2020/06/23

Catorze semanas noutra cidade: Pandemia, Balanço e Revelações


Três meses decorridos sobre as primeiras medidas do governo espanhol, para combater o vírus que assola o Mundo, a Espanha começa a abrir as portas - internas e externas - e a fazer o balanço desta crise sanitária, a maior desde a famosa "gripe espanhola", já lá vai mais de um século.
Depois de semanas em que o país ocupou os primeiros lugares do "ranking" europeu, de casos de infecção e mortes por Coronavírus, os números estabilizaram e começam a decrescer, como era expectável. De acordo com o Worldometer (OMS), a Espanha registou, até ao momento, um total de 293.840 infectados, dos quais teriam falecido 28.324, o equivalente a 606 mortes por milhão de habitantes. Mesmo assim, o país ocupa o 6º lugar do "ranking" dos países com mais infectados a nível mundial. Pior mesmo, só os EUA, o Brasil, a Russia, a Índia e o Reino Unido, onde o número da população infectada ainda não parou de crescer. Por coincidência, ou talvez não, os cinco primeiros países da lista, são todos governados por líderes populistas e autocráticos, que começaram por subestimar o perigo de contágio deste vírus e as evidências científicas que demonstravam o contrário. As razões deste comportamento, prendem-se com diversos factores, entre os quais devem ser realçados a extrema ignorância (Trump e Bolsonaro), o negacionismo religioso (Bolsonaro, Mori), a aposta na economia em detrimento da saúde (Trump, Bolsonaro, Johnson) e a dificuldade dos autocratas em lidar com a pandemia (Trump, Bolsonaro, Putin, Mori). Os resultados estão à vista, e, em países como os EUA, o Brasil ou a Índia, as catástrofes humanas são já imensuráveis. Esta é, de resto, a opinião do economista Dani Rodrik, esta semana laureado com o Prémio Princesa das Astúrias de Ciências Sociais (um dos mais prestigiados do Mundo) que, em entrevista, declarou não o surpreender que autocratas, como Bolsonaro, Trump e, até certo ponto, Boris Johnson, estivessem a responder pior à crise do Coronavírus: "Há uns anos publiquei uma investigação em que comparava sistemas mais democráticos e liberais com outros onde a classe política tinha maiores tendências populistas e autoritárias. A ideia de que esses regimes respondiam melhor a choques externos, que permitiam aos seus líderes tomar decisões rápidas, por não terem de negociar e chegar a acordos, não era sustentada pelas análises que fiz das crises ocorridas nos anos setenta e oitenta do século passado. Creio que isto é assim, porque os sistemas democráticos usam melhor a informação e porque contam com mecanismos em que todos os sectores da sociedade podem contribuir com os seus pontos de vista" (in El País d.d. 17/6/20).
As questões da informação e coordenação durante a pandemia estão, de resto, a ser alvo de avaliações solicitadas pelos orgãos do poder central e regional de Espanha, com vista a apurar responsabilidades por uma crise que, entre Março e Abril, chegou a registar mais de 300 mortos diários, a maior parte deles em lares de terceira-idade (as chamadas "residências"). De acordo com os mais recentes dados, só entre 8 de Março e 15 de Maio, teriam  morrido 15% dos residentes de centros de serviços sociais de Madrid. Dos 7.690 falecidos, foram apenas testados 1.203. Muitos idosos podem ter morrido por patologias diversas, que o vírus veio agravar. Neste período, o governo, teria intervido em 14 destes centros. Por comparação, no mesmo período, foram feitas 112 intervenções em centros nas Astúrias. Nestes dias, em que o pessoal sanitário não conseguia dar resposta ao número de internamentos, faltou tudo: camas, ventiladores, máscaras, testes e tiveram de ser feitas escolhas drásticas. Um vídeo, de uma sessão clínica no Hospital Infanta Cristina de Paria, em Madrid, revela como foram informados os médicos sobre frieza das medidas a tomar para evitar o colapso no centro de saúde e na UCI: "Vamos negar a cama àqueles que têm mais risco de morrer", foi a directriz dada. No vídeo, de 19 minutos, o instrutor alerta os médicos internistas de que, ao ritmo a que aumentavam os internamentos nos hospitais da comunidade de Madrid, a região ia entrar em 48h num colapso das suas UCI. O instrutor revela que a recusa de pessoas idosas, tinha sido imposta pelas autoridades sanitárias e que a única margem que restava para salvar vidas "era ser mais restritivo no internamento de pessoas jovens com bom prognóstico." ("El País" d.d. 18 de Junho).
Mas, as revelações não se ficaram por aqui (afinal, o "sacrifício dos mais débeis", sempre foi usado em tempo de guerra), já que esta semana, um novo caso, quiçá mais revelador, foi denunciado. Sob os holofotes, está agora a "alcaide" (presidente) da região de Madrid, Diaz Ayuso, que durante a pandemia se refugiou num hotel, a partir do qual exercia as suas funções, o que lhe valeu fortes críticas da oposição e do governo, do qual não faz parte. Pior, o responsável pela sanidade da região, Antonio Burgueño, nomeou a sua filha, Encarnación Burgueño, para coordenar as condições sanitárias nas "residências", já que esta teria manifestado desejo de fazer algo pela saúde dos seus concidadãos. Aparentemente, a senhora não teria grande experiência da coisa e, depois de criar uma empresa de apoio sanitário, fez um contrato com uma empresa de ambulâncias, que tratava dos transportes dos idosos para os hospitais, onde estes raramente podiam permanecer, dadas as prioridades de internamento estabelecidas. A coisa veio a lume, Antonio Burgueño demitiu-se e está a ser alvo de um processo, enquanto a sua filha, também demissionária do cargo, ficou a dever 16.450 euros à empresa de Ambulâncias Transmed, que agora exige ser ressarcida pelo trabalho feito.
Sem surpresa, a pandemia veio revelar o lado mais escuro do Homem. Para uns, a morte, para outros o negócio. O negócio da morte. Bem dizia o outro, que as crises podiam ser uma oportunidade. Nomeadamente para os oportunistas.