a revelar-se um sucesso. No FMI (onde trabalhava à época do resgate português) ninguém acreditaria que, menos de dois anos depois,  a situação portuguesa estivesse debelada. A “hemorragia” (nas suas próprias palavras) tinha sido estancada.
Claro que isso foi conseguido à custa de sacrifícios, mas ninguém de bom senso pensava que seria possível de outra maneira. Portanto, a primeira fase do programa estava a revelar-se um êxito, de tal forma que deve ser considerado um verdadeiro “case study”.
Ao contrário do que muitos empresários (Mira Amaral, CIP) e diversos fazedores de opinião, hoje vieram dizer, não penso que Borges seja tão parvo como o pintam. Não se trata de uma “gaffe”, mas de um pensamento, alicerçado na escola do INSEAD,  Goldman & Sachs e FMI,  instituições por onde passou e que primam pela estratégia de “choque e pavor” que caracteriza a sua acção pelo Mundo. Nesse sentido, Portugal não deve ser considerado uma excepção, antes um laboratório onde as teorias de homens como Gaspar e Borges, servem uma politica específica. A politica de quanto pior melhor, para desregular a economia, privatizar a qualquer preço e, nessa altura, poder impor as condições mais favoráveis ao modelo neo-liberal que defendem..
É Borges, o verdadeiro “case study”. Devemos estudá-lo, para melhor combatê-lo.

2012/09/28

Mengele


Queria hoje recordar aqui Josef Mengele.
"Josef Rudolf Mengele foi um oficial das SS e médico no campo de concentração de Auschwitz. Obteve um doutoramento em antropologia pela Universidade de Munique e em medicina pela Universidade de Frankfurt. Começou a ganhar notoriedade por ser um dos médicos das SS que supervisionava a selecção e o transporte dos prisioneiros, decidindo quem iria ser liquidado e quem iria para trabalhos forçados, mas a razão principal da sua fama resulta das experiências que executou com os prisioneiros do campo de concentração, incluindo crianças. Por tudo isto ficou conhecido como Anjo da Morte (adaptado da Wikipédia).
Para mais esclarecimentos ver aqui.

2012/09/24

Confiança

Muita gente, muita gente sem partido, politicamente adormecida e aparentemente indiferente, se dá conta agora que tudo isto resvalou para um problema cuja resolução implica mais do que remendos legislativos e "toques" nos diplomas. O problema está no próprio regime. A crise é mais funda. O problema não é a TSU, o problema não é de mais ou menos impostos. O problema não é, sequer, o da total ausência de medidas "estruturais," de horizontes, de perspectivas de desenvolvimento. O problema é o próprio regime e a confiança que as instituições e qualquer dos políticos actuais merecem ao comum dos cidadãos.
A pergunta que toda a gente faz, independentemente da tendência política ou da falta de inclinação para a política, independentemente de andarem a gritar contra este regime desde há muito ou apenas desde o passado dia 15, independentemente de fazerem ou não parte do grupo dos "idiotas" do poema de Brecht que se gabaram durante tanto tempo de não se interessarem por política e, mesmo, de não terem contribuído, por falta de comparência, para a situação actual (afinal tudo é, como dizia o Brecht nesse poema, político e afinal o lixo lançado para o baldio acaba à nossa porta), a pergunta que toda a gente faz é esta: mesmo que fosse legítimo, mesmo que fosse inevitável, de facto, o massacre de que são vítimas os portugueses neste momento, o que vem a seguir? Isto porque as causas de tudo o que se passa e as justificações para o massacre continuam obscuras e, certamente, ipso facto, a sua eventual "correcção", parece hoje claramente, servir apenas para manter tudo na mesma, logo teríamos, na melhor das hipóteses, soluções com maturidade reduzida (para usar terminologia do inimigo...). E depois?
O problema é, pois, outro. Trata-se de um problema de confiança. Por mais saltos mortais que qualquer dos actuais e passados responsáveis políticos dêem, por mais malabarismos que façam, por mais coelhos que saiam da cartola (no sentido literal e metafórico da expressão...), por mais discursos que produzam, mais ou menos dourados, mais ou menos realistas, mais ou menos patetas, mais ou menos insultuosos para a generalidade do povo português, por mais que tentem, os bonzos do regime, o poder  e os serventuários do poder estão totalmente desacreditados. Ninguém acredita em nada e ninguém acredita em ninguém —perdoem-me as duplas negativas— ligado a este poder. Quando digo ninguém, quero dizer isso mesmo: a desconfiança é total nas pessoas, nas instituições e nos valores que dizem defender e servir. Tudo parece uma ilusão. Parece que vivemos numa fantasia de Walt Disney.
Ninguém acredita em Passos Coelho, este aldrabão que começou por dizer uma coisa e acabou a fazer outra. Ninguém acredita em Gaspar. Que mente tortuosa se esconde por detrás daquela conversa flácida? Ninguém acredita no Portas, o rei da baderna! Quem acredita na Assunção da Fé? Quem acredita na Conjectura de Crato? E, claro, ninguém acredita no Relvas das equivalências, no Macedo das fábulas ou no Álvaro (quem?). Os outros nem sequer para anedota, infelizmente servem. Ninguém acredita na AR, que se sabe, por factos, ser hoje uma agência de gestão de activos. Ninguém acredita no Conselho de Estado (onde, como alguém dizia, apenas o Lobo Antunes se safa de ter as mãos sujas de sangue por ser cirurgião...). E ninguém acredita, desgraçadamente, neste Presidente da República! Como acreditar em Cavaco Silva?! E como era importante acreditar no Presidente da República.
O problema não é de fé, mas é de acreditar.
Muita gente, dizia eu, depois de um click qualquer que se produziu, sem grandes explicações, na nossa sociedade, poderá perceber agora o verdadeiro e profundo significado da expressão "há mais vida para além do défice." É preciso redefinir o regime e reconquistar a confiaça. Sem isso os problemas, nenhum problema, estes que temos entre mãos ou outros que apareçam no futuro, se resolvem.
Mas, muita gente está também assustada porque percebe, finalmente, que desenvolvimento e democracia caminham sempre de mãos dadas e não podem largá-las nem por um momento. A tarefa afinal é bem mais complicada e trabalhosa, e exige mais dos treinadores de bancada .
Também eu estou assustado porque não percebo se toda a gente percebeu que está na altura de agir, está na altura de colocar no contentor velhos dogmas, está na altura de procurar entendimentos e consensos, de assumir claramente as diferenças, tirando partido das semelhanças. Do respeito pelas diferenças entre os semelhantes e pelas semelhanças entre os diferentes nasce a confiança e a possibilidade de entendimentos.
Será que todos os indignados percebem que, depois de perceberem isto, será então altura de dar expressão política e institucional a toda essa acção? Será que estão à altura do momento? Será que os indignados percebem isto?
Está na hora de confiar, usando critérios muito mais apertados para estabelecer os padrões de confiança.

2012/09/17

Desenrascanços

Os portugueses são os reis do improviso. Uma qualidade muito apreciada nos principais países de acolhimento da emigração portuguesa, onde o aperto das regras faz por vezes passar ao lado da solução simples e óbvia dos problemas. O desenrascanço português surge assim como uma mais valia que por vezes dá jeito e proporciona admiração pela espécie lusa.
McGyver, por exemplo era afinal (sabemo-lo agora) português, mas os produtores da série omitiram durante anos esse facto...
O desenrascanço é, como disse, útil... quando as coisas estão organizadas. Quando essa organização falta, o desenrascanço não é solução para o problema, é um problema para a solução.
Percebe-se que a este governo falta essa organização base, sobre a qual a arte do desenrascanço pode ser praticada com vantagem. Eles bem tentam dar imagem de organização e seriedade, mas há muito que se percebeu que este governo é um enorme bluff.
Ficámos há pouco a saber que a Comissão Europeia condiciona o desbloqueamento da próxima tranche do empréstimo ao cumprimento do acordo, nomeadamente, no que respeita a questão da baixa da TSU.
Ou seja:
1- Mantendo a tradição lusa, o governo desenrasca medidas para combater o défice que se suspeitou desde o início serem inconstitucionais. Se alguma vez as decisões do governo se pareceram com algo fruto de madura reflexão, cuidada preparação e claro domínio dos dossiês, isso foi fruto de uma ilusão habilmente encenada. Ninguém pesca um boi do que está a tratar.
O ministro Gaspar foi disso o exemplo mais eloquente. Com aquela imagem solene e douta que todos lhe reconhecemos, adormecia o pagode, deliberadamente, tentando dar ar que havia mais qualquer coisa por detrás da forma geométrica e do verbo entediante, quando afinal, é agora claro, toda aquela encenação tecnocrática servia para esconder  que o Ministro das Finanças não passa afinal de um desenrascado a agir no quadro do caos total. Como explicar  de outra forma os erros de palmatória que este ministro cometeu? 
2- O TC acabou, sem surpresas, por declarar as medidas principais da política de consolidação orçamental, de facto, inconstitucionais.
3- Perante o novo problema, Passos Coelho e a sua pandilha resolvem desenrascar a baixa da TSU, que, pelos vistos, deixou os parceiros da coligação à rasca.
4- Coelho deverá, sabemo-lo também agora, ter desenrascado argumentos que "convenceram" Portas de que se a medida não fosse para frente, as futuras negociações com a troika ficavam comprometidas.
5- A medida é mesmo aprovada e anunciada, e... Surpresa! o país fica em pé de guerra!
6- Ai, ai, ai, ai, ai! meu Deus! Como é que a gente vai desenrascar isto agora?
7- Mais: ficou-se agora a saber que "esta medida foi proposta pelo Governo," como foi referido há pouco pelo porta voz da Comissão.
8- Ficou-se também a saber que é verdade: se esta proposta do governo português não for para a frente, as negociações com a troika estão mesmo comprometidas.
9- Estranhou-se durante algum tempo que Portas não rangesse, mas sabemos agora que ele não rangia porque sabia, e que sabia que se rangesse ficávamos a perceber que era um tanso e iria ficar colado ao desenrascanço. Ficou, coitado, com a alternativa no bolso, sem nada poder fazer que evitasse deitar tudo a perder, como veio a acontecer...
10- Sem o cumprimento desta medida, que foi proposta pelo governo, a próxima tranche não pinga.  Aquilo foi o que foi acordado, aquilo é o que tem de ser cumprido. Mas, o acordo poderia ter sido outro, pelo que se percebe.
11- O Coelho desenrascou uma solução para desenrascar um problema, que enrascou a coligação, que enrascou a relação do governo com os outros orgãos e parceiros institucionais, que enrascou o governo perante a Comissão, e, pior ainda, que enrascou em defintivo a relação dos governantes com os governados. Not bad for a day's work...
12- Percebe-se agora o "custe o que custar" e percebe-se agora também o "fiquei convencido" do Portas.
Uma monumental bota que o Coelho tem agora que descalçar. Aconselho a elegante descalçadeira da imagem, à venda on line por uma quantia que estará certamente ao alcance da leporídia criatura...


PS- É claro que há em tudo isto, ao mesmo tempo, algo de muito positivo e extremamente saudável. O porta voz da sisuda Comissão disse, enquanto lembrava que o acordo era para cumprir, que a medida anunciada pelo governo "visa aumentar a competitividade das empresas portuguesas, para melhorar a sua capacidade em termos de exportações, mas também de criação de emprego (...) e tem de ser vista - e isto é muito importante na perspectiva da Comissão Europeia - no contexto de um conjunto global de medidas que visam aumentar a competitividade na economia portuguesa."
Quem pensou que a troika era uma coisa séria, organizada, metódica, capaz de pôr ordem no caos da actual governação portuguesa e avaliar com critério imparcial a acção de Passos e dos seus muchachos, quem alguma vez pensou que haveria males que vêm por bem, depois de ler estas palavras, fica com a sensação que os troikos já foram tomados pelo clima e estão rendidos ao grande desígnio nacional, ou então alguém lhes coloca umas coisinhas giras no café matinal.

2012/09/16

Point of no return?

Foi bonita a festa (pá), ouvia-se dizer ontem na praça de Espanha.
Foi, mas não chega.
Da mesma forma que a democracia não se esgota na representatividade parlamentar, também a democracia participativa não se esgota em manifestações, por muita gente e palavras de ordem que estas tenham.
Sim, é preciso correr com estes vendilhões do templo, que não olham a meios para atingir os seus fins, ainda que no fim só venham a restar zombies incapazes de resistir seja ao que for.  Para correr com eles (porque são muitos e usam diversas máscaras) todos os meios legais  são lícitos, pois os últimos 38 anos mostraram que não aprendemos nada. A prova é que continuamos a votar nos partidos que, alternadamente, vão espoliando o pais e empobrecendo a população, enquanto defendem os interesses (nacionais e estrangeiros) daqueles que sempre viveram à custa do estado e da exploração sistemática de quem trabalha e quem desconta para os sustentar.
A manifestação de ontem, como aquela que reuniu centenas de milhares de manifestantes no dia 12 de Março de 2011, foi boa (muito boa), na medida em que as pessoas ousaram descer á rua e dizer “basta!”. Podem não saber o que querem, mas começam a saber o que não querem. É um princípio. Por algum lado temos de começar.
Mas, não devemos ter ilusões. Não é por gritar “que se lixe a troika!” que esta se vai embora. Veja-se a Grécia, onde a população desce às ruas todas as semanas sem que as medidas de austeridade diminuam. Qual é o limite? Das medidas e da resistência. Estas são as questões.
Cavaco Silva já percebeu a mensagem e, impedido como está de se pronunciar devido à imagem negativa que o persegue, mandou Manuela Ferreira Leite avisar o governo. Esta, que nunca escondeu o desprezo pelo jovem Passos, encarregou-se na perfeição da mensagem, Fê-lo tão bem que conseguiu unir toda a gente (da esquerda à direita) contra o jovem turco. E o resultado está à vista: 40 cidades portuguesas vieram à rua manifestar-se contra este governo. É obra!
Segue-se o segundo acto. Perante o descrédito do regime, Cavaco convocou o “Conselho de Estado”. Basta olhar para a sua constituição (ex-presidentes na reforma, comentadores de televisão, economistas da moda e neurocirurgiões da ribalta) para não ter ilusões. Para dar um ar de democracia (e fazer o contraditório) convidou o Gaspar.
A estratégia é clara: é preciso que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma.
Até é possível que perante a derrocada da receita da Troika, o governo tenda a inflectir de estratégia. Talvez até saia o Relvas, ou mesmo o Gaspar...
Mas, será que mudará alguma coisa na forma como os peões internos da Troika vão abordar a crise portuguesa, eles que apenas estão interessados em que paguemos aos credores e em desregular o mercado de trabalho interno para dessa forma nos tornar mais submissos? Não. Não vai mudar nada de essencial. É por isso que a manifestação de ontem não nos deve iludir.
A manifestação foi um acto de cidadania e, nesse sentido, um ponto de não-retorno. Nada será como dantes, a partir de agora. Mas, os representantes do “centrão” continuarão lá e a defender os seus interesses. Ora os seus interesses, não são necessariamente os nossos. E é nesta dialéctica de contradições que nos devemos fixar, com o risco de nos fixarmos demasiado na árvore e perdermos a floresta de vista.