2021/01/02

Carlos do Carmo, o maior do (fado) "maior"



Começou mal, o ano. 

Com a morte de Carlos do Carmo (1939-2021) desaparece o mais emblemático intérprete da canção de Lisboa e, certamente, uma das suas melhores vozes. Para muitos, o maior intérprete masculino do Fado e aquele que (a par de Amália) maior reconhecimento teve no estrangeiro. A sua carreira, sabiamente gerida, prolongou-se por 57 anos. Entre 1963, ano da primeira gravação em disco e 2020, um ano depois do último concerto em Lisboa, gravou centena de fados e canções, algumas das quais são já parte do património nacional. Quem nunca ouviu e troteou os fados "Loucura", "Por morrer uma andorinha", "Fado da Saudade", "Gaivota", "O Cacilheiro", " Canoa", "Os Putos", "Lisboa, Menina e Moça", "Um Homem na Cidade", ou o "Fado do Campo Grande"?...

Dono de um timbre e dicção inconfundíveis, Carlos do Carmo foi, para além de intérprete de excepção, um esteta preocupado com a dignificação do Fado e a sua renovação. Entre os muitos artistas e poetas que cantou, merecem referência especial Ary dos Santos, Paulo de Carvalho, Fernando Tordo, Vitorino de Almeida, Vasco da Graça Moura, José Afonso, José Saramago, Manuel Alegre, António Lobo Antunes e Maria do Rosário Pedreira.  

Actuou nas mais prestigiosas salas do Mundo, no Olympia em Paris, no Canecão no Rio de Janeiro, na Alte Oper Frankfurt, no Concertgebouw em Amsterdão, no Vredenburg em Utrecht. Ganhou o Prémio Goya para a melhor canção no filme "Fados de Saura" (2008) e o Grammy Latino (2014), pela sua carreira. Destaque, ainda, para inúmeros prémios e condecorações, para além do prémio SPA, prémio José Afonso, diversos Globos de Ouro e as Ordens de Comendador da Ordem do Infante, Grande Oficial da Ordem de Mérito, Chaves da Cidade de Lisboa e Medalha de Mérito Cultural.

Penso ter começado a gostar de Fado, com Carlos do Carmo. Mais exactamente, em 1970, quando recebi como prenda de anos na Holanda (onde vivia) um EP, gravado ao vivo, com apenas 3 canções: "Pedra Filosofal", "A Voz que tenho" e "Menino de Oiro". O cantor era acompanhado por uma orquestra e as letras cantadas em tons de fado-canção. Uma aproximação ao fado tradicional que eu desconhecia e que, durante muito tempo, acompanharam as minhas noites de exílio. Foi já depois do 25 de Abril que vi, pela primeira vez, o cantor. Estávamos em 1976 e Carlos do Carmo representou Portugal no Festival de Eurovisão que, nesse ano, teve lugar em Haia. No dia seguinte ao Festival, a Embaixada Portuguesa, ofereceu uma recepção em Amsterdão, onde o fadista cantou para a comunidade portuguesa residente naquele país. Uma revelação. Tornei-me fã. 

No ano seguinte, seria editado "Um Homem na Cidade", por muitos considerado o seu disco mais emblemático e que revolucionaria a linguagem do Fado. Já em 1978, em férias, confirmei a sua popularidade, durante um Festival de Música de Intervenção, no histórico Clube Atlético de Campo de Ourique. Sala à "cunha" para ver e ouvir Mário Viegas, José Mário Branco e o GAC, Fausto, Vitorino, Samuel e Carlos do Carmo. No meio de canções revolucionárias, os fados de Carlos do Carmo seriam os mais aplaudidos da sessão. Um cantor todo-terreno. 

Os anos oitenta, marcariam a internacionalização da sua carreira. Em Dezembro de 1980, Carlos do Carmo e o grupo "Trovante", são convidados para actuarem no auditório da Vrije Universiteit de Amsterdão. No intervalo do concerto, chega-nos a notícia do assassinato de John Lennon. Nos bastidores, gera-se uma consternação absoluta. No regresso ao palco, o fadista alude ao assassinato do ex-Beatle. Aplausos da sala e mais uma actuação memorável. Outras se seguiriam naquele país, onde regressava amiúde.

Em 1989, o Círculo de Cultura Portuguesa na Holanda, em colaboração com a Cooperativa Cultural Etnia, produz o espectáculo "Portugal: a raiz e o tempo", dedicado à música urbana.  Do programa, constava uma comunicação, a cargo de Eduardo Paes Mamede e um concerto interpretado por Carlos do Carmo (fado), José Mário Branco (canção de intervenção) e António Pinho Vargas (jazz). No total, doze músicos em palco, que actuaram em Amsterdão, Haia e Roterdão. Quatro dias de cumplicidades e amizades fortalecidas. 

Em inícios dos anos noventa, Carlos do Carmo voltaria à Holanda, para actuar em diversos casinos do país. À excepção de alguns funcionários do Consulado de Amsterdão, não havia portugueses na sala do Lido, em Amsterdão. A produção, dessa vez, ficou a cargo de um empresário francês. 

Estamos em 1995. No último ano da minha permanência na Holanda, recebo um telefonema do Vredenburg (Utrecht), uma das salas mais prestigiadas do país: Anneke van Dijk, a programadora de música ligeira, queria organizar um ciclo de Fados, mas não conhecia ninguém,  para além de Amália, que já lá tinha actuado. Preferia um fadista masculino, mas podiam ser dois...Sugiro Carlos do Carmo e um jovem, em início de carreira, Camané. Ela aceita. Seis meses depois, regresso definitivamente a Portugal. Estabelecidos os contactos e firmados os respectivos contratos, Carmo e Camané, partem para a Holanda onde, em Outubro de 1996, inauguram o ciclo de Fados do Vredenburg, que se prolongaria por  mais de dez anos. No dia do concerto, impaciente, apanho o avião para a Holanda onde assisto a mais um concerto memorável. Não podia perder a oportunidade...

Em 1997, por ocasião do 1º da primeira edição do "Festival Ibero-Langue D'Oc" (Portugal, Espanha e Occitania) em Toulouse, desloco-me a convite da organização, para falar sobre música popular portuguesa. Para além das comunicações, havia música das regiões representadas. O representante português era (who else?) Carlos do Carmo. Surpresa mútua e ocasião para festejarmos e pensar num novo projecto. 

A ocasião, surgiria em Junho de 2000, no âmbito de um encontro Luso-Brasileiro, organizado pelo Inatel na FIL de Lisboa. Encarregaram-me de programar a parte musical da sessão. Sugeri o Carlos do Carmo. O presidente do Instituto "franziu o sobrolho" e perguntou se o Carlos era "caro" e se "ainda" era do Partido Comunista...Respondi que não sabia ao certo, mas tratava-se de um fadista de qualidade e a qualidade paga-se. Convencido, o homem, anuiu. Como era esperado, mais um concerto memorável. No fim, o Carlos, visivelmente satisfeito, confidenciava-me que nunca tinha sido convidado pelo Inatel (foi preciso eu trabalhar na instituição, para que isso pudesse acontecer). Bom, valeu a pena, pensei...

Em 2003, voltávamos a encontrar-nos, agora no Museu do Fado, em Lisboa, por ocasião de uma exposição sobre os seus 40 anos de carreira. Um marco. Seguir-se-ia novo encontro, em 2006, no âmbito do filme "Fados de Carlos Saura", onde seria apresentado o projecto do filme do mesmo nome. Anos mais tarde, foi a vez da Candidatura do Fado a Património Imaterial da Humanidade (UNESCO), que comemorámos juntos nas instalações do museu, em 2011. Em 2013, voltaria a encontrá-lo, desta vez, nos Jerónimos, num concerto ao ar livre, comemorativo dos 50 anos de carreira.  

A última vez que o vi cantar, foi no Teatro Thalia, durante o velório do pintor Júlio Pomar, de quem chegou a gravar um fado. Uma singela homenagem, onde apenas interpretou duas canções. 

Quando, em Fevereiro de 2019, anunciaram o seu último concerto (para 9 de Novembro desse ano), tentei arranjar bilhete. Debalde. O Coliseu esgotou com 10 meses de antecedência. Era expectável. Resta o vídeo, recentemente editado e transmitido, por estes dias, na televisão. 

Surge agora, a notícia da sua morte. Uma perda imensa, de um amigo e companheiro de múltiplas aventuras. Estamos todos mais pobres. Resta o seu legado.

Obrigado, Carlos.