2023/07/22

Estado da Nação (o discurso do copo meio cheio)

Como é da tradição, realizou-se na Assembleia da República a última sessão antes de férias, subordinada à discussão sobre o Estado da Nação. Uma sessão, em jeito de balanço, onde o governo e a oposição avaliam o ano governamental que, agora, termina.

Um ritual anual sem surpresas, onde o governo costuma defender as suas escolhas políticas e a oposição critica as políticas seguidas. No fundo, algo que se pode resumir ao "copo meio cheio" governamental e ao "copo meio vazio" da oposição. Nada de novo aqui. 

Como seria de esperar, o primeiro-ministro aproveitou a sessão para fazer um balanço positivo da governação (como não?) pintando de cor "rosa" uma realidade suportada por indicadores macro-económicos, ainda que as melhorias demonstradas não se reflitam na economia real (a vida das pessoas comuns).  Sobre os números apresentados por António Costa, os indicadores não podiam ser mais favoráveis:

A Economia Portuguesa (PIB) cresce 1,8% e a OCDE estima que possa atingir os 2,7% em finais deste ano. Acima da média europeia.

O Défice Orçamental (1,4%) descerá a 0,4%, até final do ano.

A Dívida Pública (110% do PIB) descerá até 103% em 2023 e será inferior a 100% em 2024.  

O Desemprego, atingiu mínimos históricos e estabilizou nos 6,4%.

O Turismo, voltou aos níveis pré-pandemia e já representa 10,1% do PIB nacional.

As receitas dos Emigrantes, atingiram 3.678 milhões de euros (a segunda maior dos países da UE).

O PRR (Programa de Recuperação e Resiliência) aprovado em Junho de 2021, para apoiar as economias dos países europeus atingidos pela pandemia, atribuiu a Portugal 16,6 mil milhões (dos quais 13,9% em subvenções). Posteriormente o valor foi aumentado para 22 mil milhões, a executar até 2026.

O "Programa Europeu de Coesão 20-20" (26,89 mil milhões) está a ser realizado, tendo já sido aprovados 87% dos projectos.

O "Programa Europeu de Coesão 20-30" (22.996 mil milhões) que apoiará 12 projectos, será realizado entre 2021 e 2027. 

Ou seja, as "contas" nunca estiveram tão boas e, não fora a pandemia, a inflação e a guerra (variáveis externas que o governo não controla) e viveríamos no "melhor dos Mundos". 

Acontece que o cidadão comum, como o Pessoa, não percebe nada de contabilidade e está mais interessado nas contas caseiras. Dito de outro modo, quer saber como é que paga as suas despesas diárias: habitação, saúde, alimentação, educação, transportes e, já agora, entretenimento (a que muitas chamam cultura). E é aqui que a "ºporca torce o rabo". Neste ponto, a oposição, de um modo geral, tem razão, ainda que as soluções apresentadas possam ser diferentes de partido para partido.

Sectores-chave como a saúde, a educação, a habitação ou os transportes, aqueles que mais preocupam o "homem comum" (a maioria da população) estão em crise permanente. 

Na saúde, e apesar dos "ratios" (médicos por habitantes), estarem dentro da média europeia, faltam profissionais em quase todas as especialidades na maioria dos hospitais públicos do país. Com a pandemia as consultas externas e as operações foram proteladas e estão atrasadas anos! São diários os relatos dos utentes sem médico de família (1.6 milhões de portugueses!), apesar das promessas feitas pelo governo (em 2017) de solucionar este problema até 2024 (nos 50 anos do 25 de Abril!). Não será desta, já se percebeu.

Na educação, um dos calcanhares de Aquiles do partido que chegou a eleger a "educação como paixão", as políticas não podiam ser mais desastrosas. A melhor ilustração desta situação, é a (justa) luta dos profissionais do sector (professores e não só) que, desde 2008, vêm lutando pela dignificação da carreira. A falta de docentes é crónica e tende a piorar, devido ao envelhecimento da classe, enquanto as taxas de abandono escolar e maus resultados em disciplinas nucleares, são sintomas que não podem ser ignorados. Que faz o governo? Atira com dinheiro para cima dos problemas, acaba com os exames parciais e deixa cair a Matemática como exame obrigatório! O facilitismo, no seu melhor.

A habitação, um problema estrutural nas grandes cidades, piorou nas últimas décadas, devido à liberalização do sector (Lei de 2012) e ao aumento exponencial do turismo, que retirou milhares de casas do sector de arrendamento, para o Alojamento Local e AirB&b. Como a construção de novas casas para arrendamento, não acompanhou esta tendência, faltam casas no mercado e as rendas dispararam em flecha. A renda média em Lisboa, aumentou em 37,9% em Maio, por comparação com o período homólogo em 2022. No sector privado, o metro quadrado está ao preço de Paris ou Milão, com valores médios de €2453 para Lisboa, €1521 para o Porto, €1381 para Setúbal e €1336 para Faro (dados do Sapo). Que faz o governo? Anuncia o pacote "Mais Habitação", que prevê o arrendamento coercivo de casas devolutas e expropriações, a troco de rendas pagas pelo estado. Entretanto, a ministra do sector, veio anunciar, com ar cândido, a entrega de 320 novos fogos para famílias da "classe média" (o que quer que isso seja). São necessárias mais de 100 000 novas habitações (única forma de fazer baixar os preços) e o governo não consegue tomar medidas estratégicas para o sector. A inoperância total.

Finalmente, os transportes: depois de décadas de investimento em auto-estradas (a política do "betão") e desinvestimento na ferrovia (mais de 1000 km de via encerrados nos últimos 30 anos), o governo resolveu "meter mãos à obra" e anunciar dois grandes projectos nacionais, que passam por recuperar comboios e locomotivas desactivados (pondo-as ao serviço em linhas secundárias, entretanto electrificadas) e abrir um concurso para aquisição de novos comboios. Os projectos estão em curso e já mostram resultados, mas não resolvem o problema de fundo: a falta de linhas de comboios de alta-velocidade e composições adequadas. Acontece que o concurso internacional, entretanto aberto para a construção de 117 novas composições, ao qual concorreram 3 empresas (francesas, suíças e espanholas) corre o risco de ser impugnado devido aos critérios de pontuação do júri, criticados por todos os concorrentes! Uma trapalhada (mais uma!) que nos faz temer pela resolução de um problema que não estará resolvido antes de 2029! Entretanto, Portugal continua sem ligação ferroviária a Espanha, desde a pandemia, enquanto não abre o ramal Évora-Badajoz (80 km) em construção há dois anos. A Renfer (espanhola) já se candidatou a explorar a linha quando esta estiver concluída. É caso para dizer: que venham os espanhóis! 

Como se tudo isto não fosse suficiente, resta uma questão central: a economia cresce pouco e o dinheiro  não dá para tudo (não há "folgas orçamentais", diz Medina). Essa é, pelo menos, a explicação dos liberais do governo, para justificar os baixos salários. A população está a empobrecer, mas os números macro-económicos são bons... Logo, "lá mais para a frente", as pessoas (o homem comum) irão sentir o efeito da economia. Esta é, pelo menos, a tese de  Fernando Medina (Finanças), Álvaro Beleza (SEDES), Francisco Assis (CES) e Sérgio Sousa Pinto (jurista e deputado do PS), todos eles reputados socialistas e subscritores de um artigo de opinião, recentemente publicado num jornal de referência. Com "socialistas" destes, bem podemos esperar sentados.                   

Entretanto, Costa, o "optimista irritante", deixou os conselheiros de estado a falar sozinhos e viajou até à Nova-Zelândia, para assistir a um jogo da seleção portuguesa de futebol feminino. Consta que o Conselho de Estado, convocado por Marcelo, prossegue em Setembro. Por esta, é que a oposição não esperava...