2006/12/30

Recomenda-se

Hoje, em especial hoje, gostaria de recomendar aqui a leitura de um livro chamado Bem Vindo ao Deserto do Real de Slavoj Zizek (Relógio d'Água, 2006).
"O liberalismo capitalista globalizado que se opõe ao fundamentalismo muçulmano é, ele próprio, um modo de fundamentalismo, pois na «guerra» actual «contra o terrorismo», estamos de facto perante um choque entre fundamentalismos," escreve Zizek.
Uma reflexão sobre a nova ordem ideológica depois do 11 de Setembro. Leiam, leiam que vale a pena.

2006/12/28

Educação de adultos

Os relatórios indicam que houve um aumento significativo do número de acidentes rodoviários, de mortos e feridos durante a operação de Natal montada pela BT-GNR, em relação, claro, ao que sucedeu no ano passado. É tristíssimo que isto aconteça.
O presidente do ACP veio logo aproveitar para zurzir no governo por causa das verbas supostamente retiradas às campanhas de prevenção que a PRP efectuava. A culpa de tudo isto seria, segundo ele, da educação. Ao não apostarmos no futuro, ou seja, ao não preparamos as crianças para mudar o actual status quo, estaremos, segundo ele, a agravar o problema. Mas, o porta-voz da BT disse, preto no branco, que a culpa é da falta de civismo dos condutores portugueses. Tudo o resto decorre daqui. Ou seja: mesmo que estejamos a dar toda a formação nesta matéria aos futuros condutores, o problema existe hoje. E não me parece que possamos contar com os prevaricadores de hoje para educar e formar a consciência cívica dos condutores de amanhã.
Não parece haver imagens-choque, estatísticas arrepiantes, alertas angustiados, agravamento significativo de multas e novas regras mais apertadas que ponham fim a esta barbárie. Uma barbárie que só encontra paralelo em momentos e episódios históricos que me dispenso de explicitar aqui. Mas, como diria um grande pensador da bola, português de Palmela, vocês sabem do que estou a falar... As notícias (e neste capítulo a imprensa tem tido um comportamento estranhamente exemplar) mais chocantes, as imagens mais selvagens, não parecem afectar ninguém: os números já de si vergonhosos, agravaram-se.
É profundamente triste, repito. E é estranho que continuemos a ver gente, alguma até com grandes responsabilidades, eventualmente, exemplares pais e mães de família, quem sabe, zelosos cumpridores das regras nas suas casas e no seu trabalho, que mal se sentam ao volante se transformam no mais reles "serial killer" em potência! Sem qualquer peso na consciência por aquilo que faz ou que deixa fazer. E, pior ainda, vangloriando-se de um comportamento que, se ocorresse noutros ambientes, mais 'fashion', decerto verberaria!
Face a isto, podemos perguntar: quem pode dar formação aos condutores de amanhã? De que servirão as tais campanhas na escola se quem está na estrada hoje e quem pode dar essa formação hoje não merece sequer ter o privilégio de conduzir?
Precisamos é de uma campanha de educação de adultos, desses que andam para aí a matar-se e matar-nos. E de re-implementar a reguada...



PS- Já agora, a este propósito, assisti há dias a um programa da SIC Comédia chamado "Prazer dos Diabos". Habitualmente divertido, este programa conta com um participante com quem simpatizo, quanto mais não fosse pelo sentimento anti-benfiquista que demonstra (!). Ora num destes dias, resolveu ele atirar-se à "Associação dos Cidadãos Auto-Mobilizados" (ACA-M), produzindo uma série de piadas de péssimo gosto sobre esta organização que luta pelo fim do que designa "guerra civil nas estradas". Não sei se o membro do "Prazer dos Diabos" a que me refiro se chegou a auto criticar pela figura triste que fez, mas daqui lhe digo: tomáramos nós que existissem muitas associações deste género em Portugal. O envolvimento cívico nas questões que nos dizem respeito, a todos, está longe de constituir sinal de cinzentismo. Não faz mal a ninguém e deveria ser quase uma regra da democracia... Quanto ao humor, em geral, nada contra!

2006/12/18

O Rivoli

Vamos por partes.
Não conheço Filipe La Féria, não conheço o dr. Rui Rio, não vivo no Porto. A questão do Rivoli interessa-me porque parece haver qualquer coisa de errado em tudo isto...
Filipe La Féria é um encenador profissional e tem ou faz parte de uma empresa chamada Bastidores, um produtora comercial. O dr. Rio é presidente da Câmara Municipal do Porto.
La Féria e a sua produtora procuram público. O dr. Rio gere um organismo público.
O dr. Rio questionava numa entrevista recente se seria legítimo colocar dinheiros públicos ao serviço de produções que não têm espectadores. Não se lhe conhecem quaisquer esforços feitos no sentido de apurar ou perceber porque razão essas produções não têm público. Sente-se (creio que é legítimo interpretar as coisas deste modo) que o dr. Rio entende que são as opções estéticas dos autores dessas produções, que contribuem para a ausência do público. Que estarão portanto erradas, estando assim a ausência do público justificada. O raciocínio é, em síntese, este, e é tão primário quanto isto: ausência de público=falta de qualidade=esbanjamento de dinheiros públicos...
Vai daí, o dr. Rio resolve propôr a atribuição da gestão do Rivoli a La Féria na esperança de que as opções estéticas deste gerem a atracção de público ao Rivoli que tem faltado. Isto depois de um "aturado processo de selecção", como refere o Diário de Notícias de ontem, que distinguiu uma proposta que garante "uma programação apelativa de elevada qualidade e mobilizadora de grandes públicos para a Baixa do Porto."
Não se conhece o conteúdo da proposta de Filipe La Féria para a programação do Rivoli, nem percebo como se pode garantir, à partida, que esse conteúdo vai ter todos aqueles atributos. Mas, uma coisa é certa: o dr. Rio, figura com um percurso artístico reconhecido por todos, diz-nos isso e os Portuenses podem assim ficar perfeitamente descansados. Tudo está previsto! O dr. Rio garante-o. Hordas de espectadores já se devem estar a preparar a esta hora para invadir o Rivoli.
Com garantias destas, dadas de forma tão enfática e exuberante, a produção anterior do Rivoli, se calhar, teria tido o público que lhe faltou. Que grande RP que o Filipe La Féria arranjou! Bingo!!!
O resto da malta que se desenrasque...
E se no final não tivermos as tais hordas de espectadores, a CMP vai certamente, para não perder a face, encontrar os meios para as mobilizar.

2006/11/27

Mário Cesariny










Conheci-o, ainda ele estava 'ali para as curvas'.
Morreu o homem que dizia:
"Ganhar, sim; mas pouco. É de alguma debilidade económica que vem a minha liberdade".
A minha humilde vénia.

2006/11/22

As aulas de substituição

Temos assistido desde há algum tempo a "manifestações" de estudantes do secundário contra as aulas de substituição. O assunto não teria importância nenhuma se não se adivinhasse por trás de tudo isto interesses e manobras absolutamente vergonhosas.
Penso que ninguém contestará a ideia de que a questão da educação é mesmo crucial para o País. O panorama nesta área é tristemente mau e é fácil concluir, em consequência, que as nossas fraquezas nesta matéria nos tornam especialmente vulneráveis aos efeitos da "globalização" e de outros fenómenos mais ou menos sazonais. As consequências de tudo isto são devastadoras.
Por todas estas razões o assunto educação merece ser tratado por todos com uma seriedade, quase diria, sagrada. Por todas estas razões também, a todos os agentes da educação (não só professores profissionais, mas também pais, governantes e funcionários) se exige que se coloquem ao nível das circunstâncias e das respectivas responsabilidades.
Pois é neste quadro que surgiram por todo o País, desde há alguns dias, "manifestações" de alunos que começaram por ser contra as aulas de substituição. Os alunos já vêm apresentando entretanto outras razões para o "protesto". Estou seguro que da escalada resultará, em breve, o protesto contra as aulas em geral...
De todo este folclore a que temos vindo a assistir, porém, há uma coisa que fica clara: ninguém afinal contesta as aulas de substituição, a não ser alguns, poucos, professores. Mas, os argumentos que tenho ouvido da boca dos representantes desta ruidosa troupe que agora aprendeu a sair à rua são justamente contra os professores escalados para dar estas aulas. São os professores que se revelam, aos seus olhos, incompetentes para cumprir a sua tarefa.
É tempo de, como se diz, fazer um ponto de ordem à mesa...
Ninguém acredita na espontaneidade destas "manifestações". Parece no entanto que os desígnios de quem anda a manipular toda esta maltinha fizeram ricochete: são os professores que saem mal na fotografia! A conclusão que tiramos de todas estas "manifestações" só pode ser esta: os educadores profissionais, a quem todos nós pagamos salário para educar os nossos filhos, não estão à altura da sua tarefa.
Todos saimos um pouco beliscados por tudo isto. Mas, há hierarquias de responsabilidades e estou certo que a maioria dos professores não se revê nestas manobras e repudiará certamente a manipulação a que os alunos têm sido sujeitos. Era bom que o tivesse manifestado claramente.
O comportamento leviano em matéria de educação é criminoso.

2006/10/29

A internet e os donos do megafone

Gostaria de ter tido a possibilidade de dispôr de um meio como a internet há quarenta ou cinquenta anos. O universo estava mais próximo de nós, conhecíamos “menos” gente, os nossos interesses estavam mais limitados, havia menos “notícias”. Imagino como a internet teria, certamente, tornado bastante interessante a gestão deste meu pequeno universo...
Mas, hoje, os nossos contactos multiplicaram-se muito para além do suportável e daquele valor mágico dos cento e tal que os cientistas apontam como sendo o nosso número “natural” de contactos. As nossas fontes de referência alargaram-se. Hoje podemos saber tudo sobre tudo! E os novos meios usados para as trocas de informação parecem nunca chegar para este fluxo tão grande de infobits em constante e exponencial crescimento.
Antigamente, a gente das nossas relações estava à distância de um passeio a pé, devotar o tempo necessário à nossa família e aos amigos, prosseguir os nossos interesses, ter hobbies, divertir-mo-nos, saciar a nossa curiosidade, enfim, tudo isso era possível e sobrava-nos ainda tempo.
Hoje, para contactarmos diariamente toda a gente que conhecemos no ciberuniverso, levar até ao fim todos os nossos interesses, saciar a nossa curiosidade, esclarecer as nossas preocupações, digerir toda a informação disponível, saber tudo o que se passa à nossa volta ao segundo, conhecer todos os “últimas horas” de todos os orgãos de informação on-line, teríamos de ter uma capacidade que manifestamente nos falta. E já não incluo aqui as matérias novas que toda esta situação por sua vez veio gerar! É um horror. Devíamos ter um cérebro mil vezes maior e uma esperança de vida multiplicada por um factor mil vezes superior.
Mas, não serve de nada culpar o meio. É tão ridículo culpar a internet por tudo isto, como culpar um lápis e o papel que nos permitem escrever as nossas notas, ou um envelope e um selo por permitirem transmitir uma qualquer mensagem a alguém que precisamos de contactar. Em tempos de revolução total no domínio da formação e transmissão do pensamento nunca se viu tanto reaccionarismo na abordagem de todas esta matérias. Platão, no Fedro, também já zurzia forte e feio na escrita porque, dizia ele, obrigava o pensamento a ficar fora do meio onde originalmente tinha sido produzido. A escrita convidava à preguiça. Hoje sorrimos perante estes pensamentos que nos foram, curiosamente, transmitidos através da escrita...!
Muita gente ainda pensa de modo semelhante em relação aos computadores. Mas, nem todos terão a dimensão de Platão...
É verdade, hoje através da internet conhecemos mais gente do que toda aquela que conseguiríamos gerir no curto período das nossas vidas, temos ao nosso dispôr enciclopédias, dicionários e outras fontes de informação que jamais teremos capacidade para absorver mesmo parcialmente, sabemos na hora o que se passa no outro lado do mundo, com links relativos a toda a matéria que se encontra relacionada com o assunto que estamos a analisar, falamos e vemos amigos do outro lado do planeta e usamos livremente som e imagem fixa e em movimento como parte integrante do nosso discurso.
Há por aí uns escribas que se levantam contra tudo o que cheira a tecnologia digital porque não preserva a pureza do lápis e do papel ou o cheiro “natural” das tintas de impressão. Por acaso, eles também tecnologias, sem nada de “natural”...
A internet deve ser, o assunto sobre o qual, a par de coisas novas e importantes, hoje mais asneiras se escrevem...! Sobretudo por estes arrivistas do digital, estes novos-ricos da ciber-sociedade que não dispensam os computadores, mas desdenham dos outros que descobrem novos modos de o usar... Gostaria de ver estes velhos do Restelo digital a voltar ao balcão dos bancos para levantar um cheque! E é verdadeiramente escandaloso o coro de idiotas que, por motivos estrictamente pessoais, se insurge contra as virtudes do novo meio de criação e expressão do pensamento. Cheira-me que toda esta indignação se fica a dever apenas ao facto de terem percebido que perderam o privilégio do uso exclusivo do megafone. É isso que os preocupa. E não me admiraria que fossem os primeiros a querer a instauração de um regime de lápis digital azul se pudessem...

2006/10/24

O roubo da carteira

Foi no local de encontro, antes do jogo com o Porto, junto às rulotes. Na adrenalina que prenuncia a entrada das equipas em campo, há abraços de amigos indiferentes ao barulho do gerador e ao gorduroso cheiro dos couratos, entremeado pelo de um ou outro clandestino charro.
Fui buscar uma rodada de imperiais, puxei da carteira e paguei. À coca, os carteiristas viram que ela voltou para o habitual bolso de trás das calças. No grupo de amigos era-lhes, no entanto, difícil dar o golpe. O erro fatal aconteceu quando um clamor percorreu a multidão: o Benfica sofrera o golo do Estrela. Desloquei-me um pouco da roda dos amigos para tentar ver na TV de uma das rulotes se era o primeiro golo do jogo. O homem de meia-idade que ia à minha frente (disfarçado de adepto, com cachecol e tudo) estacou subitamente, sem razão aparente e sei que foi nessa altura que um seu cúmplice me deu a palmada.
Dei pela ausência da carteira quando quis tirar o cartão para o mostrar à entrada do estádio. Quando me convenci de que não havia nada a fazer tomei um táxi e, macambúzio, regressei a casa para ver o jogo na TV, sem querer pensar no incidente. No intervalo do jogo telefonei para o banco a anular os cartões.
Dormi muito mal, pensando em quão nabo tinha sido e rogando pragas aos carteiristas, que me iriam obrigar a perder muitas horas a pedir novos documentos de identidade, carta de condução, cartões bancários, de saúde, etc..
No entanto, no dia seguinte de manhã cedo, recebi um telefonema de um senhor que me disse ter a minha carteira em sua posse. Contou-me então que deu por ela quando, a dada altura, meteu a mão ao bolso.
Os carteiristas, esvaziada a carteira apenas e tão-só do dinheiro que continha, correndo o risco de, apesar da sua perícia, serem apanhados ao fazê-lo, em vez de atirarem com a carteira para um caixote do lixo, puseram-na no bolso daquele senhor!
Pode ser que eu esteja a efabular e que este gesto tenha sido um reflexo de sobrevivência. Mas prefiro pensar que os carteiristas acharam que bem bastava o prejuízo que estavam a dar ao desconhecido ao palmar-lhe o dinheiro e resolveram fazer as coisas de modo a dar a menor chatice possível.
Levaram o profissionalismo ao seu mais alto nível. Pensaram no seu próximo.
Não inscritos, pela natureza marginal da sua actividade, são muito mais admiráveis que muitos ‘cidadãos exemplares’, dos normais, dos que resolvem os seus pequenos problemas e por aí se ficam. Ao correrem os riscos que correram para me devolverem a carteira, os carteiristas inscreveram-se como cidadãos.
Eu andava à procura de um acontecimento que me levasse a escrever coisas agradáveis, positivas. Longe estava de suspeitar que quem me iria dar esse motivo eram os tipos que me abafaram a carteira...

2006/10/22

Despenalização do aborto

Mais de metade dos portugueses em condições de votar afirmam que não irão pronunciar-se sobre a despenalização do aborto.
Eu gostava de ‘dizer bem’ de alguma coisa, mas os meus concidadãos não ajudam nada. Continuam a demitir-se.

2006/09/29

Olhar-se ao espelho

Registo a perplexidade de Miguel Vale de Almeida:
Parece que um quarto dos portugueses não se importavam que Portugal fosse parte do Estado Espanhol. A mim não me choca nada, desde um ponto de vista nacionalista - um ponto que não tenho. O que me choca é que haja tanta gente que pensa que para ter uma sociedade (mais) decente é preciso imaginar a pertença a outro estado, em vez de mudar o estado das coisas no sítio onde acontece viver-se.

Pois aqui é que está o busílis.
A pergunta complementar que se deveria fazer neste inquérito era: "com o que é que está disposto a contribuir para mudar o estado de coisas que o faz responder assim?" E propor alternativas do tipo 'oferecer trabalho voluntário de limpeza das matas, um fim-de-semana por ano'; 'não trazer o carro para dentro da cidade umas quantas vezes por semana'; 'começar finalmente a escolher o lixo e colocá-lo dentro do recipiente apropriado'; 'suscitar e participar regularmente nas reuniões da escola dos meus filhos'; 'interessar-se pelos problemas do bairro em que vivo e participar nas associações de moradores'; 'abdicar de umas noites de copos e inscrever-me num curso de valorização profissional', e assim por diante. O previsível resultado não seria, no entanto, fiável: das preocupações das pessoas já há muito desapareceram quaisquer vestígios de cidadania activa e, portanto, dariam respostas baseadas em intenções nunca concretizadas.
O que muito mais que 25% dos portugueses, para não dizer quase todos, querem é que haja alguém que lhes trate da vidinha: "eu cá já pago os meus impostos, agora ‘os gajos’ que tratem de pôr as coisas a andar como deve ser". E como cá já ninguém tem esperança em que haja alguém que resolva os problemas, quem sabe se os espanhóis... "Afinal eles são muito mais ricos que nós!"
Só um quarto é que tomou aquela posição, mas foi por causa dos preconceitos nacionalistas. Se não, seriam muitos mais.
Eu, que também não vejo as coisas de um ponto de vista nacionalista, sou levado a concordar com os tais 25%. Dizem que somos tão bons como os melhores quando temos de emigrar; uma das razões será porque lá fora a hierarquia é mais clara, assim se tornando mais evidente quem manda e quem tem de obedecer.
Já que não temos capacidade de participação autónoma nos processos, se calhar é preciso vir alguém de fora para organizar as nossas capacidades. E, potenciado pela integração europeia, é isto mesmo que vai acontecer: vamos ser funcionários de segunda, mal pagos, ao serviço dos mandantes primodivisionários da Europa.
O tempo próprio para poder ter interferido neste estado de coisas foi quando entraram em catadupas fundos europeus destinados à valorização dos portugueses, nos primórdios da nossa entrada na Comunidade. Esse tempo foi perdido entre interesses comezinhos, que para tudo serviram menos para a formação profissional dos que nos cursos se inscreviam.
As entidades promotoras ficaram com mais capital para gerir; os formadores obtiveram ordenados muito superiores aos do ensino regular; os formandos ganhavam umas migalhas deste bolo que davam para desenrascar; finalmente o Estado também se interessou muito menos com o destino dado aos dinheiros do que com a apresentação estatística de cursos, que justificava a continuação dos fluxos de dinheiro.
Tudo se fez a fingir e é por isso que me custa a crer que se possa dizer que Cavaco foi o melhor PM a seguir ao 25A.
Ficámos um conjunto de ignorantes, académica, profissional, cívica, humanamente mal formados.
Ainda teremos de ir mais ao fundo para começarmos a olhar-nos ao espelho e vermos no que demos?

2006/09/25

ONG versus visão mercantilista do mundo

Transcrevo uma notícia do Jornal de Notícias de sábado passado:

O presidente da Assistência Médica Internacional (AMI), Fernando Nobre, acusa a actual administração norte-americana de pretender "subjugar toda a sociedade humana".
No último dia do encontro "Psiquiatria de Catástrofe e Intervenção na Crise", organizado pelo Hospital Militar de Coimbra, Fernando Nobre disse que o presidente dos Estados Unidos e os seus partidários encaram o Estado e os cidadãos "como simples sustentáculos ao serviço do seu único objectivo", que passa pelo "mercado livre, competição, diminuição do peso do Estado, desregulamentação, reestruturação dos sindicatos, mas desde que sejam domesticados".
Para o presidente da AMI, trata-se de uma "visão mercantilista" do Mundo e da humanidade e acusou os seus promotores de pretenderem "a maior acumulação possível de riqueza para alguns eleitos, mesmo que para atingirem tal fim seja necessário o desencadeamento de guerras injustificadas que matarão milhares ou milhões de seres humanos".
"Esta visão, que elegeu o mercado como novo bezerro de ouro, recusa-se a ver o sofrimento que provoca a milhões de seres humanos vistos como meros produtos descartáveis", sublinhou Fernando Nobre.
A "força motriz das forças actualmente dominantes" no Mundo, "os pobres, os desempregados e os fracos são vistos como meros incompetentes, culpados da sua triste sorte, não merecendo ser defendidos, nem ter voz", considerou.
A visão oposta, "que fiz minha, corporizada pelas Organizações Não-Governamentais, expressão da sociedade civil mundial organizada, quer colocar o ser humano no cerne de todas as questões", frisou Fernando Nobre.


Não conhecendo bem a AMI, tenho dela a melhor das impressões. Fernando Nobre é alguém que conhece os problemas in loco, já que é nos terrenos em que a ajuda humanitária é necessária que a sua entrega ao seu projecto se processa.
E também tenho a opinião de que as ONG são hoje em dia as instituições alternativas, "expressão da sociedade civil mundial organizada", num mundo dominado por estratégias meramente mercantilistas.
Mas, depois de ouvir da boca de José Mattoso (um inquestionável exemplo de entrega desinteressada a causas, conhecida a sua acção em Timor) que apenas 30% das receitas das ONG são, em média, de facto aplicadas para o fim em vista, é preciso tomar em linha de conta esta realidade.
Isto é, terá de haver um esforço de inverter o destino das despesas e aumentar a percentagem realmente gasta com o destino para que foram criadas as ONG.
Se não corre-se o risco de que os objectivos sejam subvertidos e de que a principal motivação das ONG passe a ser dar empregos (mais ou menos bem remunerados; no caso dos famosos pareceres técnicos especializados -- que muitas vezes nunca são utilizados -- são fortunas) a uns tantos habitantes dos países de origem.
Tenho a este respeito a opinião que Miguel Sousa Tavares expressou a propósito das Fundações. Diz ele que "entre nós as Fundações têm como objectivo principal a fuga aos impostos". Por isso recomenda que se investigue "quanto é que elas gastam realmente em filantropia e quanto é que recebem de volta em isenções fiscais e outros benefícios concedidos pelo Estado", e defende que as respectivas contas deviam ser tornadas públicas.
É o mesmo que defendo quanto à contabilidade (receitas e custos) das ONG, embora por motivos não necessariamente coincidentes.
É que, além do mais, seria uma boa maneira de os potenciais dadores decidirem a quem entregar os seus donativos, porque ficavam com uma ideia mais precisa de como estes seriam gastos.

2006/09/23

Melhor é (quase) impossível

Falar sobre concertos é coisa que não faz parte do meu conjunto de competências. Mas, esta história dos blogs permite-nos a expressão do nosso pensamento de forma tão fácil que eu não resisto a registar as minhas impressões sobre um em particular, que teve lugar aqui em Lisboa.

Trata-se do concerto que ontem foi dado no Coliseu por um duo constituído pelo vibrafonista Gary Burton e o pianista Chick Corea. Embora este duo já tenha mais de 35 anos de actividade --o seu disco "Crystal Silence" foi alegadamente gravado em 1972-- só agora passaram por Lisboa (hoje 06-09-23, tocam no Porto).

Chick Corea começou por anunciar do palco do Coliseu: "Hoje não vai haver aqui circo." O que se seguiu foi uma experiência sobre a qual só poderemos dizer: melhor é quase impossível! O jazz é o único género de improvisação estruturada da música ocidental. Existem outras formas de improvisação musical, mais antigas, com estruturas bem mais complexas, que produzem, seguramente, resultados mutíssimo mais refinados que muito do jazz que se ouve habitualmente. Mas, o jazz é o contributo mais sólido da cultura ocidental para o universo da improvisação musical, embora se trate de um género sustentado, curiosamente, num primeiro momento, nos escravos africanos que foram levados para a América... A fórmula da sua estrutura de funcionamento evoluiu e o seu léxico tornou-se mais abrangente. O concerto do duo Burton-Corea constitui um exemplo do melhor que o jazz, na sua expressão actual mais elevada, nos pode oferecer. Difícil será superá-lo...

Um concerto desta natureza é como uma longa sessão de corda bamba. O artista tem de ir do ponto A ao ponto B, corre perigo de vida e conta para concretizar este objectivo apenas com o seu corpo e o seu sentido de equilíbrio. Nú perante o público, sem truques, partiu de A mas conseguirá ou não chegar a B...?

Ora, num concerto como o do duo Burton-Corea de ontem, os artistas vão de A a B em situação de risco permanente. Dão cambalhotas no ar, fazem piruetas, dão passos para a frente, voltam para trás, baloiçam-se no arame e prosseguem o seu caminho, tranquilos, perante a expectativa da plateia ansiosa. Esta metáfora circense vem, claro, a propósito do comentário inicial de Corea. O Coliseu que a inspirou é uma sala que dificilmente acolhe um concerto desta natureza e que, já agora acrescento, me irrita particularmente desde há mais de quarenta anos...

A propósito de expectativa, a classe do duo Burton-Corea e a sensação de situação de risco sucessivamente ultrapassado com sucesso, foram suficientes para, apesar da inadequabilidade da sala, manter uma plateia razoavelmente bem composta em estado de alerta máximo. Facto, aliás, que me surpreendeu. A falta de cultura "jazzística" deste público é manifesta, o arsenal cénico é desoladoramente exíguo quando comparado com o dos artistas da moda e, portanto, a atenção e o explícito agrado com os quais o duo foi distinguido não se podem explicar senão pela superior excelência da sua arte.

Conheço a música destes dois cavalheiros já lá vão anos suficientes e vi-os a tocar ao vivo por diversas vezes, em diversas formações. Chick Corea tem um percurso muito diversificado que incluiu passagens pelo grupo de Miles Davies --que visitou o Festival de Jazz de Cascais, na sua primeira edição, tocando ao lado de, entre outros, Keith Jarrett-- e um sem número de colaborações com outros músicos e bandas de referência como o Return to Forever. Mas, conheço bem e aprecio, sobretudo, a música de Gary Burton desde o final dos anos sessenta. É um músico de exepção. Burton estreou-se com o pianista George Sharing com apenas 19 anos. Mais tarde juntou-se a Stan Getz e com ele tocou até iniciar um percurso autónomo baseado nas suas famosos e inesquecíveis quartetos que incluiam músicos, que com ele se estrearam ou que com ele adquiriram a fama, como Larry Coryell, Steve Swallow, Makoto Ozone e, sobretudo, Pat Metheny. Colaborações com outros músicos não têm fim. Assinalo apenas o seu trabalho com Piazzola, seguramente, um dos muitos pontos altos do seu rico percurso musical.

Nesta altura das suas carreiras (Corea tem 65 anos e Burton 63) a música e o trabalho destes músicos estão depurados ao ponto de não restar senão a essência última da estrutura musical e o jogo subtil da improvisação, feito muitas vezes apenas de insinuações. Assistir a tudo isto é um prazer que desafia as palavras.

Para aqueles, que eventualmente me estejam a ler e tenham estado no Coliseu, mandem-nos, peço-vos, as vossas impressões. Para os que não foram ontem ao Coliseu (ainda podem ver este duo na Casa da Música hoje 06-09-23) aconselho-vos a dirigirem-se o mais rapidamente possível a uma qualquer loja de discos e a comprar tudo (cd's e dvd's) o que inclua estes músicos!!

2006/09/04

Paz violenta

Muito bom este poético escrito de hoje, por JPN, no Paz Violenta, sobre a urgência de, todos e cada um de nós, tomar posição sobre "uma guerra que já se mundializou, que já se interiorizou em cada um de nós". Claro que "haverá muita gente que pensa que não, que ela só acontecerá quando, um dia, um míssil lhe cair na sopa de nabiças".
De facto, vem mesmo a propósito a citação de Séneca: "muito ávido é da vida quem não aceita morrer quando consigo vai morrer o próprio mundo". E olhem que aqui ávido quer dizer ganancioso, o que se calhar até é de aplaudir pelos padrões éticos da moda; mas que, pelos que é urgente reavivar, não se recomenda.
Prefiro a atitude que há tempos vi numa reportagem de telejornal e que nunca mais saiu da minha memória; eu conto.
Num festival de aviação descem três pára-quedistas em formação. Quando accionam os pára-quedas estes ensarilham-se e uns não deixam abrir completamente os outros; se continuarem assim vão-se espetar os três no solo, sem apelo nem agravo. Um deles corta, o mais depressa que pode, as alças do seu pára-quedas e, ante o olhar incrédulo e aterrorizado dos espectadores, obedecendo às leis da queda dos graves, vem, em movimento uniformemente acelerado, desfazer-se contra o solo. Porquê ele e não qualquer um dos outros? Porque ele tinha mais coragem!
Eu, quando for grande, quero ser assim.

Guerra de civilizações?

Era um dia de sol esplendoroso e quente, invulgar naquelas paragens. "Fermosa e não segura" a rapariga pedalava, cansada mas radiante com a bênção do bom tempo, e radiosa, de top e mini-saia. Deslocava-se do local do estágio que cumpria junto a um designer de moda -- não remunerado, mas importante para o currículo estudantil -- para casa.
O condutor do carro que seguia a seu lado avistou um lugar de estacionamento e, inopinadamente, guinou pela frente da jovem ciclista, para ir ocupá-lo. Ela travou como pôde, mas desequilibrou-se e não conseguiu evitar a queda. Ficou estendida no meio da rua, com uma perna ensarilhada entre o quadro e a roda pedaleira, com as coisas que trazia no cesto da frente espalhadas no asfalto. O condutor do carro que provocou o acidente "não esteve nem aí", como dizem os brasileiros. Magoada no corpo, sangrando abundantemente de uma perna, enquanto se esforça por se erguer chega-lhe aos ouvidos o insulto culpabilizador: "son of a bitch".
Carros buzinam, bandos de crianças saem da escola vizinha pelas mãos dos pais, comerciantes e clientes assomam às portas das lojas. Atordoada e dorida, a jovem apercebe-se de que está, qual "Pedro, pedreiro", "atrapalhando o tráfego". Recolhe atabalhoadamente os pertences esparramados na rua e levanta a bicicleta, encostando-a ao carro estacionado ali ao pé, enquanto tenta recompor-se. Logo surge, solícito, o dono do carro que, com gesto decidido, a obriga a retirar o velocípede, como quem sacode uma mosca impertinente.
Da multidão de circunstantes apenas uma mulher lhe lança um olhar solidário, mas impotente, a que a jovem responde com um "don’t worry; it’s all right".
As pessoas do café para onde, em desespero de causa, a jovem conduz, coxeando, a bicicleta acolhem-na com preocupação e vontade de ajudar. Apesar de, por lei, reservada aos funcionários, a caixa de primeiros socorros é usada para lhe tratar das feridas.
Seria um episódio banal do quotidiano de uma grande cidade, em que as pessoas se preocupam consigo próprias e lhes passam ao lado as desgraças alheias. Seria. Se não fosse o caso de ter mesmo acontecido no lugar londrino de Whitechapel, onde habita uma maioria étnica árabe (sobretudo imigrantes do Bangla Desh e descendentes); de as crianças virem a sair de aulas de Corão, e de a escola ser uma mesquita; de todos os intervenientes, incluindo a mulher (esta de cabeça coberta à maneira árabe) vestirem túnicas ou jelabas, excepção feita às pessoas do café; finalmente, de a jovem ser uma ocidental -- a minha filha Francisca.
Há uma frase recorrente entre os jovens filhos de imigrantes, nascidos em Inglaterra e de nacionalidade inglesa, provenham eles daqui ou dali: "I’m English, but I’m not British" (sou inglês, mas não sou britânico). O que isto quer dizer é que esses jovens, possuindo embora a nacionalidade inglesa e não tendo intenção de regressar aos seus países de origem, não se revêem no modo de vida, na idiossincrasia britânica.
É neste "caldo de cultura" que, ao que afirmam os meios de comunicação social, se desenvolvem os impulsos terroristas. Os jovens que alegadamente preparavam a acção terrorista descoberta no mês de Agosto tinham uma prática de vida considerada "normal"; tinham empregos do tipo padeiro, vendedor, empregado de balcão, bibliotecário, informático. Interrogados por jornalistas, os vizinhos afirmavam com veemência o convencimento da sua inocência. Um era católico de ir à missa e, nunca tendo conseguido ultrapassar o trauma que lhe provocou a morte do pai, tinha instintos suicidários e experimentou o mundo das drogas. Tanto este como dois outros (um contabilista de 25 anos e outro jovem de 28) se converteram ao Islão, após casar com jovens muçulmanas e acabaram a receber preparação militar nos campos da Al-Qaeda no Paquistão.
Há, por outro lado, adeptos de diversas teorias da conspiração que afirmam que todos estes atentados são invenções do mundo ocidental para justificar acções de retaliação tendo como motivação os interesses milionários do petróleo e do negócio das armas.
Não é minha intenção, por ora, tomar posição sobre o assunto da, chamemos-lhe assim, "guerra contra o terrorismo". Mas sempre chamo a atenção para algumas aproximações a este problema, como a do celebrado politólogo Samuel Huntington, que considera que "as linhas de fractura (fault lines) entre civilizações serão as linhas de combate do futuro". Mas, vivendo o "inimigo" no "nosso" seio, como traçar essas linhas?
Sem se cair em exarcerbados xenofobismos que só agravam o problema, não vejo que tal seja possível.
O mundo está confuso. E perigoso!

2006/09/02

Impressões de viagem 2

A Holanda é um país onde o velho e o novo, a tradição e a vanguarda, o vestígio mais vetusto e o objecto mais futurista, convivem lado a lado, sem complexos.
Reflexo desta convivência é o modo como o território está ordenado. Há um contínuo paisagístico, do qual dificilmente se consegue extrair os elementos tradicionais que constituem os assentamentos humanos. Campo, cidades, infraestruturas de transporte, áreas de lazer, etc, desfilam de forma suave e constante perante os nossos olhos. De tal forma que, dificilmente, nos apercebemos onde começa uma unidade de território e termina a outra. A quinta que produz os lacticínios do dia, pega com o bairro onde mora o funcionário do ABN-AMRO, à beira de um canal, bordejado por um passeio para jogging, de onde se avista a auto-estrada que se cruza com a estação de caminho de ferro, que passa pela estufa que produz as flores para o mercado de Aalsmeer, que amanhã vão ser transportadas do aeroporto de Schipol --que fica mesmo ali!-- para todo o mundo!
Os contrastes, nesta paisagem só podem ser encontrados a um nível mais subtil. Estão na paisagem humana e, sobretudo, no âmago de cada indivíduo. O território holandês é como que uma grande sala de estar onde cada canto é desfrutado pelos seus habitantes, de forma íntima e intensa.
Uma lição, neste aspecto, para um mundo cada vez mais compartimentado e emparedado por obstáculos de toda a classe.
Portugal teria muito a aprender, se quisesse, com a Holanda (o inverso também é verdadeiro, mas esse comentário fica para depois...).
Ainda hoje, numa reportagem a propósito do encerramento da maternidade de Mirandela, todas as jovens entrevistadas afirmaram que não querem permanecer naquela sede de Concelho Rural de 1ª Classe. Virão para a cidade cheias de esperança de uma vida melhor. Mas, que esperança de uma vida melhor terá Lisboa, ou o Porto se Mirandela desaparecer do mapa?

2006/08/31

Eu roubo, mas eu faço!

A notícia já tem alguns dias, mas a reflexão sobre ela permanece actual.
Os juízes desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa, que obrigaram Isaltino Morais a prestar uma caução de 100 mil euros, estranham, porque as razões do facto «ultrapassam, seguramente, a capacidade de compreensão do normal mas honrado cidadão».
O que estranham eles? O facto, que consideram «inédito» e que acontece, como dizem, «por razões que nos dispensamos de comentar», de se permitir «ao arguido Isaltino, a quem são imputados vários crimes no exercício da gestão autárquica», «que continue no normal desempenho das suas funções de presidente da Câmara».
Em relação a este caso nem sequer há a possibilidade de, como é costume, atribuir as culpas aos políticos. Estes, como é sabido, têm sido os piores propagandistas da espécie, no geral mais preocupados com os seus próprios interesses, do que com a comunidade dos cidadãos que deveriam servir. Mas neste caso não foram os políticos, na pessoa do presidente do PSD, quem deu aval à candidatura de Isaltino a presidente da Câmara. Foi como independente que ele se apresentou ao eleitorado e enfrentou os outros candidatos, esses sim apoiados pelos diversos partidos.
Foram, pois, os próprios cidadãos quem caucionou esta realidade escandalosa de colocar um presumível criminoso (é assim que lhe chamam os juízes) à frente da Câmara de Oeiras, a lidar com muitos milhões de euros provindos dos bolsos dos contribuintes; os mesmos cuja maioria lhe garantiram a eleição.
Instalou-se entre os portugueses o tipo de moral que é bem traduzida pela célebre máxima de um político brasileiro: «eu roubo mas eu faço!». Tudo parece normal ao comum das pessoas.
Passou recentemente na rádio a propaganda de um telemóvel que rezava mais ou menos assim: «António; sou eu, o Carlos, o teu melhor amigo. Eh, pá, estou a deixar-te esta mensagem para te dizer que o telemóvel XPTO que te desapareceu, não o perdeste. Fui eu que fiquei com ele! Vi-o ali como quem olha para mim... (segue-se uma litania de características apetecíveis do objecto)... e, sabes como é: tentei-me e fiquei com ele. Falo-te agora para te dizer isto e para te perguntar: tens o carregador?».
Quer dizer, um roubo, uma traição entre amigos é encarada de uma forma leviana, como se fosse normal. E se isto passa como anúncio, não é só porque os publicitários não têm já nada que possam apresentar como diferente e procuram coisas arrojadas e fora do comum. Porque serão fora do comum, mas têm de cair em terreno fértil, para que o produto publicitado venda. Esse terreno fértil («público-alvo») é o das camadas jovens que, com o seu dinheiro ou com os dos pais, são quem compra.
Isto diz bem dos valores em que assentam muitas das relações que se estabelecem e da matéria pulverulenta que lhes dá (?) substância.
Que bem fazia ao «António» e ao «Carlos» do anúncio lerem «O sonho dos heróis» de Adolfo Bioy Casares.
I’ll be back; ou, em português, voltarei a este tema.

2006/08/28

O clima é do povo?


Li no Público aqui há tempos que a missão ACEX recuperou amostras de sedimentos do Ártico, cerca de 400 m abaixo do leito oceânico. A análise destes sedimentos revelou que há 55 milhões de anos o clima naquela zona era sub-tropical. Nesta altura o efeito de estufa (originado pelo dióxido de carbono e pelo metano) causou um aquecimento global da água do mar que chegou a atingir em certos pontos os dez graus!
O tráfego rodoviário era, como se sabe, intenso há 55 milhões de anos... E os aerossóis, então, eram uma praga!

Todos os dias ouvimos informações sobre o aquecimento que se estará a verificar, como se de um fenómeno moderno se tratasse. Sem outro responsável para além do Homem.

A informação agora divulgada prova que estes complexos de culpa são ridículos, despropositados e dificultam, naturalmente, na minha opinião, as estratégias possíveis que podem conduzir a uma análise correcta deste fenómeno. Quantas vezes ouvimos ou lemos nós os escritos inchados de jornalistas, ambientalistas, políticos e outras criaturas a anunciar a catástrofe iminente e a lançar as culpas sobre o pacato cidadão que desconhecia até essa altura o tremendo "poder" que afinal tem para "alterar" tão profundamente a Natureza...?

PS- decidi juntar aqui este link a propósito deste tema que creio que vem a propósito... Hoje (06-09-14), a reboque da estreia do filme do Gore, lá veio nos jornais mais um montão de asneiras e lugares comuns a propósito de tudo isto. Espera-se uma série de suicídios em massa...

2006/08/27

Impressões de viagem 1


Sentado numa esplanada em Delft, mesmo à beira da torre da Nieuwe Kerk (Nova Igreja), olho lá para cima (a torre tem mais de 100 m de altura) e penso na possibilidade real daquele monte de tijolos desabar por cima de mim. Sinto-me vulnerável. Rezam as crónicas que cada um desses tijolos que compõem a Nieuwe Kerk foi colocado à mão. Os tijolos foram, precariamente, unidos com um cimento entretanto temperado, seguramente, por muitas chuvas e humidades variadas que lhe retirarão quiçá alguma consistência. Só em 1933 aquela estrutura foi aparentemente reforçada com pilares de betão.
Nesta igreja, terminada em 1496, que convive hoje com as esplanadas e as lojas que vendem a famosa porcelana de Delft a preços de Cartier, jazem os corpos das sucessivas gerações da Casa Real da Holanda desde Guilherme de Orange.
A Nieuwe Kerk está situada no Grote Markt (a Grande Praça do Mercado). Não sei se por estas bandas foi a igreja que se aproximou do "mercado", ou se foi o mercado que se aproximou da "igreja". Mas, de uma forma ou de outra, o mercado, por estas paragens, domina tudo e todos. Não parece haver margem para quaisquer valores, acções ou sentimentos ao lado, ou fora do mercado.
Nada disto constitui, à partida e necessariamente, um defeito. Mas, percebe-se pela observação dos sinais que, por causa disto, a sociedade holandesa se sente mais vulnerável do que eu me senti à beira da Nieuwe Kerk.

JOÃO GALAMBA DE OLIVEIRA

Quando se vai um amigo ficamos mais pobres.
Neste caso é capaz de não ser bem verdade, tal o enriquecimento que constituiu a lição de coragem do João na morte -- consentânea, aliás, com a que sempre demonstrou em vida. E de grandeza -- duma espécie que se afasta da pequenez em que o comum de nós mergulha no quotidiano.
Eu não conseguiria escrever nada que melhor o caracterizasse do que o que Fernando Madrinha sobre o João escreveu no «Expresso» de ontem.
Aqui o reproduzo, com a devida vénia:

2006/08/26

OS FOGOS E A NÃO INSCRIÇÃO

Em tempos pensei que gostaria de me candidatar à presidência de uma Câmara Municipal. Uma Câmara pequena, que não fosse rica, mas em que houvesse proximidade com as pessoas a viver no seu território. E em que fosse, portanto, possível "fazer coisas". Depois, começando a pensar que o financiamento depende da construção civil e que quase se é obrigado a permitir (ou mesmo a estimular) a construção para que haja dinheiro, depressa me passou esse desejo.
A coisa teria sentido se fosse possível mobilizar as populações para participarem na resolução de alguns dos seus problemas comuns. Então a minha ambição moderou-se e pensei que talvez fosse interessante presidir a uma Junta de Freguesia. Não existe autarquia que seja mais próxima das populações e talvez aí fosse possível dinamizar as vontades das pessoas no sentido de tomarem em mãos tarefas necessárias à execução de algumas das suas necessidades. Lembro-me sempre da população de uma aldeia que, isolada, precisava de uma estrada e de uma ponte; cada um contribuiu com dinheiro -- a quantia de que pôde dispor -- e, sobretudo, com trabalho -- cada um apresentava-se umas horas por dia para colaborar -- e a obra foi feita. Isto passou-se para aí nos anos 80. Duvido muito que hoje em dia tal fosse possível em Portugal. O sentido colectivo está de rastos e ninguém está disponível para colaborar em obras que interessem a todos.
Vem isto a propósito dos fogos florestais, facilitados que são pela incúria quanto à limpeza das matas.
Excluirei do arrazoado a floresta que é pertença de proprietários que podem pagar a respectiva limpeza; o incumprimento neste caso deverá ser rigorosa e rapidamente punido. Segundo leio no Público de 22/8 a PSP de Aveiro levantou 21 autos de infracção às regras de segurança em S. João da Madeira. O que é de aplaudir, desejando que se chegue em breve à punição dos responsáveis (desejo que, conhecida a "eficácia" a que nos habituou o nosso sistema de justiça, é legítimo duvidar que venha a ser cumprido; é mais provável que venha a ser comprido e que, na maioria dos casos, acabe em águas de bacalhau). E esperando que este tipo de acção não se limite a S. João da Madeira e se propague, como de resto os fogos, ao resto do país.
A questão que pretendo levantar respeita às matas de posse de privados que não têm capacidade financeira para a sua limpeza (que, ao que se diz, conformam a área de floresta maioritária); mas também às matas públicas.
Nem os representantes dos poderes locais estimulam, nem os habitantes se sentem motivados para dar colaboração individual na limpeza destas matas. Todos sabendo que, chegado o Verão, haverá grandes possibilidades de tudo se transformar num braseiro e de o colectivo dos cidadãos ficar mais pobre, não arranjam maneira de se mobilizar e, cada um dando uma quota parte de esforço, deitarem mãos à obra e limparem aquelas matas. Também quanto às matas públicas se deveriam organizar equipas de voluntários (locais, mas não só, que isto é um problema nacional e todos ficamos mais pobres com os incêndios de Verão), embora aqui a responsabilidade de mobilização e organização caiba inequivocamente ao Estado e/ou aos poderes locais. Chegado o tempo da catástrofe, que se adivinha em todos os verões, no discurso de cada um aparecerá o pronome "eles" ou a expressão "os gajos". Os portugueses são peritos em alijar as culpas individuais; quer dizer, a culpa nunca é do António ou da Maria. A culpa é dos poderes públicos (Governo, Câmara, seja quem for), ou porque não limparam, ou porque não proporcionaram meios (leia-se subsídios) para a limpeza. A culpa é sempre "deles", "dos gajos". É a "não inscrição", de que fala o filósofo José Gil, numa das suas mais incisivas e deletérias manifestações.
No estado a que isto chegou, que presidente de Junta, por mais qualificado, empenhado e capaz de trabalhar para o bem colectivo sem se ater ao seu interesse pessoal, será capaz de juntar os seus concidadãos para este tipo de tarefas colectivas? Quem se quererá "inscrever"?
Concordo que os indivíduos que detêm os diversos poderes -- executivos ou legislativos, locais ou nacionais -- também eles (falo no geral, o que é sempre redutor), o que perseguem é, primeiro que tudo, o benefício pessoal. Mas isso não espanta nada, dado que o "caldo de cultura" em que nasceram e se desenvolveram é o mesmo do resto do povo. E o "povo", o geral das pessoas, seja por razões históricas, por desmotivação conjuntural, por ignorância, ou por todas estas razões, é muito mesquinho.
Tem os dirigentes que merece.

2006/08/25

A VIDA É ASSIM (2)

O escrito anterior foi enviado para um grupo alargado de amigos meus em 14/8. Nessa altura ainda "A face oculta da Terra" nem sequer em projecto existia. Enquanto notícia a respeito de CC, o escrito estaria um pouco desactualizado. Como, no entanto, esse facto servia apenas de ponto de partida para a reflexão sobre o assunto central, este sim, bem actual, resolvi agora publicá-lo.
Entretanto, vários daqueles a quem enviei o escrito, com pedido de que o comentassem, ativeram-se ao que eu pretendia acessório, o que motivou um segundo escrito sobre o mesmo assunto em 23/8:

Caros amigos,
Certamente que haverá múltiplos aspectos interessantes e até importantes a tratar, a propósito da falência de Cardoso e Cunha, para além dos que eu referi no meu texto.
Em comentários à mensagem que vos enviei, chamaram-me a atenção para, entre outros, os seguintes:
- Haverá grande diferença entre X, uma determinada têxtil do Vale do Ave que vai à falência, e Y, um determinado empresário da noite lisboeta.
- Porque é que na maior parte dos casos os "falidos" continuam ricos depois da falência?!
- Porque é que a sociedade, em geral, é muito mais complacente com os "falidos" do que com os "insolventes"?
- (CC) utilizou "demais" a sua acção partidária para fazer carreira como gestor.
- …a ambição de criar e "mandar" pode ser benévola para a sociedade e para todos os que encontram nas suas empresas um modo de vida.
- Que há muita incompetência em alguns nomes sonantes do PSD.
- Que este será, precisamente, um desses casos.
Todas estas, e outras, questões têm a sua pertinência.
Mas não foi este o ângulo de visão que pretendi enfatizar.
Tentando, então, explicar melhor o que queria dizer:
Pegarei na afirmação de que «a ambição de criar e "mandar" pode ser benévola para a sociedade e para todos os que encontram nas suas empresas um modo de vida». Parece que se infere do que escrevi que acho isto ilegítimo. Engano!
Não coloco em causa a legitimidade da ambição de enriquecer mais quando já se é rico (o tal princípio de que "quem é rico quer ser mais rico"). Apenas a aprecio (e a rejeito) em termos de ética social.
O que me interessa é olhar para a completa desmotivação dos portugueses, o desaparecimento preocupante de capacidade de pensar as coisas sociais em termos do que elas são, isto é, coisas que envolvem muitas vezes interesses colectivos. Falo com o conhecimento de causa de quem deu muitos anos de vida a tentar promover associativismos vários (no sector do artesanato, em associações de pais e de residência). O que me também interessa é perceber porque é que os portugueses votam em comprovados e/ou presumíveis vigaristas, na base da ideia de que "ele rouba, mas ele faz", para usar a célebre máxima de um político brasileiro. Conheço benfiquistas que ainda hoje são apoiantes de Vale e Azevedo, mesmo depois de saberem que ele andou a roubar o seu clube de coração. E na minha rua vejo o esterco que os cidadãos fazem à beira dos ecopontos: sacos de lixo e seu mau cheiro, embalagens que não se teve a pachorra de meter na abertura e por ali ficaram. Um nojo! Nem esta tarefa colectiva tão básica as pessoas conseguem, hoje em dia, levar a cabo como deve ser.
E este estado de coisas não se combate enquanto o dinheiro for aceite de forma generalizada (por vezes até incentivada) como motivação principal da vontade humana. Foi o que me pareceu transparecer do caso CC (e posso estar errado quanto ao próprio caso, mas isso não tira nada à validade que acho terem os princípios que defendo no artigo) de vontade, gananciosa, de continuar a enriquecer, quando já se obteve o suficiente para passar um resto de vida confortável, sem motivação visível para além de obter mais dinheiro.

Esta fala não se inscreve no pensamento realpolitik dominante, que substituiu, à esquerda e à direita, nas preocupações da quase totalidade dos ex-revolucionários, os seus anteriores ímpetos colectivistas. Antes coloca o debate num campo que, eu sei, está fora de moda, mas ao qual, mais cedo ou mais tarde, se regressará. Eu estou a tentar dar a minha contribuição para que seja mais cedo.

Abraços do
Raul

A VIDA É ASSIM

Segundo uma notícia do Público do passado dia 10, o Tribunal de Comércio de Lisboa decretou a falência de Cardoso e Cunha (CC).
Acerca deste assunto muito se poderia analisar, ou mesmo especular. Por exemplo poderia relembrar-se a afirmação de CC de que o então ministro António Vitorino lhe deveria mandar fazer uma estátua; e a réplica deste dizendo que não lhe fizessem a tal estátua, porque assim lhe seria impossível continuar a andar com ele ao colo. Agora, tomando a falência como prova de incompetência de CC para os negócios, seria fácil dar razão ao ministro.
Também no processo da TAP, ainda segundo o Público, "depressa se incompatibilizou com Fernando Pinto, que já era o principal executivo. Na sequência saiu da operadora para se dedicar a tempo inteiro aos seus negócios particulares". Sabido o sucesso que teve a gestão da TAP sob o comando de FP, também não custa agora admitir que era este quem tinha razão.
Levando este tipo de raciocínio mais longe, até se poderia dizer que CC, esgotadas (será que estavam?) as hipóteses de gestão do dinheiro dos outros, se dedicou a gerir o seu, sem que os resultados tenham sido melhores.
Não é esse tipo de reflexão que quero fazer, mas outra mais estrutural, isto é, que tem a ver com a própria natureza humana. Ou, mais propriamente, a natureza humana condicionada pelo processo de obtenção da riqueza. A questão do dinheiro, em suma.
Na condição de "protagonista dos últimos vinte anos", como lhe chama o Público, CC foi ministro, comissário europeu, comissário da EXPO/98 e presidente da TAP, entre outros importantes cargos. Ganhou, seguramente, muita massa. Ter-lhe-ia bastado pôr de parte alguma dela para agora estar nas calmas, reformado ou não, continuando ou não a fazer alguma coisa de útil e que lhe desse gozo, a viver dos rendimentos. Preferiu, contudo, seguir o caminho mais comum e tentar enriquecer.
É aqui que entra a tal natureza humana em regime capitalista (o único credível que existe, apesar de tudo), a qual se pode traduzir em duas máximas, que formularei assim: "dinheiro faz dinheiro" e "quem é rico quer ser mais rico".
Como todos os princípios têm excepções, neste caso vigorou o segundo, mas, seja por aselhice ou por azar, o primeiro não teve confirmação.
Como se depreende deste exemplo, a ambição de riqueza (e do poder que lhe está associado) é, nos humanos, uma característica que, vendo bem, é até irracional. Não seria bem melhor que o homem tivesse posto os seus talentos (não se vá, agora que ele está na mó de baixo, achar que não tem nenhuns) ao serviço do bem comum, em vez de tentar enriquecer? Isto é fácil de dizer, mas quando se orientou uma vida num caminho como o de CC, de grande senhor acostumado a mandar e a ter as mordomias a tal associadas, é muito difícil que a fuga não seja para a frente.
Mas nestas só se mete quem quer. E CC tem bem consciência disso, honra lhe seja feita; em vez de se pôr com desculpas ou a deitar as culpas para cima de outrem, como é costume nestes casos, assumiu o seu falhanço e, com ele, as regras do jogo, dizendo que a decisão do Tribunal "é definitiva, irreversível e não há nada a fazer". A esta hora CC deve estar na difícil fase de ter de tomar drogas para conseguir adormecer, pois não se deve livrar do pensamento de que estaria muito melhor se não tivesse cedido à tentação da riqueza.
Se querem que vos diga não consigo ter pena dele... A ver se aprendemos com estas e outras, porque a vida é assim!

É SÓ PORQUE TEMOS COISAS PARA DIZER

Sim, é só por isto que nos abalançámos a esta nova aventura.
E porque o que temos para dizer, acreditamos que, desta maneira, ainda não foi dito.
É importante olhar os factos de vários pontos de vista, analisar as suas faces, sobretudo as aparentemente ocultas.
Cada um de nós aqui imprimirá o seu ângulo de observação, não necessariamente coincidentes um com o outro.
Bom, basta de conversa mole; vamos a isto.