2012/12/07

NOTAS DE VIAGEM: no meio da “crise” holandesa (2)

Ons aller ziel
PS Theater
Pesem as restrições económicas, anunciadas na passada semana pelo governo holandês, é difícil descortinar sinais visíveis de austeridade, neste país que passa por ser um dos mais ricos da Europa.
Os cafés e restaurantes continuam cheios, assim como as esplanadas, aquecidas nesta época do ano, enquanto as lojas fervilham de consumidores nacionais e estrangeiros, carregados de sacos das mais famosas marcas. O mesmo podemos dizer dos eventos (exposições e museus) que pudemos visitar. Nem mesmo os preços médios praticados (muito acima do que estamos habituados) parecem assustar os frequentadores da cultura citadina. Um pequeno resumo do que conseguimos ver:
Na galeria FOAM,  especializada em fotografia contemporânea, uma excelente retrospectiva de norte-americana Diane Arbus (1923-1971), constituída por  200 fotos, a preto e branco, dos temas que marcaram a sua obra: pares de namorados de todas as idades, gémeos, idosos em lares de acolhimento, jovens com o síndrome de Down, ruas e parques de Nova-Iorque. A solidão, a tristeza e a alegria, numa fotografia antropológica com a “patine” das décadas de cinquenta e sessenta. Entrada: €10.
No Museu Histórico Judeu, renovado em 2005,  para além da colecção permanente que relata a diáspora, as zonas habitacionais, a ocupação alemã e o holocausto, uma excelente exposição do artista plástico William Kentridge e as pinturas naíves de Sal Meijer, um cidadão que amava a sua cidade. Tempo ainda para ver um excelente documentário holandês, sobre as origens da música Klezmer (da Roménia ao Canadá). Porque o bilhete incluía a Sinagoga Portuguesa, vizinha ao Museu, lá voltámos, agora com a curiosidade de visitar a cave, recentemente aberta, onde podem ser admirados os tesouros deste templo sefardita, construído em 1675 e que alberga a mais antiga biblioteca judaica do Mundo. Entrada: €12.
Igualmente renovado, após um polémico concurso ao qual concorreu Siza Vieira, está o Stedelijk Museum, um dos mais populares da cidade, famoso pela sua colecção de arte moderna e contemporânea dos séculos XIX e XX.  O “Stedelijk”  modernizado, alargado e desfigurado, numa intervenção a todos os títulos criticável pelo mau gosto e desproporção de formas, estava apinhado no dia em que o visitámos. Se já era popular, agora toda a gente quer ver o novo anexo (conhecida pela “banheira”) que alberga uma colecção de “design”, a todos os títulos notável. Entrada: €15.
Já desesperávamos de  ver algo gratuito, quando fomos alertados para a nova “coqueluche” da cidade, o edifício futurista  (a lembrar o avião “Concorde”), que alberga a nova  cinemateca da cidade. Verdadeiramente espantoso, como espantosa é a sua localização, na margem norte do IJ, atrás da estação principal de comboios. 
Chama-se “Eye” (um trocadilho entre o nome do  canal que liga a cidade ao mar do Norte e o “olho” cinematográfico) e reconciliou-nos com a arquitectura. Com uma colecção com mais de 40.000 títulos,  a cinemateca tem 4 salas de projecção, 1 sala de exposições temporárias,  uma sala infantil (onde se podem aprender todos os passos necessários para fazer um filme), uma sala escura, onde é possível visionar excertos de filmes clássicos, bastando, para isso, premir uma das quatro “slot-machines” existentes, para além de uma loja e 2 cafés e restaurantes, com vista para a cidade. Um espanto. À excepção das exposições e dos filmes, tudo o mais é gratuito. Os “amigos da cinemateca” pagam 30 euros por ano e têm redução nos bilhetes que custam entre 8 e 10 euros. Por comparação, na Cinemateca de Lisboa, os “amigos” pagam os mesmos 30 euros anuais, mas apenas €1,35 por sessão...
Num pais onde a Cultura vai sofrer um corte de 50% no próximo orçamento, o teatro não é excepção. O grupo PS-Theater, de Leiden, encenou a peça “Ons aller Ziel” (A Alma de todos nós), uma metáfora sobre a miséria, onde a personagem principal (uma jovem rica e fútil da alta sociedade) convida os amigos para uma festa de caridade, onde estes devem apresentar-se vestidos de mendigos, sem-abrigo e vestimentas árabes. Durante a festa, a bebida servida é o “champagne”. Durante a peça, é confeccionada uma sopa de beterraba e lentilhas, que no fim é oferecida aos espectadores. No átrio de entrada do teatro, estava colocado um carro, onde também podiam ser depositados contributos para o Banco Alimentar. Sim, na Holanda,  um dos países mais ricos da Europa, o Banco Alimentar é cada vez mais popular...
Uma última nota para a digressão “Daisy Correia canta José Afonso”, a decorrer até Maio do próximo ano, com mais de 20 concertos agendados para toda a Holanda. Criado e interpretado por uma jovem cantora holandesa de ascendência portuguesa (Daisy Correia), este é o tributo ao Zeca que faltava. O ciclo está encerrado.

2012/12/04

NOTAS DE VIAGEM: no meio da “crise” holandesa

Nada como sairmos da pátria para ver as coisas em perspectiva. Os dias passados entre Paris e Amsterdão, deram-nos uma imagem, necessariamente impressionista, que ajuda a relativizar lugares-comuns. Parece ser oficial: a crise chegou aos Países-Baixos, bastião de austeridade e rigor orçamental, onde a frugalidade e a poupança, mais do que conceitos, são um “modo de vida”. O que, até há pouco era um problema exclusivo de países periféricos, como Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha (vulgo PIIGS), parece ter-se alastrado ao núcleo duro do “marco” de que fazem parte a Alemanha, a Holanda, a Áustria ou a Finlândia.
Depois de longos meses de formação, o novo governo holandês – uma coligação de liberais de direita e sociais-democratas – tomou posse no passado mês de Outubro. Confrontada com a crise da “zona euro” e a relativa estagnação do crescimento económico (causa do aumento do desemprego e dos subsídios sociais daí inerentes), a coligação governamental anunciou na passada semana um novo pacote de medidas de austeridade: corte de 16 mil milhões de euros no orçamento para 2013, com especial incidência nos rendimentos mais baixos, nas prestações sociais (com excepção das reformas), na educação, na saúde e na cultura. Simultaneamente, foi anunciada uma nova grelha fiscal (5 escalões) e aumentada a percentagem do IRS e do seguro de saúde obrigatório.  Onde é que já vimos este filme?
De acordo com  o “De Volkskrant” do passado dia 29,  a desigualdade de rendimentos será maior em 2013. Os grupos de rendimentos mais baixos (entre €500 e €1200 brutos) verão os seus rendimentos descer cerca de 2%, enquanto um trabalhador que ganhe uma vez e meia o ordenado médio nacional (€3.819,45 brutos) verá o seu vencimento aumentar em 2%.  Simultaneamente, o ordenado mínimo nacional (€1.456,20 brutos) será aumentado em 0,13% (€1,62 mensais em termos líquidos).
Ao contrário da classe média portuguesa, a classe média holandesa é a mais beneficiada deste novo escalonamento fiscal, o que não deixa de ser surpreendente. A razão desta medida, é explicada pela violenta reacção deste grupo, após o anúncio do acordo governamental de Outubro, que previa um aumento substancial do imposto do seguro de saúde (obrigatório na Holanda) para os maiores rendimentos. Essa receita extra reverteria para os mais desfavorecidos que, dessa forma, não veriam os seus seguros de saúde aumentados. Com a nova grelha fiscal, os mais desfavorecidos, não só verão o seu seguro de saúde (€150 mensais em média) aumentado, como verão os seus vencimentos diminuídos.
Outro dos ministérios mais afectados será o da Ajuda ao Desenvolvimento, onde estão previstos cortes no valor de mil milhões de euros até 2017. Será uma diminuição progressiva (cerca de 200 milhões anuais), mas representativa da tendência actual na sociedade holandesa, agora mais sensível aos discursos da direita que defende cortes nos apoios a estrangeiros dentro e fora do pais.
Aparentemente isentos neste pacote de austeridade, parecem estar os reformados mais pobres que, até ver, mantêm as suas pensões congeladas. Isto, até ao dia 1 de Março. Nessa data, será feita uma avaliação das provisões do Fundo Nacional de Pensões e, caso estas estejam abaixo do previsto, poderão haver cortes até 3% do rendimento.