2018/11/26

Lisbon&Sintra Film Festival (2)


Filmes para todos os gostos, nesta 12ª edição do Lisbon&Sintra FilmFestival, que terminou ontem com a projecção do filme "The Code" (Cares Caparrós). A anteceder a exibição deste documentário, patrocinado pelo colectivo internacional de juízes do ICC, teve lugar um debate subordinado ao tema "Neoliberalismo - A semente do populismo e dos novos fascismos?",  com a participação do juiz Baltasar Garzón, da diplomata Aminata Dramane Traoré, do filósofo José Gil, da artista plástica Ângela Ferreira, da jornalista Ines Branco López e da historiadora Irene Pimentel, onde seriam abordados algumas das características mais marcantes da era pós-crise 2007, que esteve na origem de fenómenos como o "Brexit", Trump, Le Pen e os actuais movimentos nacionalistas europeus.  
Durante a semana, tempo ainda para ver duas estreias absolutas, os filmes "Season of the Devil" (Lav Diaz) e "The House That Jack Built" (Lars von Trier), para além de algumas obras já conhecidas, agora integradas nos diversos ciclos de realizadores homenageados. Foi o caso de "Hardcore" e "Adam Renascido", ambos de Paul Schrader, com direito a uma retrospectiva no festival; e o icónico "Torre Bela", de Thomas Harlan,  integrado no ciclo "O Desejo Chamado Utopia", seguido de debate, no qual participaram alguns dos intervenientes, que passaram pela famosa herdade, ocupada em Abril de 1975: Wilson Filipe, Camilo Mortágua, Francisco Fanhais, para além de Otelo Saraiva de Carvalho (comandante, à época, do Copcon), Roberto Perpignani (editor do filme) e José Manuel Costa, na qualidade de director da cinemateca portuguesa, que é proprietária do filme. Também esteve presente, Chester Harlan, filho do realizador. Uma animada sessão, onde entre palavras de sonho e desilusão, houve tempo para histórias desconhecidas do grande público, que o documentário, necessariamente, não pode mostrar.  Esta é a terceira versão do filme, que tem agora 2.20h e que, de acordo com o director da cinemateca, estará mais próxima dos desejos do realizador.
Lav Diaz (Filipinas), hoje um dos realizadores orientais mais aclamados a nível internacional, tornou-se conhecido no Ocidente, depois de "Norte, the end of history" (2013), que passou no Doc's desse ano. Desde então, é presença assídua nos festivais de todo o Mundo, onde obteve os principais  prémios e distinções. Após "Norte", seguiu-se "From What is Before" (2014), "A Lullaby to the Sorrowful Mistery" (2015), "The Woman Who Left" (2016) e, este ano, "Season of the Devil" (2018). Os filmes de Diaz, caracterizam-se pela sua duração (raramente têm menos de 4 horas!) e pela denúncia do estado de opressão e corrupção nas Filipinas, através de imagens de rara beleza que são usadas de forma metafórica para criticar a sociedade actual. O último filme (4 horas de projecção) não foge à regra, ainda que o tema (a repressão, nas aldeias filipinas, exercida pelas milícias do presidente Ferdinand Marcos) seja contado em forma de musical, com todos os personagens a cantar os diálogos. Estranho e encantador ao mesmo tempo, num registo a que não estávamos habituados.
Finalmente, o último filme do "enfant terrible" Lars von Trier, regressado após a sua polémica intervenção em Cannes (onde elogiou Hitler) e donde foi banido. "The House That Jack Built" é um filme terrível, onde o realizador não se inibe de mostrar o seu conhecido sadismo, através de imagens que contam a história de um "serial killer" americano. Pesem as imagens mais chocantes (diversas espectadores abandonaram a sala e uma espectadora sentiu-se tão mal que teve de ser retirada), o filme alterna o horror, com algum humor, numa "piscadela de olho" que ameniza a história entre episódios, mais ou menos grotescos. Hitler, está presente, da mesma forma que o Klu-klux-klan e as armas ao dispor de menores, numa alusão clara à paranóia americana. Destaque para Matt Dillon (no principal papel) bem secundado por Bruno Ganz e Uma Thurman, em pequenos, mas marcantes papéis. Não falta a grandiloquência habitual de Von Trier, um luterano em busca da eterna salvação, através de imagens deslumbrantes, das quais, o último plano no Inferno, é já um clássico. Tenham medo, muito medo.
P.S. Enquanto escrevíamos este texto, chegou-nos a notícia da morte de Bernardo Bertolucci. Curiosamente, o realizador esteve, como convidado, na segunda edição do festival em 2008, para apresentar o "making off" de "Novecento", provavelmente a sua obra-maior. Outros títulos marcantes, podiam ser nomeados: "Antes da Revolução", "O Conformista", "A Estratégia da Aranha","O Último Tango em Paris",  "O Último Imperador", "Um Chá no Deserto" ou "Luna". Nesta edição do Lisbon&Sintra Festival, foi exibido o seu filme "Il Conformista". Uma homenagem "avant la lettre". O cinema europeu ficou mais pobre.       

2018/11/22

Bons filmes, no Lisbon&Sintra Film Festival


Iniciou-se em 2006, no Centro de Congressos do Estoril, ao lado do Casino. Chamou-se "Estoril Film Festival", que juntava um programa de estreias e ciclos temáticos com a presença de figuras do "jet set" internacional, para dar um ar de "glamour" à coisa, não fossem os convidados não saberem onde ficava o Estoril. Claro está que, por detrás do evento, havia o patrocínio do casino (a principal receita da região) e a necessidade de pôr aquela, que em tempos idos já foi a nossa principal "resort" turística, no mapa. Uma "Cannes", à dimensão nacional, vá. Paulo Branco, o seu principal impulsionador e director permanente, viu ali uma oportunidade de fazer uma coisa de que gosta (divulgar bom cinema) e, ao mesmo tempo, arranjar apoios para os filmes de que é produtor (a sua principal actividade). Portanto, criou-se um festival, à imagem de acontecimentos semelhantes no Mundo, com alguns meios e contactos, ainda que sem o reconhecimento internacional e as "luzes" de Cannes, Veneza ou Berlim, eventos onde os filmes na secção de competição são apresentados em estreia mundial, onde os prémios atribuídos constituem um passaporte para a fama, onde o júri é constituído por personalidades do meio e onde os directores são nomeados pelos conselhos de administração dos eventos...
Logo nas primeiras edições, o Festival criou uma extensão em Lisboa, passando a chamar-se "Lisboa & Estoril Film Festival", com a maior parte da sua programação a ser apresentada nos cinemas Medeia, dirigidos por Paulo Branco.
Pesem as individualidades do Mundo do cinema e outras artes trazidas ao Estoril (Bertolucci, Robert de Niro, David Linch, J. Coetzee, Willem Dafoe, Juliette Binoche, Laurie Anderson...), a estância turística da costa do sol, nunca se afirmou como centro cinematográfico e é em Lisboa que os filmes são vistos e comentados. Provavelmente, por essa razão, a designação "Estoril" deixou de figurar no nome do Festival, tendo sido substituída por "Sintra", o que pressupõe um novo patrocinador do evento. Desde a última edição, que os filmes em competição são igualmente exibidos no Centro Olga Cadaval, a principal sala de espectáculos da vila, que substitui o antigo Centro de Congressos do Estoril.
Em Lisboa, os cinemas Medeia (Monumental e Nimas) continuam a exibir 80% da programação e é lá que os cinéfilos se encontram para ver o programa que, mais uma vez, é vasto e variado.
Nesta edição, a 12ª desde a criação do festival em 2006, destaque para os 11 filmes em competição, que um júri, do qual fazem parte nomes como Walter Salles, Marthe Argerich, Jonathan Littell e Chrysta Bell, entre outros, julgará e premiará de acordo.
Outros destaques da programação, são os filmes da selecção oficial (fora da competição), o ciclo "Waiting for Mr Lynch", os tributos a Darezhan Omirbayev, João Botelho, Walter Salles e Mario Martone e as retrospectivas dedicadas a Mike Leigh e Paul Schrader, para além dos programas especiais como "O Desejo Chamado Utopia" e "Neoliberalismo - A semente do Populismo e dos novos Fascismos?", estes últimos centrados em obras e temas da actualidade, com debates ao longo do evento. São mais de 200 filmes, a maior parte deles já estreados em Portugal (que agora regressam em cópias restauradas) e noutros países e festivais, que nunca foram estreados no nosso país.       
Dos filmes vistos esta semana, elogios para "Central do Brasil", o mais célebre filme de Walter Salles, que, após a exibição, manteve uma interessante conversa com os espectadores, sobre o filme e a actual situação politica no seu país, que o realizador caracterizou estar mais próxima das Filipinas de Duterte, do que da América de Trump. Vimos ainda um dos poucos filmes de Leigh que desconhecíamos ,"Um dia de cada vez", uma agradável surpresa, onde o realizador confirma todos os seus dotes, no tratamento de um argumento, aparentemente banal (o quotidiano e as relações de uma jovem professora londrina) e na direcção de actores, uma marca em todos os seus filmes. Muito bom.
Finalmente, "8, Rue Lenine", de Valérie Mitteaux e Anna Pitoun, um filme de tese, sobre a integração de uma família cigana de origem romena, que as realizadoras acompanharam ao longo de 15 anos, desde a sua expulsão e permanência em França em 2003, até ao regresso à Roménia, onde vivem actualmente. As realizadoras, presentes na sessão, pretendem continuar a filmar os descendentes destas famílias romenas e, dessa forma, acompanhar a sua integração na sociedade que os acolheu. Seguiu-se uma animada conversa com a assistência, onde estavam presentes portuguesas de origem cigana e a comparação entre a sociedade francesa e a sociedade portuguesa, relativamente à discriminação e integração das comunidades ciganas nas respectivas sociedades.
O Festival continua até domingo. Motivos para ver bons filmes, em Lisboa e em Sintra, não faltam.   

2018/11/16

Sevilha: de Murillo ao Flamenco, passando por Salvador Sobral

Que Sevilha é uma festa, já sabíamos. Quando não é, arranja-se sempre algo para festejar.
A última semana foi, neste capítulo, pródiga em acontecimentos. Sempre culturais, uns mais clássicos que outros, mas todos de inegável qualidade.
Comecemos pelos clássicos, aqueles que resistem ao tempo, critério por excelência para aferir da qualidade de uma obra de arte.
Passam, este ano, 400 anos sobre a data de nascimento de Murillo (1618-1682), um dos mais importantes pintores espanhóis, nascido e criado na cidade, onde viveu a maior parte da vida e viria a falecer. Como seria expectável, Sevilha engalanou-se e organizou eventos especiais à volta da sua obra, centrados no Museu das Belas-Artes (o segundo mais importante de toda a Espanha, a seguir ao Prado) e na sala de exposições temporárias do Hospital de La Santa Caridad, onde se encontram, em permanência, alguns dos retábulos mais conhecidos da obra do pintor. Em ambos os locais, podem agora ser admirados muitos dos seus quadros, restaurados para a ocasião, um trabalho que pode ser visto em filmes especialmente produzidos para as exposições.
Paralelamente, têm lugar na cidade, inúmeros colóquios e conferências sobre a obra de Murillo, com a participação de "experts" nacionais e internacionais, para além de diversas publicações especializadas, entretanto editadas. Para os turistas mais interessados, foi criado um percurso pedonal onde, para além dos citados museus, pode ser vista  casa onde nasceu o pintor, no Bairro de Santa Cruz e a pia baptismal, na igreja da Madalena, onde foi baptizado.
Um deslumbramento, a obra deste pintor barroco, onde se destacam as obras religiosas, duas das quais, "La multiplicación de los panes y los peces" e "Moisés haciendo brotar el agua de la roca", encomendadas para decorar a igreja de San Jorge (no Hospital de La Santa Caridad), podem temporariamente ser vistas à altura do chão, antes de regressarem ao tecto da igreja da qual fazem parte, depois de terem sido sujeitas a um cuidado trabalho de restauração. Imperdível.

Estar em Sevilha, sem ver Flamenco, equivale a estar em Roma e não ver o Papa. Lá fomos, ver um dos "papas" actuais da arte, o "cantaor" Arcángel, certamente um dos flamencos mais interessantes da nova geração, que veio apresentar em Sevilha o seu último álbum, "Al este del cante", um trabalho de fusão, onde participa o Coro das Novas Vozes Búlgaras, sob a direcção do maestro Georgi Petkvov. Excelente concerto, no grande auditório da Feira Fibes (onde se realizaram as quatro edições da "Womex") ainda que os principais convidados do álbum (Vicente Amigo, Lola Montoya, etc.) não tivessem estado em palco. Com mais de 15 anos de carreira profissional e diversos álbuns no activo, Arcángel é hoje um artista maduro, cuja voz e timbre únicos, ganham nova expressão, quando fundidas com as vozes celestiais deste coro feminino búlgaro. Excelente.
A actuar igualmente na cidade, estava Salvador Sobral, na sua primeira apresentação em Sevilha, após o celebrado sucesso na Eurovisão. Sobral, que goza de grande popularidade na Andaluzia, onde viveu 3 anos, tinha a sala do teatro de La Maestranza quase cheia, com mais de 1500 espectadores a aplaudi-lo durante todo o concerto. Um programa, baseado no seu primeiro álbum "Excuse me", com incursões no jazz, bossa nova e boleros, cantados em excelente castelhano.
Não faltou o incontornável "Amar pelos dois", compartilhado em coro pela assistência, para além de algumas "inside jokes" no dialecto local, que arrancaram sonoras gargalhadas à plateia. A crítica local (ABC e Notícias de Sevilha) adorou e não poupou os elogios ao luso cantor, o que abre boas perspectivas para futuros concertos na vizinha Espanha.
Uma última nota, para a actuação do grupo de teatro do Chapitô (Lisboa), em digressão pela província andaluza, que tivemos o privilégio de ver no auditório de S. José de Rinconada, uma vila nos arredores de Sevilha. O grupo apresentou a sua última produção "Electra", baseado no clássico drama grego, agora em tons de comédia, que arrancaram aplausos aos espectadores presentes (maioritariamente alunos de artes dramáticas) num espectáculo de grande qualidade e rigor técnico, onde não faltou o humor, desta vez em versão castelhana.

2018/10/31

DOCLisboa 2018 (Conclusão)


Terminou mais uma edição do DOCLisboa.
No último dia do festival, tempo para prémios e filmes em sessões duplas.
Destaque para "Eldorado" do suiço Markus Imhoof (2018), uma co-produção suiça-alemã sobre um dos temas da actualidade: a crise dos refugiados. A partir da correspondência trocada com uma amiga judia, adoptada pela sua família durante a guerra, Imhoof traça um paralelo com a actual vaga de refugiados, que chegam à Europa vindos de África e do Médio-Oriente. O filme acompanha as diferentes etapas da fuga, desde a travessia e recolha dos náufragos por uma corveta italiana, em pleno mediterrâneo, até à chegada a terra firme, onde têm de passar pelo crivo burocrático da identificação e permanência em campos de detenção, antes de poder (ou não) seguir viagem. Uma verdadeira odisseia, relatada na primeira pessoa pelos refugiados, vítimas de conflitos regionais e explorados pelas redes de tráfico humano que operam na costa africana.
Greetings from Free Forests
Uma vez em terra (Itália) espera-os a máfia local que aproveita a sua permanência para explorá-los na apanha do tomate e outras tarefas agrícolas. Não faltam os momentos de tensão, próprios destes centros, onde milhares de migrantes esperam por uma decisão que pode mudar a sua vida. Para muitos (a maioria) a decisão será negativa e nada mais restará do que a extradição, enquanto que, para outros, o caminho continua, na melhor das hipóteses até à Suiça, onde cada cantão aplica a sua própria política de acolhimento.
Um filme divertido, com base num episódio real, passado no Chile, seria "Stealing Rodin" (Cristóbal Berrios) , onde se conta o desaparecimento de uma famosa estátua do escultor francês, durante uma exposição da sua obra, no Museu de Arte da Cidade. Um estudante de arte, resolve roubar e esconder uma das obras expostas e utilizá-la para o seu exame final, onde defende a tese de que a arte só pode ser devidamente apreciada, quando se dá pela falta dela. Uma história bem contada, onde os principais personagens representam o seu próprio papel.

Terra
Interessante, seria a trilogia de filmes sírios, do realizador Omar Amiralay, integrada na secção "Foco: navegar o Eufrates, viajar no tempo do Mundo". Através de belas imagens, num estilo que, a espaços lembra Joris Ivens, o realizador mostra-nos a ascensão e queda da utopia representada pela ilusão de socialismo e progresso prometidos pelo partido Baath, no poder desde a segunda guerra mundial. Do entusiasmo em torno da barragem de Tabqa, no vale do Eufrates; à vida quotidiana de uma aldeia síria em que as pessoas são abandonadas pelo governo, ao afundar definitivo da esperança democrática, numa autocracia rígida, em que se mantiveram as antigas estruturas tribais, os filmes de Omar Amiralay formam um painel representativo da Síria contemporânea.
Finalmente, os principais prémios do Festival.
Grande Prémio, competição internacional: "Greetings from Free Forests" de Ian Soroka.          
Prémio SPA: "The Guest" de Sebastian Weber.
Grande Prémio, competição portuguesa: "Terra" de Hiroatsu Suzuki e Rossana Torres.
Menção Honrosa: "Vacas e Rainhas" de Laura Marques. 
Prémio do Público: "Vadio" de Stefan Lechner.
E é tudo. Para o ano há mais. 

2018/10/29

Bye Bye Brasil...


... É o título de um dos mais célebres filmes brasileiros da década de 1970, quando a ditadura militar governava e, para além da repressão e da tortura, vendia o país a retalho a multinacionais estrangeiras.
O filme, uma comédia de Carlos Diegues (1979), sobre as peripécias de uma família de saltimbancos em viagem pela Transamazonia, mostra um país de contrastes e desigualdades, tendo como pano de fundo a luta pela sobrevivência dos seus habitantes e a exploração desenfreada das suas riquezas naturais.
Sobre a obra escreveu, então, o crítico Cassiano Terra Rodrigues no "Correio Cidadania":
"Bye Bye Brasil é um filme de um país que está deixando de ser o que por muito tempo foi para se tornar não se sabe o quê...". Lembrei-me desta citação, quando assistia ontem à emissão especial de um canal televisivo sobre o acto eleitoral brasileiro.
Ainda que o resultado final não tenha sido propriamente uma surpresa (todas as projecções apontavam neste sentido), o facto de 57 milhões de brasileiros terem votado num bronco fascista é por demais preocupante para deixar indiferente qualquer democrata.
O Brasil (e por extensão, a América Latina) corre o risco de um retrocesso civilizacional, como não se via desde a década de setenta, quando a maior parte do continente sul-americano era governada por juntas militares, cuja política assentava na repressão, na tortura e na morte dos seus oponentes. Foi assim no Brasil, como no Chile e na Argentina, no Uruguay, como no Paraguay... O tempo da "operação Condor", idealizada por Kissinger e executada com o apoio da CIA. Toda a gente está lembrada disso e existem quilómetros de documentação escrita e filmada sobre os "anos de chumbo" que se abateu sobre a América do Sul, certamente um dos períodos mais negros do pós-guerra no Mundo Ocidental. Já lá vão mais de trinta anos e, desde então, muita coisa mudou no Mundo, a começar pelo Fascismo clássico que, não tendo desaparecido, ganhou, entretanto, outras formas. Com a queda do "muro de Berlim" e a implosão da União Soviética, o "papão comunista" pode ter desaparecido, mas a apetência pelas riquezas naturais, não. A "globalização" que se seguiu, ao contrário do que muitos profetizavam, não trouxe mais riqueza para todos e, muito menos, melhor distribuição dessa mesma riqueza. Os ricos aumentaram os seus proveitos (50% da riqueza do Mundo está, hoje, nas mãos de 1% da população mundial) e o capitalismo, agora menos regulado, tornou-se ainda mais predador do que já era.
A desregulação do sistema (que originou uma transferência do capital produtivo para a esfera do capital especulativo) levou os agentes económicos a procurar outras formas de intervenção que, em períodos de crescimento económico e em sistemas democráticos estáveis dispensa intervenções "musculadas", mas que, em regimes fracos, podem ser equacionadas. 
O que se está a passar no Brasil, como de resto noutras partes do Mundo - do Brexit inglês, à América de Trump, passando pela Hungria de Órban, ou à Austria e à Itália, onde governam  ditadores do "novo tipo" - não se trata de um hiper-fenómeno, mas de uma tendência que tem vindo a alastrar nos últimos anos. É verdade que o fascismo de hoje, tem características diferentes daquelas enunciadas por Eco no ensaio "Como reconhecer o fascismo" (Relógio de Água, 2017) no qual, o conhecido semiólogo italiano, utiliza 14 arquétipos para definir a "besta". No entanto, bastou ter ouvido Bolsonaro durante a campanha eleitoral (durante a qual se recusou a debater com o oponente) para reconhecer os principais traços de um ditador. Está lá tudo: o culto da tradição, a rejeição do modernismo, o irracionalismo, o sincretismo, o medo da diferença, o apelo às classes médias frustradas, a obsessão da conspiração, o nacionalismo, a deslocação do registo retórico, o apelo à violência, o desprezo pelos fracos, o culto dos heróis, o machismo, o populismo, a "neolíngua". Não por acaso, Bolsonaro é apoiado pelas forças armadas (bala), pelas seitas evangélicas (bíblia) e pelos grandes agrários (boiada), os três "Bs" que sustentam a sua candidatura. Que esperar de um candidato que elogiou a ditadura e, em pleno congresso, deu vivas a Ustra, o torturador-mor da junta brasileira; que disse que a ditadura matou pouca gente e que Fernando Henrique Cardoso (ex-presidente da República) devia ter sido morto; que as mulheres deviam ganhar menos que os homens e que as pobres deviam ser esterilizadas porque têm muitos filhos; que bandido morto é bandido bom; que quer armar a população; e que não gostaria que um filho seu fosse homosexual, entra outras barbaridades? Bom, esse candidato é Bolsonaro, ontem eleito presidente da maior democracia da América do Sul. Os brasileiros que nele votaram, não podem dizer que não sabiam. Todas estas declarações estão gravadas e foram amplamente noticiadas em todo o Mundo. Tiveram o apoio de mais de 50 milhões de votantes, muitos conscientes do que queriam, outros sem consciência alguma. Que se seguirá? Não sabemos, mas parece que governar o Brasil parece, agora, estar tão distante, como no filme de Diegues.
Nota final: em Portugal, os imigrantes brasileiros superaram os 55% atingidos pelo candidato fascista na média final. Mais de 64%, só em Lisboa! É obra. Perante tais números e partindo do princípio que estes "bolsonaristas", agora, já não têm nada a temer e podem regressar à pátria, faço, desde já, uma sugestão: trocá-los por um número igual de democratas brasileiros. Desta forma, ganhamos todos.     
      

2018/10/26

O DOCs é uma festa!

Entre documentários sobre a actualidade política e social e ensaios de criação livre, o DOCs mantém os critérios artísticos seguidos desde a primeira edição, já lá vão 16 anos. A diversidade temática, aliás, continua a ser uma das "linhas de força" da programação, o que mantém o festival vivo e abrangente e o seu grupo-alvo diversificado. Há muitos grupos-alvo, de resto, e isso é bom. No Festival podemos encontrar de tudo: estudantes das academias de cinema e das belas-artes, estudantes "tout-court", realizadores em início de carreira e realizadores consagrados, nacionais e estrangeiros, jornalistas ou, simplesmente, cinéfilos curiosos, como eu.
Esta semana, arriscámos filmes na secção "Riscos" (New Vision), onde são programados pequenos documentários sobre temas tão diversos, como as memórias (de lugares e episódios que nos marcam), a revolução (o que quer que isso seja) ou os desafios actuais (após as eleições americanas).
Escolhemos filmes de autores portugueses, para avaliar do estado da arte que se vai fazendo entre nós e pelos nomes programados. Da pedra mortuária em monumentos, aos sem-abrigo de Lisboa, passando pelos primeiros filmes-ensaio de artista plástico Ângelo de Sousa, as temáticas eram intrigantes e mereceram o visionamento.
Começamos por "A (Im)Permanência do Gesto" de Manuel Botelho, professor de artes plásticas que, aos 67 anos, fez o seu primeiro (e muito provavelmente último) filme. Belíssima reflexão sobre a memória, através de alguns dos mais emblemáticos monumentos funerários em pedra, existentes em mosteiros na região centro de Portugal, a partir de um texto do autor apresentado numa conferência do Museu de Arte Antiga. No filme, Botelho, mantendo o texto, refaz a sequência e o número de fotos, criando uma galeria admirável de imagens onde nos confronta com a imortalidade dos monumento fúnebres e, por extensão, da nossa própria mortalidade. Magnífico ensaio, que mereceu unânimes aplausos.
Outro autor, a quem nos "ligam" laços de cumplicidade de outros tempos e aventuras, é Rui Simões (Deus, Pátria e Autoridade), que apresentou no festival o seu último trabalho "Teus Olhos castanhos, de encantos tamanhos". Uma curta (23'), sobre Fernando Moedas, um sem-abrigo que o realizador acompanhou ao longo de anos e com quem fez amizade em encontros de convívio semanal. O intérprete acabaria por falecer durante as filmagens, mas este pequeno e comovente filme (feito com meios mínimos) é a prova de que o bom cinema não necessita de grandes meios.
Finalmente, as primeiras experiências em super-8, feitas por Ângelo de Sousa, artista plástico total que marcou as décadas de sessenta e setenta em Portugal.
No final, tempo para discussão com os autores presentes (Botelho e Simões) cujas obras, ainda que separadas por realidades distintas, nos remetem para a memória dos dias e do lugar dos humanos, na grande Humanidade.
Finalmente, duas obras sul-americanas, na Competição Internacional: "Maré" e "Miro, Las Huellas del Olvido", respectivamente da brasileira Amaranta César e da Argentina Franca Gonzalez, ambas presentes no festival.
O filme brasileiro, feito na região da Cachoeira (Bahia), conta-nos, em imagens de grande beleza estética, a história (ficcionada) de 3 gerações de mulheres que vivem da recolha de mariscos, que a maré lhes traz para o seu sustento. Entre a tradição e a mudança, a mais jovem escolhe o seu destino e parte, rumo à cidade e à emancipação. Filme curto (23'), quase sem diálogos, onde o significado da mensagem se sobrepõe ao texto. Num momento delicado para o Brasil, questões como a defesa da natureza e a emancipação feminina, ganham aqui nova actualidade. Não nos espantaria que o filme recebesse alguma nomeação.
"Miro", é mais um filme de memória, desta vez sobre os restos de uma cidade de colonos italianos, construída na região das Pampas, em finais do século XIX. A cidade seria destruída pelos seus habitantes, no início do século passado, após venda das terras a particulares. Com o auxílio de descendentes dos antigos moradores, habitantes da zona e arquivos dos caminhos de ferro argentinos, a autora fez um trabalho quase arqueológico, onde através de belíssimas imagens (a fotografia é, aqui, fundamental) nos leva imaginar, como teria sido a vida em Miro há cem anos atrás.
Um belo filme, na tradição do bom cinema argentino.       

2018/10/23

O eterno retorno do fascismo (5)


O fascismo cavalga sempre a ignorância. A ignorância e o medo.
As desigualdades sociais, a religião, a criminalidade e a corrupção, explicam o resto.
Num país de "castas", que dois séculos de independência não aboliram e onde o patrocinato e o clientelismo são regra, a corrupção é transversal e tornou-se um "modo de vida".
Não é de espantar esta reacção, contra elites e governantes corruptos que, não só não resolveram os problemas mais urgentes da população como, em muitos casos, os agravaram. Obviamente que a culpa não foi só do PT. Mas, agora, ninguém quer saber disso...
O apelo ao "homem forte" é uma constante da História em tempos de crise moral e social. Nomeadamente, em sociedades onde o estado é fraco. Onde o estado é fraco, a criminalidade aumenta (lei sociológica).
Sem esperança de dias melhores, numa sociedade com índices de criminalidade que rondam os 60000 homicídios/ano, os brasileiros querem "segurança" que - pensam eles - só um governo autoritário pode garantir.
A "lavagem cerebral" das seitas evangélicas, ampliadas pelas "fake news" e manipuladas pelos média, ao serviço de interesses vários, contribuem para o caos instaurado.
A alienação e o ódio, são totais.
Entrámos (entraram, os brasileiros) na fase da irracionalidade.
Nada é previsível e o pior pode acontecer.
Uma tragédia anunciada, o Brasil.

Convite


2018/10/22

DOCLisboa 2018


Está de volta o DOCs, o mais importante festival de cinema documental de Lisboa, este ano na sua 16ª edição. São mais de 200 filmes, de longa e curta metragem que, ao longo de 10 dias (18-28 de Outubro), podem ser visionados em cinco salas da capital: a Culturgest (sede e bilheteira central do festival), o cinema S. Jorge (onde tudo começou), a Cinemateca Portuguesa (parceiro habitual do evento), a Cinemateca Júnior (com filmes dedicados aos mais jovens) e o Cinema Ideal (parceiro recente desta aventura).
Nem sempre é fácil ver os filmes mais badalados ou aqueles que suscitam maior curiosidade. Seja pela temática, seja pela obra dos autores, muitos deles nomes habituais do certame.
Uma das dificuldades, reside na dispersão do festival pela cidade, que obriga a verdadeiras maratonas entre as salas, nem sempre com sucesso: ou falta tempo ou faltam bilhetes.
Como habitualmente, o Festival está organizado em secções temáticas, das quais a "Competição Internacional" é apenas a mais visível, devido às menções atribuídas por um júri internacional, que garantem a distribuição automática dos filmes no circuito comercial.
Depois, a "Competição Portuguesa", com obras de novos e consagrados autores, que aqui apresentam os seus filmes em estreia. Também esta secção é premiada.
Mas, há mais: A secção "Riscos: new visions", com três autores convidados (James Benning, Mike Hoolbom, Jen-François Stévenin; a secção "Retrospectiva" (este ano dedicada ao realizador colombiano Luis Ospina); a secção "Foco: navegar o Eufrates, viajar no tempo do Mundo"; a secção "Da Terra à Lua"; a secção "Heart Beat"; a secção "Cinema de Urgência"; a secção "Verdes Anos" (dedicado a jovens autores portugueses); a secção "DOC Alliance" e a secção "Projecto Educativo".
O festival oferece ainda, outras actividades paralelas, como o Encontro com Luís Ospina, "workshops" com técnicos de laboratório e práticas cinematográficas, exposições fotográficas, sala de projecções em vídeo, etc. Uma festa, portanto!
Destaque, neste primeiro fim-de-semana, para os títulos "The Waldheim Waltz" da austríaca Ruth Beckermann (2018), sobre o ex-secretário-geral das Nações Unidas, impedido de concorrer ao cargo de presidente daquele país, devido à colaboração com o nazismo durante a guerra; o filme "The Silence of the Others", de Almudena Carracedo e Robert Bahar (2018), sobre as vítimas e sobreviventes da ditadura franquista, e "Fahrenheit 11/9", de Michael Moore (2018), um olhar provocador e cómico sobre a era de Trump (como entrámos e podemos sair dela).
Dos filmes vistos, realce para "Matislav Rostropovich, the indomitable bow" de Bruno Monsaingeon (2017), sobre o génio do violoncelo, forçado a um exílio de 16 anos, depois das autoridades soviéticas lhe terem retirado a nacionalidade e de ter ajudado Soljenitsine (Arquipélado de Gulag) que chegou a viver na sua casa de Moscovo. Um documentário de uma sensibilidade extraordinária, sobre um dos maiores músicos do século passado, onde são passados em revista os momentos mais significativos da sua atribulada, mas preenchida vida.
Uma agradável surpresa, seria o filme "Il sogno mio d'amore" de Nathalie Mansoux e Miguel Moraes Cabral (2018), uma produção difícil, realizada ao longo dos anos 2014 e 2015, sobre o Conservatório Nacional de Música onde, em condições milagrosas (há tectos a cair!), professores e demais pessoal daquela casa, asseguram que a música, o canto e a dança, sejam ensinados diariamente a jovens talentos que deslumbram pela tenacidade e qualidade. Uma pequena obra de arte, só possível graças à solidariedade de todas as pessoas envolvidas e ao exemplo de amor à arte, demonstradas em imagens inesquecíveis. Senhores ministros da educação e da cultura, vejam este filme e reflictam!
"Graves Without a Name" (2018) é o mais recente filme do realizador Rithy Pahn (Cambodja) que, a exemplo de obras anteriores, continua a obra de catarse e denúncia do regime dos Khmer Rouge que, durante a sua existência (1975-1979), foi responsável pela morte de mais de 1,5 milhões de pessoas (1/3 da população). A maior parte destas vítimas, morreram nos célebres "campos da morte" (Killing Fields) destinados à "reeducação" política. Pahn, o único sobrevivente da sua família, morta durante o regime de Pol Pot, conseguiu fugir para França, onde cursou cinema nos anos oitenta. Desde então, vem construindo um laborioso legado sobre a memória da ditadura, em imagens belas, mas terríveis pelo seu significado (o regime não deixou quase nenhum material, filmado, sobre as condições existentes nos campos), as quais constituem, já hoje, o maior legado ao Museu da Memória da Ditadura, no Cambodja. Lembramos, para quem não conheça, os filmes "Rice People" (1994), "S-21: The Khmer Rouge killing machine" (2003), provavelmente o seu filme mais famoso, "Paper cannot wrap up members" (2007), "The missing people" (2013), o meu preferido e "Exile" (2016), este exibido no DOCs. Com o seu mais recente filme, Pahn conduz-nos, numa viagem iniciática (o realizador é o intérprete principal), aos campos de arroz, onde a família pereceu e onde, hoje, nada mais resta do que pó e pedras em campas vazias. As vozes dos sobreviventes são, agora, o único testemunho. A partir, daqui, que mais nos poderá mostrar o realizador? O círculo parece fechado. A memória, essa, permanecerá.
             

2018/10/03

O eterno retorno do fascismo (4)

EPA/SEBASTIAO MOREIRA
A menos de uma semana das eleições brasileiras, os dados parecem estar lançados: nenhum dos candidatos à presidência reunirá os votos necessários para ganhar à primeira ronda, pelo que será necessária uma segunda volta (prevista para o último fim-de-semana de Outubro), para saber quem irá ocupar o palácio do Planalto.
Os candidatos mais bem posicionados para passarem à segunda volta, são: Jair Bolsonaro, que representa a extrema-direita mais reaccionária e troglodita do país (apoiado pelos militares saudosistas da ditadura, pela alta-finança e pelas igrejas evangélicas, das quais, a IURD de Edir Macedo, é a mais conhecida); e Fernando Haddad, lançado à última hora pelo PT, em substituição de Inácio Lula, impedido de concorrer por se encontrar preso. 
De acordo com as últimas sondagens, Bolsonaro passará à segunda volta com cerca de 30% dos votos, enquanto Haddad, com cerca de 20%, já se distanciou dos outros concorrentes, ainda que continue longe dos 38% atribuídos a Lula, em finais de Agosto.
Perante este cenário e partindo do princípio que a maioria dos votantes não se revê em nenhum dos dois potenciais candidatos, resta saber em quem votarão os brasileiros (cerca de 50%), que rejeitam o fascismo e o PT.  Porque é disso que se trata, goste-se ou não da escolha.
Uma terceira alternativa, seria a abstenção, mas a constituição brasileira não o permite e o voto é obrigatório. Logo, quem não votar é multado e quem votar em branco favorece o candidato mais bem posicionado, neste caso Bolsonaro. Para mim, que defendo a democracia, a escolha seria fácil. Da mesma maneira que, se fosse americano, teria votado em Hillary Clinton, um mal menor relativamente ao escroque Trump.
Para grande parte da classe média brasileira, o "problema" parece residir no PT, que continua a gerar anti-corpos, muito por causa da corrupção generalizada, da criminalidade e da recessão económica, que o país atravessa de há anos a esta parte. Acontece que, estes problemas, sendo genuínos e reais, não se devem exclusivamente aos governos PT, por uma razão simples: o Brasil é, de há séculos, uma sociedade de "castas" e clientelas, onde a corrupção se tornou "um modo de vida" e o sistema de subornos e nepotismo criou e manteve uma das sociedades mais desiguais do planeta. Esta herança de séculos, que o PT tentou contrariar (sem nunca tocar nos privilégios das elites!), através de programas de combate à desigualdade - elogiados pela ONU, pelo PNUD, pela UNESCO e pelo Banco Mundial - não foi, contudo, suficiente para evitar uma crise social e económica. Os sucessivos escândalos de suborno e corrupção (Mensalão, Odebrecht, Petrobras, etc.) demonstraram à saciedade, que algo estava "podre no Brasil" e não era pouco. O processo de investigação, conhecido por "Lava Jato" (uma alusão à "lavagem" de dinheiro desviado) deu cabo das últimas esperanças do brasileiro médio, pouco politizado e manipulado por uma imprensa sensacionalista, que deixou de acreditar nos políticos. O desemprego galopante, a inflação e a recessão, que se seguiram, fizeram o resto. Perante a descrença total e sem soluções à vista, a panaceia para todos os males parece ser um homem "forte", de preferência militar. Falta-lhe o bigode, mas o filme é conhecido.
Alguém, nas redes sociais, dizia por estes dias que existem dois tipos de anti-petistas: os ideológicos e os patológicos. Penso que, a maior parte, pertence ao segundo grupo: não interessa em quem se vota, desde que o PT perca! No limite, muitos deles, nem gostarão de Bolsonaro, mas como é o único que pode impedir a vitória do PT, então, votam nele (!?).
Há claro, forças interessadas na sua vitória: desde logo os militares, saudosistas do tempo da ditadura (1964-1985) que vêem aqui uma oportunidade de sair dos quartéis; depois, há os evangélicos de diversa plumagem, que dão indicação de voto aos "fiéis", argumentando que o capitão psicopata defende os valores da  família e do cristianismo (!?); finalmente, a finança, que controla a banca, as grandes empresas e domina a comunicação social (Globo, Veja, Data Folha, TV Record, etc.).
Ora a finança (vulgo "mercados") está interessada numa ditadura, a melhor forma de controlar a economia. A "economia" sempre se deu bem com o fascismo, pois é a melhor maneira de manter os trabalhadores submissos. Claro que o fascismo tem a "perna curta" e, no médio prazo, acabará por cair, mas isso não interessa nada aos neoliberais, desde que o "mercado" funcione. Por alguma razão, Bolsonaro já anunciou que não percebe nada de economia (em rigor, ele não sabe nada de coisa nenhuma) e, por isso, nomeará para "ministro da fazenda", o célebre Paulo Guedes, um rapaz da "Escola de Chicago" que, em tempos, foi conselheiro de Pinochet...
Conheço, inclusive, brasileiros cristãos, casados e com filhas, que vão votar em Bolsonaro, apesar do seu discurso onde defende a pena de morte, a tortura, a violação, a misoginia, a homofobia e o racismo. Para essas pessoas, isso não interessa nada. O que interessa, agora, é impedir que o PT volte ao poder. Depois, logo se vê...
É como a história de Mephisto (Fausto): vendeu a alma ao diabo, acreditando na sua salvação.
Depois...fodeu-se!

2018/09/30

Sevilha: Bienal de Flamenco (2)

Para a segunda metade da Bienal deste ano, reservámos três entradas, seguindo o mesmo critério dos primeiros espectáculos: um de "toque", um de "baile" e outro de "cante", as expressões da arte flamenca por definição.
Começámos pelo concerto "Viviré" (homenagem a Camarón) por um dos maiores guitarristas flamencos da actualidade, José Fernández Torres (Tomatito), companheiro de estrada e de estúdio do famoso "cantaor", falecido em 1992.
Este era um concerto imperdível, não só pela áurea de Tomatito - uma "fiera" na expressão carinhosa dos seus admiradores - mas, porque dos grandes guitarristas vivos (Manolo Sanlucar, Vicente Amigo, Gerardo Nunez, Chicuelo...) Tomatito era o único que eu não tinha visto ao vivo. Tive o privilégio de assistir à última apresentação de Paco de Lucía em Lisboa (2005), pelo que me posso considerar um homem de sorte...
O concerto, que decorreu no passado 22 de Setembro, teve lugar no teatro La Maestranza (1800 lugares) um imponente edifício, construído de raiz para a Expo'92, inicialmente projectado para ópera e zarzuela e que tem como residente a Real Orquestra Sinfónica de Sevilha. Para além de ópera, a sala programa espectáculos nas mais diversas áreas, desde o pop ao rock, passando pelo cabaret (Utte Lamper), flamenco (Mayte Martín), fado (Dulce Pontes, Mísia, Carminho) e, já no próximo mês de Novembro, o "nosso" Salvador Sobral. Mais eclético do que isto, é impossível.
Tomatito, portanto: fabuloso guitarrista, fantásticos convidados (José del Tomate, Duquende, Arcángel, Rancapino Chico), para além dos respectivos acompanhantes, onde havia "cantaoras", um violinista e um percussionista. Um elenco fabuloso, que passou em revista muitos dos temas celebrizados por Camarón (Leyenda del Tiempo, e.o.), a solicitar os "olés" da praxe, sinónimo de apreciação geral. Um pequeno senão (pelo menos na zona onde nos encontrávamos) que foi o som, verdadeiramente deplorável, dado o volume e a amálgama de instrumentos, que seriam fatais para um concerto que tanto prometia. Ficará para uma próxima oportunidade, estamos certos.
O dia seguinte, seria dedicado ao "baile", com o espectáculo "Improbataciones", uma estreia na "off Bienal", este ano coordenado pela "bailaora" Asunción Pérez "Choni", conhecida de actuações anteriores e que também dirigiu a abertura da Bienal na ponte de Triana. Os mesmos intérpretes de Triana, com Manuel Cañadas, (bailarino contemporâeno), David Bastidas e Alícia Acuña (cantaores), Víctor Bravo e Asunción Pérez (bailaores). Pese o lado de improviso, sublinhado pelos artistas na sua interacção com os espectadores, estamos em presença de excelentes intérpretes em cada um dos géneros (dança e canto), que são, de há muito, uma presença assídua na cena sevilhana. Destaque para Manuel Cañadas, que nunca tínhamos visto, e que se afirma como um bailarino de grande estilo e presença. Bom espectáculo, onde a seriedade e o humor, sempre servidos por uma óptima banda sonora, alternaram com bom gosto.
Finalmente, o concerto flamenco do surpreendente Niño de Elche, de quem já conhecíamos o último trabalho discográfico (Antologia del Cante Flamenco Heterodoxo) e do qual nos foi dado ver um pequeno trecho, no fabuloso espectáculo de abertura da Bienal, a cargo do "bailaor" Israel Galván.     Desta vez, a actuar na mítica sala Lope de Vega, a mais clássica de todas as salas da cidade (inaugurada em 1929 e reconstruída por duas vezes, após um fogo, duas cheias e a guerra civil,  quando funcionou temporariamente como hospital) o iconoclasta Niño não desiludiu.
Ou melhor, disse ao que vinha, desde logo quando se apresentou em palco vestido com um fato de treino, que despiu placidamente em frente à assistência e envergou um traje flamenco tradicional (calças e jaqueta negra, sobre uma camisa branca) para, sob uma aparente forma clássica, desconstruir a simbologia e o discurso flamenco tradicionais. Acompanhado por dois excelentes músicos, Raúl Cantizano (guitarra e percussão) e Susana Hernández (teclado, sintetizadores e electrónica) e pelos convidados, os "palmeros" David Bastidas e Alicia Acuña e "bailaores" Israel Galván e Eduarda de los Reyes, Niño de Elche passaria em revista os "palos" mais clássicos (farrucas, seguirias, saetas, fandangos, tangos e rumbas) numa abordagem "sui-generis", intercalada por poemas (Eugenio Noel, Lorca), cantos da guerra civil e uma improvisação sobre Tim Buckley, não tendo faltado a Rumba y Bomba, que encerraria o espectáculo. No fundo, à imagem do grande Enrique Morente, que chocou tudo e todos quando gravou "Omega", com a banda rock de Lagartija Nick, obra que os fundamentalistas flamencos ainda hoje não consideram digna do "cante". Destaque, mais uma vez, para o grande Israel Galván, no pico da sua arte, provavelmente o mais eclético e inovador "bailaor" flamenco da actualidade, que nos ofereceu dez minutos electrizantes.
Nota final: durante o espectáculo, muitos espectadores saíram da sala e, no dia seguinte, a imprensa local (ABC e Diário de Sevilha) arrasaram o concerto. Não me lembro de ter lido críticas tão demolidoras a um concerto. Niño de Elche conseguiu exasperar os puristas, provavelmente o seu objectivo último. Eu adorei.
                           

2018/09/20

Taxi Driver (15)


2º dia de greve dos taxistas de Lisboa.
São 10h da manhã. Passo pela praça de táxis do bairro, deserta àquela hora.
Pára um táxi. O motorista abre o vidro e pergunta:
- Para onde vai?
Para Sete-Rios, respondo.
- Está bem, pode entrar...
Então, não está em greve?
- Estou e não estou...se fosse para a Baixa não ia, está para lá uma confusão dos diabos...
Pois deve estar e vai continuar, ao que percebi.
- Sim, são capazes de lá ficar o dia inteiro, mas isto não vai dar em nada...
Não? Então?
- Não vai dar em nada, porque há muitos interesses à mistura e há governantes metidos nisto.
Não me admirava nada...
- Olhe, o dono da Uber é o marido da Cristas, a filha do ministro do ambiente tem uma frota de 20 carros na Uber e até há donos de empresas de táxis que têm carros na Uber...Como é que isto pode dar resultado? Não viu o tempo que levaram a aprovar esta lei? Há dois anos que andam a discuti-la e só em Novembro é que vai ser promulgada. Claro que isto deve interessar a alguém...
Sim, há sempre interesses e "lobbies" pelo meio, já sabemos...
- Claro que há. E agora já não é só a Uber, entretanto apareceram mais duas empresas, a Cabify e uma francesa. Isto não pára...
Mas também existem noutros países...
- Pois existem, mas foram proibidas noutros. Ouça, os motoristas de táxi não são contra a Uber, apenas querem ser tratados de forma igual: mesmos direitos e obrigações. Eles podem circular desde que observem as mesmas regras: têm de pagar impostos, estacionar nas mesmas praças e fazerem cursos como nós fazemos. E devem ser estabelecidos máximos no número de viaturas...
As pessoas pensam que pagam menos indo com a Uber, mas não é verdade. Ainda esta semana apanhei uma senhora que me disse que foi a Cascais num carro da Uber, em tarifa dinâmica, e só pagou 40 euros. E eu disse-lhe que se tivesse ido de táxi, pagava 30! Porque no táxi só pagava o que o táximetro marcasse e indo com a tarifa dinâmica na Uber, esta cobra pela prioridade no serviço. Quanto mais serviços têm, mais os preços sobem... 
Estou de acordo, a legislação tem de ser mais apertada. Já há cidades que impuseram regras, como Barcelona, Copenhague e Berlim. A Uber não aceitou as condições e foi-se embora...
- Está a ver? É isso que os nossos governantes têm medo de fazer...está tudo "armadilhado"...
E quanto tempo é que pensa que este "braço de ferro" vai durar?
- Nunca se sabe, pode durar dias ou acabar já hoje, mas há carros a trabalhar...o problema é da legislação. Se houver regras é mais fácil para toda a gente. Já viu os "tuc-tucs"?
Os "tuc-tucs"?
- Sim, os "tuc-tucs". Não havia legislação e começaram a aparecer por todo o lado. Eram 200 e já são quase 600! A ideia inicial era haver 20 ou 30, que iam aos sítios onde os táxis não podem ir, como os castelos, miradouros e tal, mas agora andam por todo o lado. Até ao Cristo-Rei já vão!
Ao Cristo-Rei? Mas, podem passar na ponte?
- Podem, porque são motores com mais de 125cc.
Essa nunca tinha ouvido...
- Vale tudo. Com os protestos, a Câmara ainda fez uma lei para acabar com os motores a gasolina, por causa da poluição. Agora só com motores eléctricos. Mas, continuam a empatar o trânsito, a não pagarem impostos, não têm táximetros, fazem o preço que querem e exploram os turistas que nunca sabem quanto pagam no fim a corrida. A maior parte deles, nem as ruas de Lisboa conhecem...
Pois não, já não falando das informações erradas que dão, pois não têm formação.
- Qual formação, qual quê! Eu bem os vejo em Sintra. Vim de lá agora. Os táxis deixaram de ir ao Palácio, pois só ganham 5euros e eles vão lá cima por 5 euros por passageiro. Levam 6, são 30 euros. Trazem 6 para baixo, são mais 30 euros. Ao fim do dia, imagine quanto dinheiro é que ganham.
Imagino, imagino...
- É como lhe digo, não há lei nem roque nesta cidade...mas, isto não vai dar nada...
Bom, ficamos por aqui. Tenho de ir comprar bilhetes de comboio. E amanhã, já há táxis? Tenho de ir para o estrangeiro...
- Há, desde que não seja para o centro da cidade. Para o aeroporto já está tudo a funcionar.
Estou a ver. Continuação de boa luta!




2018/09/18

Sevilha: Bienal de Flamenco


Está de volta a Bienal de Flamenco, a mais importante celebração musical do género, com lugar marcado na cidade de Sevilha, em anos pares, desde 1980.
Na sua 20ª edição, a decorrer entre 6 e 30 deste mês, lugar para as diversas formas da "arte" (cante, toque e baile) que inclui o flamenco mais clássico (cante "jondo"), o flamenco menos tradicional (cante "chico") e o flamenco moderno, nas suas diversas formas de fusão.
Não fora a distância e o preço dos espectáculos pagos (pormenor não despiciente) e estaríamos lá todos os dias. Acresce que, para além do programa oficial, a autarquia oferece diariamente pequenas actuações de canto e dança, nos lugares menos previsíveis, como praças, jardins, pátios, clubes e peñas flamencas. Uma oportunidade para assistir à abertura, este ano junto à ponte de Triana, com um "flashmob" ensaiado por dezenas de aficionados, que dançaram ao som de uma "buleria" transmitida pela aparelhagem sonora do evento. Seguiu-se o "pregón" (pregão), um encadeado de pregões tradicionais, um "palo" em si mesmo nas palavras de Tomás de Perrate, cantados à capella por este histórico do "cante", que contribuiu para o primeiro momento de magia da noite. O ponto alto da abertura, viria a seguir, com o desfile "no sin mi bata", uma coreografia da "bailaora" La Choni, que, depois da atravessar a ponte de Triana, terminaria no bairro do mesmo nome, com uma "buleria" contagiante. Um fartote, que envolveu grande parte dos locais e de turistas, que se deslocam expressamente de outros pontos de Espanha e do estrangeiro, para assistirem a este momento único de celebração.

Com tanta coisa boa para ver, a escolha era difícil e nem sempre possível dado que alguns dos espectáculos esgotam com meses de antecedência. Foi o caso de Carmen Linares, a maior voz feminina do flamenco actual, que apresentava, em estreia, o concerto "Romances: entre Oriente y Occidente", um projecto em colaboração com Ghadis Benali Y Ensemble, onde se misturam influências musicais do Al Andalus.
Porque as alternativas eram muitas, o critério seguido foi o de ver nomes conhecidos, que nunca tivéssemos presenciado ao vivo. Neste lote, estava o bailarino e coreógrafo Israel Galván, hoje um dos nomes maiores da dança flamenca, presente na Bienal com dois espectáculos, dos quais o mais importante (Arena) teve lugar na histórica praça de touros "La Maestranza". Trata-se de uma adaptação do espectáculo com o mesmo nome, estreado em 2004, que contava com a participação de Enrique Morente. A nova versão, adaptada ao recinto e encomendada pela Bienal, segue o roteiro original (6 quadros, correspondentes a outras tantas "lides") em que Galván incarna o touro e o toureiro alternadamente, num espectáculo de rara beleza plástica, no qual, o dramatismo expresso na arena, é magnificamente sublinhado pelo canto de Kiki Morente (filho de Enrique) e pelos restantes intérpretes: desde logo, Galván, um génio, que não desdenha inovar  com a ousadia que só os criadores de excepção podem permitir-se, mas também os restantes "bailaores" e a "brassband", sempre presente na arena, para além de El Niño de Elche, um transgressor do flamenco que, para além de cantar, recita poemas clássicos espanhóis, adaptados aos dias de hoje. Brutal, El Niño! Uma última palavra, para o som e luz, de recorte magnífico, em condições verdadeiramente adversas (uma praça de touros descomunal) em que nunca nos sentimos deslocados, pese a nossa aversão a touradas.
O terceiro espectáculo, desta primeira série, teve lugar no Hotel Triana, um "corral de vecinos" em forma de "U", onde decorrem vários espectáculos da Bienal, que podem ser presenciados pelos moradores a partir das suas próprias casas. Ambiente efervescente e praticamente esgotado, com direito a serviço de bar, numa organização impecável. Pormenor curioso: a exemplo da sessão na "Maestranza", a sessão iniciou-se com as habituais recomendações sobre o uso e proibição de gravação e fotografias em espanhol, inglês e...japonês! A razão é simples: o Flamenco é uma "rage" no Japão e anualmente milhares de potenciais "bailaoras", passam meses em Sevilha, para aprenderem os segredos da dança. Lá estavam elas, todas vestidas a rigor, de trajes "lunares" e mantilhas locais.

O programa, intitulado "Lebrija, Luna Nueva", era promissor e não defraudou as expectativas: Inês Bacán (uma histórica do "cante") acompanhada do irmão Juan Bacán e respectivas famílias ciganas, na melhor tradição de Lebrija, lugar-cadinho do Flamenco, a meio caminho entre Utrera e Jerez. Onze pessoas em palco (três "tocadores", quatro "cantaores", dois "bailaores" e dois "palmeros") que incendiaram o recinto, na curta hora e meia que durou a actuação. Entre "soléas", "seguirias", "bulerias" e duetos, cantados por Miguel Hijo Fino (um timbre contagiante) e Javier Heredia (cantaor e bailaor de fino recorte) o concerto teve momentos mágicos, que repassaram para a assistência, em verdadeiro êxtase. O "duende" esteve, mais uma, vez presente em Triana, o bairro onde sempre voltamos com saudades de regressar.
Para a semana há mais. Seguem-se, Tomatito, com dois convidados de luxo (Duquende e Arcángel) e El Niño de Elche, com o concerto "Antología del cante heterodoxo", baseado no álbum com o mesmo nome. Se houver bilhetes, ainda haverá tempo para Rosalía, a nova sensação do cante feminino flamenco. Lá estaremos.     
    
    
      

2018/09/14

O eterno retorno do fascismo (3)



A última semana foi pródiga em acontecimentos relacionados com o aumento (e rejeição), de movimentos associados à extrema-direita (vulgo fascismo), a nível internacional.
Veja-se o Brasil, um país onde o futuro teima em não chegar, apesar dos desejos expressos por gerações de brasileiros, confiantes em que, desta vez, "vai dar certo". Não sabemos o que o futuro nos trará, mas as expectativas nunca foram tão baixas.
Começou com o atentado contra Jair Bolsonaro, o candidato da extrema-direita mais retrógada do planeta, que - pasme-se! - lidera as intenções de voto para a presidência daquele país (22%), ainda que, de todos os candidatos, seja também aquele com maior percentagem de rejeição entre os votantes (44%). Um fenómeno, aparentemente inexplicável, ainda que os recentes acontecimentos no Brasil - relacionados com os sucessivos escândalos de corrupção e acusações que atingiram toda a classe política sem excepção - ajudem a compreender a trajectória deste populista de direita que, ao longo dos últimos anos, vem apelando ao golpe militar e ao regresso da ditadura, num discurso onde o racismo, a homofobia e a misoginia, fazem parte do léxico habitual.
Foi este homem, sem escrúpulos e desprovido de qualquer ideologia identificável, à excepção do ódio propagado, que foi apunhalado num comício eleitoral e que - como era expectável - subiu na cotação das sondagens pré-eleitorais. Se era preciso um mártir, ele está criado.
Ainda que a maioria dos analistas não acredite que Bolsonaro tenha hipóteses numa segunda volta, onde poderá defrontar Ciro Gomes (candidato do PDT) e mesmo Fernando Haddad (candidato do PT) a verdade é que, a confirmarem-se as projecções, o ex-militar irá à segunda-volta e só a congregação de votos democratas, poderá evitar a sua eleição. Resta saber se a direita conservadora, que andou a bater panelas contra Dilma, prefere o tresloucado capitão, ou se, num rebate de consciência, optará por um candidato com maior experiência política (Gomes), ou por um académico com provas dadas (Haddad), o qual, após o afastamento compulsivo de Lula, poderá dar um novo fôlego a um PT demasiado marcado pelo escândalo "Lava Jato".
Já na Europa, o centro das atenções esteve na Suécia, onde decorreram as eleições legislativas e no Parlamento Europeu, em Estrasburgo, onde se votava a condenação da Hungria, por práticas anti-democráticas.
No primeiro caso, o resultado das eleições suecas (que resultou num empate técnico entre os principais facções no Parlamento, a de "esquerda" com 144 lugares e a de "direita", com 143 lugares), não permite uma solução maioritária (qualquer coligação necessita de, pelo menos, 175 lugares para governar) e não impediu o crescimento exponencial do partido de extrema-direita, racista e anti-imigração (KD) que tem agora 62 lugares, e que coloca os partidos de direita perante um dilema: ou apoiar o KD e deixar que os fascistas cheguem ao governo (como na Áustria); ou apoiar um governo democrático, criando um "cordão sanitário" (como na Holanda) para impedir que os fascistas governem. Na Suécia, o país com a maior percentagem de estrangeiros de toda a União Europeia, a questão da imigração tornou-se central em todos os debates, normalmente associada ao terrorismo, medos que a extrema-direita explora, a exemplo de movimentos nacionalistas congéneres.
Finalmente, a votação no Parlamento Europeu, pedida após um relatório da deputada holandesa Judith Sargentini (Verdes), exigindo a aplicação de sanções contra a Hungria, com base no Artigo 7º do Tratado de Lisboa e que se saldou por uma importante vitória das forças democráticas: com 448 votos a favor, 197 contra e 48 abstenções, o governo de Orbán, foi formalmente acusado de violação reiterada do estado de direito, o que de resto já tinha sido amplamente demonstrado por um relatório anterior, coordenado pelo (então) deputado português, Rui Tavares. Um "unicum" na história da UE. Segue-se um processo para aplicação das medidas penalizadoras, que terão de ser apoiadas por unanimidade, e que podem ir até ao impedimento da Hungria nas votações parlamentares e em "dossiers" tão importantes como o orçamento europeu, entre outras. Ainda que não seja de esperar uma condenação unânime por parte dos países membros (a Polónia, igualmente sujeita a uma penalização, deve votar contra), esta vitória, ainda para mais apoiada por parte da facção conservadora do Parlamento (PPE), da qual o partido de Orbán faz parte, é um passo importante na condenação de regimes autoritários dentro da UE. De registar ainda, pelo ridículo, o voto contra do Partido Comunista Português que, fiel aos seus princípios de "não-ingerência" na política interna dos países, criticou a União Europeia pela condenação da Hungria. Resta saber se, para os nostálgicos do PCP, a Hungria ainda fará parte do antigo bloco soviético. Há vícios que levam tempo a passar.
     
 

2018/08/30

O eterno retorno do fascismo (2)


Dois acontecimentos, sem ligação aparente, marcaram a agenda política europeia desta semana: as violentas manifestações de grupos neo-nazis na cidade alemã de Chemnitz e o encontro entre os líderes dos governos de Itália (Salvini) e da Hungria (Orbán), na cidade italiana de Milão.
O primeiro caso, seguiu-se a um incidente em que um alemão foi esfaqueado e morreu no hospital na sequência de ferimentos, num episódio que ainda está por esclarecer. A polícia prendeu dois suspeitos, um iraquiano de 21 anos e um sírio de 22 anos. À morte do cidadão, seguiu-se um "rastilho" de rumores nas redes sociais (de que a vítima teria tentado defender mulheres de assédio dos estrangeiros) e uma manifestação de nacionalistas, que acabou com perseguições a "pessoas que tivessem uma aparência não-alemã". As imagens desta acção persecutória foram registadas nas redes sociais e mobilizaram as forças de esquerda da cidade, que convocaram uma contra-manifestação "em defesa do bom nome e cosmopolitismo de Chemnitz, por oposição à xenofobia dos grupos nacionalistas". O que se seguiu, foi uma batalha campal, que se prolongou por dois dias, com um balanço final de 20 feridos, entre os quais dois polícias, e a prisão de 10 manifestantes acusados de fazerem a saudação nazi, ilegal na Alemanha. O caso, que continua a ser discutido nos media, veio alertar para o crescimento dos movimentos nacionalistas e xenófobos naquele país, que têm maior expressão nos territórios da antiga Alemanha de Leste. A polícia alemã também não escapou a críticas, por ter permitido a escalada de violência. Na opinião do jornalista Hans Pfeifer (Deutsche Welle) esta atitude "pode ser interpretada como falta de empatia pelas vítimas, uma vez que parte dos políticos e funcionários públicos não são o primeiro alvo da extrema-direita". Ainda de acordo com o citado jornalista, "o que aconteceu não é um atentado contra estrangeiros ou contra a extrema-esquerda, mas contra a própria democracia". O mesmo parece ter entendido o governo de Merkel, ao declarar que "não serão toleradas reuniões ilegais, nem perseguição de pessoas que pareçam diferentes, nem tentativas de espalhar o ódio pelas ruas".
O segundo caso, prende-se com uma cimeira entre dois políticos conhecidos pelas suas posições populistas e xenófobas, cujos governos têm vindo a endurecer posições relativamente a refugiados e imigrantes, que procuram entrar nos países europeus. No caso de Salvini, a recusa em salvar náufragos à deriva no Mediterrâneo, foi condenada nas mais diversas instâncias e atenta contra o direito internacional e o código marítimo, que obrigam ao salvamentos de náufragos em mar-alto. No caso de Orbán, os atropelos às leis europeias são já incontáveis, desde as sucessivas alterações à constituição, que lhe permitem controlar a justiça e a imprensa, às políticas de racismo interno (ciganos) e à imigração. Orbán declarou recentemente que "a Hungria não quer receber gente, porque não deseja que os povos se misturem". O mesmo governo que, ainda esta semana, foi acusado de ter recusado comida e abrigo a estrangeiros (considerados) ilegais, enquanto esperam passagem, dado não poderem permanecer na Hungria. Órban está, neste momento, a violar a Convenção de Genebra para Protecção dos Refugiados, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, a Carta dos Direitos Fundamentais da UE, e os próprios tratados da UE, após o Tratado de Lisboa.
Dois biltres, que apoiados pelos países da chamado "bloco soberanista" (checos, polacos, húngaros, eslovacos e italianos) desejam regressar ao passado nacionalista, que esteve na origem de guerras que devastaram o continente europeu.
É contra esta gente, que continua impunemente a passear-se pelos corredores de Bruxelas, enquanto desrespeita as regras mínimas da democracia e ameaça com boicotes ao orçamento da União, que os partidos democráticos do Parlamento Europeu devem unir-se, exigindo o cumprimento da lei em vigor na UE, condição primeira para serem membros de direito. Isto, ou a perda de apoios europeus, única linguagem que os ditadores percebem. Esta é a melhor forma de defendermos a democracia.
Como bem lembra Rui Tavares, num recente artigo de opinião ("Público" de 13.08.18): "Não é por acaso que a Constituição alemã proíbe a existência de partidos nazis ou que a Constituição da República Portuguesa contenha também uma proibição - ainda que pouco usada - contra a possibilidade de existência legal de organizações fascistas. É para não nos esquecermos de onde viemos. As nossas democracias nasceram contra o fascismo e essa história faz parte da sua razão de ser. Se nos esquecermos ou cansarmos desta história, estaremos já a caminho da regressão".    
Antes que seja tarde.
      

2018/08/28

Via Única

 foto Matt Dunham/AP
Sempre viajei e gostei de andar de comboio.
Porque é mais rápido, mais cómodo e menos poluente.
Nas viagens de médio-curso, porque compensa, em preço e tempo, o avião.
Nas viagens de longo-curso, porque é possível trabalhar, ir ao bar ou comer uma refeição.
Em muitos percursos, porque é ainda possível dormir num beliche-cama, com toda a comodidade.
Finalmente, foi nos comboios que estabeleci o maior número de contactos e amizades em viagens.
Ou seja, todas as vantagens e poucas desvantagens, em relação a outros meios de transporte.
De há uns anos a esta parte, graças à condição de aposentado, passei a usufruir de um desconto de 50% em todas as viagens internas e, caso possua um cartão nacional, de regalias similares noutros países europeus. É o caso da vizinha Espanha, mas há outros, com tarifas vantajosas.
Por razões que não vêm à colação, tenho viajado com relativa frequência na linha do Norte (Lisboa-Porto-Braga) e na linha do Sul (Lisboa-Faro). Mais regularmente no Intercidades e, com alguma frequência, no Alfa-Pendular.
E o que tenho observado, de há uns anos a esta parte, leva-me a concluir que as condições da ferrovia, desde o material circulante às estruturas, passando pelo pessoal disponível e atendimento, são hoje bastante piores do que há uma década atrás.
Agora, que toda a gente parece ter descoberto o estado calamitoso em que se encontra a maior parte das vias férreas (o jornal "Público" publicou, por estes dias, uma série dedicada ao caos existente nas linhas mais necessitadas de intervenção), sucedem-se as acusações ao governo actual (em função desde 2015) ou, da parte deste, ao governo anterior (2011-2015). No essencial, as críticas da oposição, atribuem a situação actual da ferroviária à política de "cativações" do Ministério das Finanças (que impedem o investimento do estado neste sector); enquanto o governo, justifica o mau estado da ferrovia, com a herança encontrada no sector, após os anos de austeridade a que o país esteve sujeito. Ou seja, por um lado o estado não investe, porque cativa o excedente-primário, para manter os compromissos com Bruxelas; por outro, sem investimento, a situação diária e os serviços vão continuar a degradar-se, pois deixaram de poder ser garantidos. 
Neste momento, parte das composições não são sequer utilizadas por falta de manutenção. Não existe manutenção suficiente, por falta de pessoal qualificado que, entretanto, foi passando à reforma e que não pode ser substituído sem haver concursos públicos e a necessária formação. Tudo isto leva tempo (anos) e, sem composições operacionais, a única forma de assegurar os serviços é reduzir a oferta, por uma questão de segurança. Entretanto, o governo anunciou a compra de novos comboios (para substituir composições com 50 e mais anos), o que obriga a concursos públicos internacionais, dado que Portugal, após o encerramento da Sorefame, deixou de construir material ferroviário. Por enquanto, a solução parece ser o aluguer de comboios a Espanha (Renfe), como aconteceu no passado. Acontece, que a Renfe já veio declarar que não dispõe de comboios suficientes para o próprio mercado, pelo que não se vislumbram soluções a curto prazo. Um ciclo vicioso.
Tudo isto podia ter sido previsto e evitado, caso Portugal tivesse optado - a exemplo da maior parte dos países europeus desenvolvidos - pela ferrovia em vez da rodovia, onde foram feitos os maiores investimentos, desde a adesão do país, à então CEE. Só no consulado de Cavaco (1985-1995), foram encerrados 1000km de ferrovia, tendência que continuou nos governos de Guterres (1995-2001) e Sócrates (2005-2011). Ao mesmo tempo foram construídos mais de 2000km de auto-estradas! Todos estes governos, sem excepção, encheram o país de auto-estradas (muitas delas, hoje, sub-aproveitadas) onde se transita pagando taxas obscenas, enquanto deixaram de investir na ferrovia, um transporte com futuro. Obviamente, estamos aqui em presença de um modelo de desenvolvimento errado, iniciado nos idos anos oitenta e cuja herança continuamos, hoje, a pagar. Resta saber se por incompetência, se por dolo. Provavelmente, por ambas as coisas.  

2018/08/23

"Silly Season" na SPA


Com o calor a apertar e o território nacional em "alerta vermelho", todos os cuidados são poucos. Os corpos ressentem-se e os neurónios não são excepção. Quando, ao calor, se juntam fenómenos paranormais, a coisa pode tornar-se perigosa. Sabemos que a "silly season" é, por definição, a época do ano mais propícia ao disparate e às notícias absurdas, mas esta é verídica e foi avançada por pessoas respeitáveis. A Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) propôs, esta semana, a transladação do corpo de José Afonso para o Panteão Nacional. A razão, invocam, é o contributo desta figura maior da cultura portuguesa na história recente de Portugal e a homenagem que o país lhe deve prestar, colocando-o ao lado das "figuras prestigiadas" da nação, naquele que é o "sarcófago institucional" por definição.  Independentemente do que pode (ou não) significar o Panteão Nacional nos dias que correm, só a ideia faria o Zeca sorrir...
De facto, só quem não o conheceu poderia fazer tal proposta, mas — e isso é o mais estranho — o presidente actual da SPA (José Jorge Letria) conviveu com o cantor e conheceu-o bem melhor do que a maior parte dos seus contemporâneos. Certamente, animado pelas "melhores intenções" (agora que se fala em transladar Mário Soares e Sá Carneiro para o Panteão), o comunicado da SPA adiantava que caberia à família de José Afonso a última palavra e assim foi. Entrevistada pela TSF, Zélia Afonso (viúva do Zeca), limitou-se a declarar o óbvio: que seria a família a decidir em conformidade. Como era expectável, a família emitiu um comunicado onde rejeitava a proposta, "dado que José Afonso nunca quis receber qualquer homenagem em vida e tinha deixado bem expresso onde queria ser sepultado (campa rasa no cemitério de Setúbal), pelo que seria cumprida a sua vontade."
Assunto encerrado?
Aparentemente, não.
Instado a comentar, José Jorge Letria, declarou que a opinião da família de José Afonso não era determinante para a proposta da SPA. Como?
Mas, esta história bizarra parece não ter terminado aqui. Hoje mesmo, algumas das reacções críticas à proposta da SPA, foram simplesmente "apagadas" das páginas do FB, com a alegação que os "posts" publicados não se enquadravam na política da textos seguida pela rede "online" (!?).
Ora, como não acreditamos em bruxas, mas continuamos a pensar que elas existem, só há uma explicação "lógica" para este desatino: alguém (quem?) denunciou os autores das publicações e o "algoritmo" censurou os textos. Outra hipótese, que não deve ser descartada, é a própria SPA ter sido a instigadora da censura. Não queremos acreditar, mas que é estranho, é.
Pelos vistos, José Afonso, apesar de morto, ainda incomoda muita gente. E isso é bom.

2018/08/15

Le Pen, some-te!


A história, conta-se em poucas palavras.
Na última sexta-feira, começou a circular nas redes sociais, uma notícia sobre a eventual presença de Marine Le Pen (dirigente da extrema-direita francesa) na WebSummit, a maior feira mundial de empreendedores de plataformas tecnológicas que, pelo terceiro ano consecutivo, se realiza em Lisboa. O convite, teria sido feito pela organização irlandesa (sediada em Dublin), ao arrepio dos patrocinadores, a CML, o Turismo de Portugal e o ICEP, que acolhem e apoiam o evento com uma quantia estimada em mais de 3 milhões de euros.
Perante tal notícia, seguiu-se a natural estupefacção e reacções de repúdio, para além do silêncio dos organizadores e das instituições em questão.
No fim-de-semana, sem qualquer explicação, o nome de Le Pen, desapareceu da programação e, quando pensávamos tratar-se de mais uma "fake news" (destinada a dar publicidade ao evento), eis que surge o nome da francesa de novo, agora anunciada como oradora no painel principal de convidados.
Novos protestos, agora noticiados pela Comunicação Social. Da parte do governo e da autarquia, seguiu-se o silêncio total.
Perante o avolumar da indignação (como assim, convidar uma fascista para discursar num evento pago pelos portugueses?), o director da WebSummit, o irlandês Paddy Cosgrave, emitiu ontem um comunicado onde, de forma sonsa e chantagista, dizia que "caso o governo português se opusesse à presença de Le Pen, ele estaria disposto a aceitar a decisão, em respeito à vontade do povo português" (!?). Ou seja, remetia a responsabilidade para o governo do país que o convidou e pagou para ele organizar o evento em Lisboa!
Obviamente, que o PM português não pode exprimir-se explicitamente sobre um evento privado, ainda que a CML, o Turismo de Portugal e o ICEP - em tanto que patrocinadores do evento - possam e devam, ter uma opinião sobre este convite.
De novo, nada se ouviu.
Ontem, os baixo-assinados contra a presença de Le Pen, começaram a circular e um partido político (BE) chegou mesmo a pronunciar-se sobre o caso, denunciando o carácter fascista e racista da oradora, cujas mensagens de ódio são inclusive proibidas pela Constituição portuguesa.
Hoje, finalmente, o Paddy lá reconsiderou e anunciou o cancelamento do convite, dada a comoção gerada na sociedade portuguesa, que ele não deseja alimentar...É sempre comovedor ver empreendedores, que defendem a livre iniciativa e são contra a intromissão do estado, servirem-se do estado quando não querem assumir a responsabilidade dos seus actos.
De facto, para além da presença indesejável da criatura, não se percebe muito bem o que viria ela cá fazer, pois não consta do seu currículo ser uma "expert" em Web ou quaisquer outras plataformas tecnológicas. Já a sua ligação a redes neo-fascistas internacionais é por demasiado conhecida, pelo que dispensa apresentações. Fez bem o Paddy, pois ainda há quem tenha memória do Fascismo por estes lados...
Em conclusão: Le Pen, some-te!     

2018/08/12

Prova de Fogo


2 de Agosto de 2018. São duas da tarde, na estação de serviço de Loulé, a primeira para quem vem de Lisboa e segue, via A22, em direcção a Vila Real de St. António. Enquanto espero pela refeição, olho o televisor que transmite as notícias do dia. O meteorologista de serviço alerta para as temperaturas esperadas no fim-de-semana, que podem atingir mais de 40º na maior parte do território (alerta vermelho). O mapa indica as regiões mais afectadas pelo calor. A zona de Monchique está a roxo. São feitas as habituais recomendações: fazer poucos esforços, procurar a sombra e beber muita água. Tento cumprir os mínimos: já estou sentado, à sombra e peço uma limonada. Lá fora, a caminho do carro, levanta-se um vento estranho e quente, a lembrar o Magreb. Os antigos chamavam-lhe "vento Soão". Por alguma razão devia ser...
Três horas mais tarde, chego a Sevilha. São 18h e os termómetros, no bairro da Macarena, marcam 42º. Relembro a primeira passagem pela cidade, corria o Verão de 1977 e a jura que fiz nesse mesmo dia: nunca mais voltar no mês Agosto. Preparo-me para o pior...
O dia seguinte, não dá sinais de abrandamento. Surgem as primeiras notícias de fogos: desde logo na serra de Aracena (perto de Huelva) e no Algarve (serra de Monchique). Um pouco por toda a Europa, da Suécia à Alemanha, as temperaturas atingem valores impensáveis. Porque Deus é magnânimo, a Califórnia também teve direito ao seu incêndio anual. Lá é sempre tudo maior (America, great again). Só o imbecil do Trump não percebe.
Refugio-me em casa, onde há ar condicionado e bebo sumo de limão. Para distrair, leio os jornais trazidos de Lisboa, que já previam o aumento de temperatura excepcional para aquele fim-de-semana. Sábado, seria o pior dia, afirmavam os jornais de referência.
Tento sair à noite e o mais longe que consigo ir é Salteras, uma vila-dormitório de Sevilha, onde supostamente a temperatura estaria mais baixa, dada a altitude do local. São 23h e estão 34 graus, menos 2º, do que na capital andaluza. É fim-de-semana e não se vê vivalma na rua. Os habitantes da cidade, ou saíram para o litoral, ou estão em casa, com o ar condicionado ligado.  Sevilha é, agora, uma cidade fantasma. O relógio em La Macarena, marca 46º.
Sábado à noite, amigos espanhóis, perguntam-me pelo fogo em Monchique. Que sei eu? Falam-me em feridos e milhares de hectares ardidos (!?). Temo o pior: será castigo de Deus, ou somos mesmo incompetentes? Entre o apreensivo e o envergonhado, pelo meu país ser falado pelas piores razões, tento uma explicação lógica para esta calamidade. Procuro, nas notícias televisivas e nos jornais "online", outras explicações para o fenómeno. O aquecimento global e a sua influência na região mediterrânica, desertificada e sujeita aos ventos quentes de África são, com certeza, uma causa que não deve ser menosprezada. A combinação de altas temperaturas, humidade relativa e ventos ciclónicos, parecem-me uma explicação razoável para a propagação e violência das chamas. Esta é a parte que não podemos controlar (quanto muito, ajudando em tanto que país, na aplicação dos Acordos de Paris). Só Trump, o imbecil, se recusa a assinar, interessado em voltar às energias fósseis, como se o Mundo pudesse andar para trás...
Quando regressei a Portugal, no dia 9 de Agosto, o fogo de Monchique ainda lavrava. Sete dias, sem parar. Nas televisões e jornais, debatem-se acaloradamente as causas e meios usados para combater o flagelo. Os "experts" são mais que muitos e parte da comunicação social não esconde um certo desalento, por não ter havido vítimas. Sim, uns mortos, vinham mesmo a calhar, pois podia ser que um ministro caísse e lá ia o governo atrás. O Marcelo já avisou: se houvesse outra catástrofe, como a do ano passado, ele seria o primeiro a demitir-se...
Estamos a 12 de Agosto e o fogo de Monchique está debelado. Balanço final: 7 dias de incêndio, 27.000 hectares ardidos (o maior fogo europeu), 41 feridos (um deles, grave), 50 casas destruídas (total ou parcialmente), 509 pessoas retiradas das suas casa, 700 pessoas afectadas que receberam apoio das equipas de segurança social. Na operação, foram utilizados 1137 operacionais, 13 aeronaves, 396 viaturas de combate, tendo ainda sido criadas 9 zonas de concentração e apoio às populações. É obra.
Este fim-de-semana, foi um rodopio. Do presidente da república, ao primeiro-ministro, do ministro da administração interna ao ministro do ambiente, do ministro da agricultura aos partidos de oposição, estiveram lá todos. Enquanto os representantes do governo exultavam, por não ter havido vítimas (não é essa a principal missão da protecção civil?), alguns populares, obrigados a sair de casa pela GNR, protestavam por terem perdido as suas casas e haveres (!?). Marcelo, o presidente dos afectos, beijava-os a todos e ouvia com atenção, prometendo uma avaliação de toda a operação, para quando terminasse o Verão. Afinal, ainda falta um mês e meio para terminar a "época dos fogos" e nunca se sabe...
Estou contente por não ter havido vítimas. A protecção civil aprendeu a lição do ano passado e esteve bem desta vez. Não se compreende as críticas daqueles que recusavam sair das casas, pondo as suas vidas em perigo. Entre salvar bens materiais e vidas humanas, não pode haver hesitação.
Obviamente, que perder casas, animais e plantações agrícolas, é sempre doloroso. Muitas daquelas pessoas já não voltarão à agricultura. Mas, uma casa pode reconstruir-se sempre e haverá apoios para recomeçar uma nova vida. Não perceber isto e criticar esta intervenção do governo, é ajudar à onda de populismo que a oposição, à falta de alternativas, tenta cavalgar a todo o custo.
Outra coisa, não menos importante, é a prevenção que continua a falhar, pese embora os esforços feitos no último ano. Coisas básicas como o cadastro do território, o ordenamento da floresta, o combate à desertificação e os incentivos económicos, de que toda a gente fala (mas que só uns poucos usufruem), devem estar no topo da agenda política de qualquer governo. A floresta portuguesa (que já foi a maior a nível europeu, em termos proporcionais de território), é ainda a nossa segunda maior riqueza natural (a primeira é o mar). As causas dos fogos estão estudadas e os diagnósticos apontam todos no mesmo sentido: desertificação do interior (75% da população vive no litoral); ordenamento do território (não existe um cadastro de terras a Norte do Tejo, o que dificulta a identificação e emparcelamento das propriedades); monocultura de determinadas espécies, como o eucalipto e o pinheiro bravo (o que aumenta a combustão e alimenta o fogo) e, finalmente, o aquecimento global que existe e vai aumentar. À excepção da última variável, que não podemos controlar, o governo pode tentar inverter e melhorar a situação. Fogos, existirão sempre. Trata-se de minimizá-los e para isso é preciso investir na prevenção, que é como quem diz, no futuro. Deixar o país melhor, deve ser o desígnio de qualquer político. A verdadeira "prova de fogo".