2021/02/23

Eram sete da manhã...

...Quando o telefone tocou, em minha casa, naquela segunda-feira, dia 23 de Fevereiro de 1987. 

Na véspera, o Círculo de Cultura Portuguesa na Holanda, em colaboração com a Cooperativa Cultural Etnia, tinha organizado o último de 3 concertos integrados no projecto "Roots & Time" (música de raiz rural e urbana), na mítica sala do "Paradiso" em Amsterdão, perante uma assistência entusiasta, maioritariamente composta por holandeses.

Do programa, faziam parte a "Rusga da Serra D'Arga" (música do Alto-Minho), a "Brigada Victor Jara" (nova música tradicional portuguesa) e Pedro Caldeira Cabral (guitarra portuguesa), para além de uma palestra, a cargo do etnomusicólogo Domingos Morais e uma exposição itinerante sobre música tradicional portuguesa.     

Após o concerto, ainda houve tempo para uma demorada confraternização e as despedidas da última hora, já que a caravana regressava a Portugal no dia seguinte. Porque nem todos os convidados pernoitavam no hotel, alguns tiveram de ficar em casas particulares. Foi o caso de dois membros da Rusga da Serra D'Arga e dos responsáveis da cooperativa Etnia (Mário Alves e Antonieta Brandão), que pernoitariam em minha casa. À última hora, surgiria ainda o João Nabais, vindo de Bruxelas, que não quis perder a oportunidade de presenciar o espectáculo. Também ele, dormiria no sofá. 

Penso que ninguém ouviu o telefone tocar, naquela madrugada. Perante a insistência da chamada, lembro-me de ter despertado e, meio a a dormir, ter passado por cima dos vários hóspedes distribuídos pela casa. Provavelmente, alguém do hotel a confirmar a hora da partida do avião, pensei...

Afinal, era o Carlos Neves, ex-exilado e companheiro de aventuras na Holanda, entretanto regressado a Portugal. Ainda imaginei que ele queria saber como tinha corrido o concerto na véspera e perguntei "isto são horas de acordar as pessoas?"... 

"Morreu o Zeca" foram as suas primeiras palavras. 

Seguiram-se os pormenores e as perguntas habituais de ocasião. Sabíamos que o Zeca se encontrava gravemente doente e esperava-se o pior desfecho a qualquer momento. A última vez que actuara na Holanda (1981) já eram visíveis as dificuldades em palco e, dois anos mais tarde, actuaria pela última vez em Portugal.  A conversa estendeu-se aos restantes hóspedes, entretanto acordados. 

Nessa manhã, o tema da conversa seria apenas um: José Afonso e o seu legado. Sobre o cantor, com quem a maioria dos presentes tinha convivido, ouvimos as inúmeras estórias, agora renovadas. As estórias e a história da canção popular, que nunca mais seria a mesma depois do Zeca, o mais importante e simbólico renovador da música portuguesa do último século. 

Passaram, entretanto, 34 anos. Agora que o estado português se prepara para classificar a obra de José Afonso, como Património Cultural de Portugal, resta-nos registar a efeméride e lembrar o cantor, o músico, o poeta, o andarilho e o cidadão, nome maior da Liberdade que comemoramos há 46 anos.

Obrigado, Zeca.