2006/09/02

Impressões de viagem 2

A Holanda é um país onde o velho e o novo, a tradição e a vanguarda, o vestígio mais vetusto e o objecto mais futurista, convivem lado a lado, sem complexos.
Reflexo desta convivência é o modo como o território está ordenado. Há um contínuo paisagístico, do qual dificilmente se consegue extrair os elementos tradicionais que constituem os assentamentos humanos. Campo, cidades, infraestruturas de transporte, áreas de lazer, etc, desfilam de forma suave e constante perante os nossos olhos. De tal forma que, dificilmente, nos apercebemos onde começa uma unidade de território e termina a outra. A quinta que produz os lacticínios do dia, pega com o bairro onde mora o funcionário do ABN-AMRO, à beira de um canal, bordejado por um passeio para jogging, de onde se avista a auto-estrada que se cruza com a estação de caminho de ferro, que passa pela estufa que produz as flores para o mercado de Aalsmeer, que amanhã vão ser transportadas do aeroporto de Schipol --que fica mesmo ali!-- para todo o mundo!
Os contrastes, nesta paisagem só podem ser encontrados a um nível mais subtil. Estão na paisagem humana e, sobretudo, no âmago de cada indivíduo. O território holandês é como que uma grande sala de estar onde cada canto é desfrutado pelos seus habitantes, de forma íntima e intensa.
Uma lição, neste aspecto, para um mundo cada vez mais compartimentado e emparedado por obstáculos de toda a classe.
Portugal teria muito a aprender, se quisesse, com a Holanda (o inverso também é verdadeiro, mas esse comentário fica para depois...).
Ainda hoje, numa reportagem a propósito do encerramento da maternidade de Mirandela, todas as jovens entrevistadas afirmaram que não querem permanecer naquela sede de Concelho Rural de 1ª Classe. Virão para a cidade cheias de esperança de uma vida melhor. Mas, que esperança de uma vida melhor terá Lisboa, ou o Porto se Mirandela desaparecer do mapa?

2006/08/31

Eu roubo, mas eu faço!

A notícia já tem alguns dias, mas a reflexão sobre ela permanece actual.
Os juízes desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa, que obrigaram Isaltino Morais a prestar uma caução de 100 mil euros, estranham, porque as razões do facto «ultrapassam, seguramente, a capacidade de compreensão do normal mas honrado cidadão».
O que estranham eles? O facto, que consideram «inédito» e que acontece, como dizem, «por razões que nos dispensamos de comentar», de se permitir «ao arguido Isaltino, a quem são imputados vários crimes no exercício da gestão autárquica», «que continue no normal desempenho das suas funções de presidente da Câmara».
Em relação a este caso nem sequer há a possibilidade de, como é costume, atribuir as culpas aos políticos. Estes, como é sabido, têm sido os piores propagandistas da espécie, no geral mais preocupados com os seus próprios interesses, do que com a comunidade dos cidadãos que deveriam servir. Mas neste caso não foram os políticos, na pessoa do presidente do PSD, quem deu aval à candidatura de Isaltino a presidente da Câmara. Foi como independente que ele se apresentou ao eleitorado e enfrentou os outros candidatos, esses sim apoiados pelos diversos partidos.
Foram, pois, os próprios cidadãos quem caucionou esta realidade escandalosa de colocar um presumível criminoso (é assim que lhe chamam os juízes) à frente da Câmara de Oeiras, a lidar com muitos milhões de euros provindos dos bolsos dos contribuintes; os mesmos cuja maioria lhe garantiram a eleição.
Instalou-se entre os portugueses o tipo de moral que é bem traduzida pela célebre máxima de um político brasileiro: «eu roubo mas eu faço!». Tudo parece normal ao comum das pessoas.
Passou recentemente na rádio a propaganda de um telemóvel que rezava mais ou menos assim: «António; sou eu, o Carlos, o teu melhor amigo. Eh, pá, estou a deixar-te esta mensagem para te dizer que o telemóvel XPTO que te desapareceu, não o perdeste. Fui eu que fiquei com ele! Vi-o ali como quem olha para mim... (segue-se uma litania de características apetecíveis do objecto)... e, sabes como é: tentei-me e fiquei com ele. Falo-te agora para te dizer isto e para te perguntar: tens o carregador?».
Quer dizer, um roubo, uma traição entre amigos é encarada de uma forma leviana, como se fosse normal. E se isto passa como anúncio, não é só porque os publicitários não têm já nada que possam apresentar como diferente e procuram coisas arrojadas e fora do comum. Porque serão fora do comum, mas têm de cair em terreno fértil, para que o produto publicitado venda. Esse terreno fértil («público-alvo») é o das camadas jovens que, com o seu dinheiro ou com os dos pais, são quem compra.
Isto diz bem dos valores em que assentam muitas das relações que se estabelecem e da matéria pulverulenta que lhes dá (?) substância.
Que bem fazia ao «António» e ao «Carlos» do anúncio lerem «O sonho dos heróis» de Adolfo Bioy Casares.
I’ll be back; ou, em português, voltarei a este tema.

2006/08/28

O clima é do povo?


Li no Público aqui há tempos que a missão ACEX recuperou amostras de sedimentos do Ártico, cerca de 400 m abaixo do leito oceânico. A análise destes sedimentos revelou que há 55 milhões de anos o clima naquela zona era sub-tropical. Nesta altura o efeito de estufa (originado pelo dióxido de carbono e pelo metano) causou um aquecimento global da água do mar que chegou a atingir em certos pontos os dez graus!
O tráfego rodoviário era, como se sabe, intenso há 55 milhões de anos... E os aerossóis, então, eram uma praga!

Todos os dias ouvimos informações sobre o aquecimento que se estará a verificar, como se de um fenómeno moderno se tratasse. Sem outro responsável para além do Homem.

A informação agora divulgada prova que estes complexos de culpa são ridículos, despropositados e dificultam, naturalmente, na minha opinião, as estratégias possíveis que podem conduzir a uma análise correcta deste fenómeno. Quantas vezes ouvimos ou lemos nós os escritos inchados de jornalistas, ambientalistas, políticos e outras criaturas a anunciar a catástrofe iminente e a lançar as culpas sobre o pacato cidadão que desconhecia até essa altura o tremendo "poder" que afinal tem para "alterar" tão profundamente a Natureza...?

PS- decidi juntar aqui este link a propósito deste tema que creio que vem a propósito... Hoje (06-09-14), a reboque da estreia do filme do Gore, lá veio nos jornais mais um montão de asneiras e lugares comuns a propósito de tudo isto. Espera-se uma série de suicídios em massa...

2006/08/27

Impressões de viagem 1


Sentado numa esplanada em Delft, mesmo à beira da torre da Nieuwe Kerk (Nova Igreja), olho lá para cima (a torre tem mais de 100 m de altura) e penso na possibilidade real daquele monte de tijolos desabar por cima de mim. Sinto-me vulnerável. Rezam as crónicas que cada um desses tijolos que compõem a Nieuwe Kerk foi colocado à mão. Os tijolos foram, precariamente, unidos com um cimento entretanto temperado, seguramente, por muitas chuvas e humidades variadas que lhe retirarão quiçá alguma consistência. Só em 1933 aquela estrutura foi aparentemente reforçada com pilares de betão.
Nesta igreja, terminada em 1496, que convive hoje com as esplanadas e as lojas que vendem a famosa porcelana de Delft a preços de Cartier, jazem os corpos das sucessivas gerações da Casa Real da Holanda desde Guilherme de Orange.
A Nieuwe Kerk está situada no Grote Markt (a Grande Praça do Mercado). Não sei se por estas bandas foi a igreja que se aproximou do "mercado", ou se foi o mercado que se aproximou da "igreja". Mas, de uma forma ou de outra, o mercado, por estas paragens, domina tudo e todos. Não parece haver margem para quaisquer valores, acções ou sentimentos ao lado, ou fora do mercado.
Nada disto constitui, à partida e necessariamente, um defeito. Mas, percebe-se pela observação dos sinais que, por causa disto, a sociedade holandesa se sente mais vulnerável do que eu me senti à beira da Nieuwe Kerk.

JOÃO GALAMBA DE OLIVEIRA

Quando se vai um amigo ficamos mais pobres.
Neste caso é capaz de não ser bem verdade, tal o enriquecimento que constituiu a lição de coragem do João na morte -- consentânea, aliás, com a que sempre demonstrou em vida. E de grandeza -- duma espécie que se afasta da pequenez em que o comum de nós mergulha no quotidiano.
Eu não conseguiria escrever nada que melhor o caracterizasse do que o que Fernando Madrinha sobre o João escreveu no «Expresso» de ontem.
Aqui o reproduzo, com a devida vénia: