2013/12/31

Um ano para esquecer

Não foi um bom ano, este que agora termina.
A "crise" não é com certeza uma figura de estilo e instalou-se definitivamente na sociedade portuguesa. Basta atentar nos índices de desemprego, nas falências de empresas, na perda de poder de compra da maioria dos cidadãos, no aumento dos programas caritativos, nos níveis da emigração ou na dívida pública galopante, para não termos quaisquer ilusões relativamente ao que nos espera.
Pesem os tímidos sinais de recuperação (exportações e fim da recessão técnica), argumentos que o governo tenta explorar demagogicamente, é por demais evidente o empobrecimento generalizado da população, confrontada com o maior ataque aos direitos adquiridos desde o 25 de Abril.
A inconstitucionalidade destas medidas é, de resto, de tal forma evidente, que os chumbos do Tribunal Constitucional passaram a ser a regra em lugar da excepção.
E, no entanto, nada parece demover o governo neste caminho para o desastre anunciado. A estratégia delineada em 2011 continua a ser aplicada, segundo o princípio "estado mínimo, mercado máximo", que não deixará pedra sobre pedra quando a Troika abandonar o país ou, lá mais para a frente, quando a coligação governamental for, eventualmente, derrotada nas urnas.
Mas, mesmo que isso se verifique, qual será o cenário pós-eleitoral?
Nada nos garante que, nessa altura, o partido vencedor (seja ele qual for), possa sequer aplicar uma política radicalmente diferente daquela que tem vindo a ser utilizada. A razão é simples: o país estará, então, de tal forma exangue e a economia de tal forma destruída, que levará anos (uma década, segundo Stiglitz, prémio nobel da economia) a recuperar...
Um cenário à imagem da superfície lunar, onde a paisagem é constituida por rochas onde nada cresce. Será esse o nosso destino colectivo, se nada fizermos para o evitar. Será portanto, esta, a nossa maior e mais importante tarefa em 2014: evitar o desastre anunciado.
Bom ano!


2013/12/20

Chumbo Unânime

Num país normal, depois do quarto chumbo do Tribunal Constitucional às medidas inconstitucionais do governo, aconteciam uma de duas coisas: ou o governo (se tivesse vergonha) pedia a demissão; ou o presidente da república (se existisse) chamava o primeiro-ministro a Belém e exigia a sua demissão. Em qualquer dos casos, a decisão permitia convocar eleições antecipadas, o que não sendo a solução para os problemas do país, permitia clarificar as opções existentes e dar voz a uma população que há muito não se revê num programa de austeridade do qual não se vêem quaisquer resultados positivos. Pelo contrário, a situação piora a cada dia que passa e a destruição social é uma evidência. Mas, não estamos num país normal...  
Desde logo, porque o Portugal "intervencionado", deixou de ser um estado soberano desde que pediu o resgate e aceitou as condições impostas; depois, porque a Troika tem mostrado ser inflexível nas suas metas e pressiona o governo através dos organismos internacionais que dela fazem parte; finalmente, porque o governo português não está minimamente interessado em negociar este programa de ajustamento, que serve às maravilhas a sua estratégia de privatizações e desmantelamento do estado social. Resta acrescentar que, nesta matéria, tanto os organismos que fazem parte da Troika (FMI, BCE, UE) como os partidos governamentais (PSD, CDS) têm uma visão comum sobre o modelo político e económico a seguir: estado mínimo e mercado máximo.
Sobre a oposição parlamentar (PS, PCP e BE), é visível a sua incapacidade de apresentar alternativas reais, seja porque não as tem, seja porque sabe que, no dia em que for governo, será confrontada com uma economia irrecuperável - porque destruída nos seus fundamentos - o que obrigará a uma renegociação da ajuda externa, logo de mais dependência.
Resta falar da oposição extra-parlamentar, onde aumenta a contestação e as formas de desobediência civil, para além dos projectos anunciados de novas formações à esquerda (Livre, 3D) o que, não sendo (ainda) uma alternativa concreta, aponta para novas formas de organização fora do anquilosado sistema partidário.
Em suma: o chumbo do Tribunal Constitucional, sendo justo e esperado, não garante uma mudança das políticas até agora seguidas. As ameaças, ainda que veladas, já começaram a surgir: desde logo através dos porta-voz do partidos governamentais e (who else?) da chanceler alemã e do presidente da Comissão Europeia, o "patriota" Barroso, que (como sempre) dizem estar "atentos" aos desenvolvimentos em Portugal. Por outro lado, prevendo o que aí vinha, a Troika fez depender a transferência, de mais uma "tranche" da "ajuda",  da decisão do Tribunal Constitucional. É por demais evidente, que a chantagem vai continuar.

   
       

2013/12/16

Na Morte de Peter O'Toole


Há algum tempo que não se falava dele. Aparentemente, continuava a interpretar peças de teatro - que nunca abandonou - e a participar em filmes que, esporadicamente, lhe eram propostos. Este ano anunciou a despedida da representação. Em 2002, a Academia tinha-lhe oferecido o Óscar que nunca ganhou (apesar de nomeado 7 vezes) como tributo pela sua carreira cinematográfica. Não fora um filme e, porventura, não estaria aqui a escrever estas linhas. Conheci-o, como a maior parte das pessoas da minha geração, através de "Lawrence of Arabia", a obra prima de David Lean. Já lá vão cinquenta anos...
E, no entanto, "Lawrence" - o filme,  continua gravado na memória, como uns dos mais marcantes da minha juventude.  Talvez devido ao facto do cinema continuar a ser a "fábrica de sonhos" que nunca abandonámos. Uma coisa é certa: depois do "Lawrence", o cinema, para mim, nunca mais foi a mesma coisa.
Vi o filme diversas vezes, a última das quais em formato 70mm, quando David Lean faleceu. Nesse dia, algumas salas de Amsterdão tiveram a ideia original de projectar quatro das obras de Lean, em homenagem ao realizador britânico. Indeciso quanto à escolha, optei por "Lawrence". Antes da projecção, a sala ficou às escuras e, durante largos minutos, só ouvimos o tema musicado por Maurice Jarre. Uma experiência inesquecível. Quando surgem as primeiras imagens, com Lawrence a andar de moto, naquela que seria a sua última viagem, já estamos identificados com o personagem. Lawrence só podia ser O'Toole e O'Toole era Lawrence. Uma simbiose perfeita, que a duração do filme (mais de 3horas na versão "director's cut") apenas confirma. Tudo é perfeito nesta obra - nomeada para oito óscares - o argumento, as inesquecíveis imagens do deserto, a música e as interpretações individuais. De todas, a mais impressionante é, sem dúvida, a de Peter O'Toole, até aí um desconhecido do grande público. As nomeações para o Óscar, que posteriormente viria a receber, apenas confirmam o seu inegável talento como actor, apreendido no celebrado Old Vic, onde voltava sempre que podia.
Um personagem inesquecível, o Lawrence. Ou seria o Peter?

 
    

2013/11/29

A Festa do Cinema

Está a passar, num cinema de Lisboa, um dos filmes mais assombrosos do ano.
Tem como título “A História do Cinema: uma odisseia” (The Story of Film: an Odissey) e foi ontem estreado em Portugal. Trata-se de um projecto do realizador Mark Cousins e a obra é uma adaptação do livro com o mesmo nome, que este critico, divulgador e programador irlandês, publicou em 2004.  
Alertado por um anúncio de um quarto de página no “Público” de ontem, lá fui ao City Alvalade, única sala onde o filme está a ser exibido. Filme, é como quem diz: trata-se de um documentário de 15 episódios de 1 hora, que pode ser visto em sessões diárias de 2 horas, todos os dias até quarta-feira próxima,  após o que haverá um debate com diversos realizadores e agentes cinematográficos, sobre o tema.
Esta será a única exibição do filme em Portugal e quem o quiser ver depois terá de comprar a DVD-Box que a Midas Filme irá editar dentro em breve.
Que dizer desta experiência, verdadeiramente avassaladora, de um filme, que não é um filme nem um documentário, no sentido literal do termo, onde a linguagem cinematográfica (porque é disso que se trata) nos é apresentada em sequências que nos obrigam a repensar tudo o que julgávamos saber sobre a arte de contar uma história em imagens?
Partindo de uma sequência cronológica dos períodos mais marcantes da história do cinema - os episódios da primeira sessão abrangem os anos 1895-1920 (“O nascimento do cinema”) e  os anos 20 (“O sonho de Hollywood”)  -  o filme abre com imagens poderosas de “Soldado Ryan”, seguidas da actriz Binoche em “Azul” - pontuadas pela voz articulada e de acento irlandês do realizador. Ele chama-nos a atenção para o que acabámos de ver e quais as linguagens cinematográficas implícitas. O que vemos e o seu significado. Porque se filmam determinadas coisas de uma maneira e outras de outra? Como chegámos aqui? É nessa altura que o filme dá um salto para trás e inicia um “flashback” de 50 minutos, sobre o aparecimento do cinema e os seus pioneiros. Sempre com imagens actuais, alternadas com imagens da época. Passaram 15 minutos e já estamos completamente “agarrados” à narrativa. Quando a sessão terminou, os poucos espectadores presentes perguntavam-se como podiam ver os restantes filmes, uma vez que nem toda a gente tem disponibilidade para ir uma semana seguida ao cinema. Não se pode. Trata-se de uma exibição única e irrepetível. Resta a versão em DVD. Mas, nunca será a mesma coisa...    

2013/11/23

Nem tudo o que mexe está necessariamente vivo

As manifestações de ontem em Lisboa (Escadarias do Parlamento e Aula Magna da Universidade) podem significar tudo e o seu contrário.
Se é verdade que a situação do pais deixa cada vez menos margem de manobra a uma parte substancial da população, diariamente espoliada de meios mínimos para a sua sobrevivência e, nesse sentido, cada vez mais predisposta a revoltar-se contra este estado de coisas; também não é menos verdade que, salvo raras e circunscritas excepções, nada indica que a sociedade portuguesa esteja num ponto de ebulição tal que a violência futura, anunciada por muitos comentadores e exaltada por Soares, seja, para já, um dado adquirido.
Vejamos a manifestação policial no Parlamento: é verdade que o acto simbólico dos policias a ultrapassarem as barreiras e a subirem as escadas do Parlamento, é um precedente aberto a especulações. Como se comportarão os policias, que guardam o Parlamento, em futuras manifestações naquele local?  Carregarão sobre os manifestantes, como o fizeram em Novembro de 2012, ou recuarão para o cimo da escadaria, como o fizeram ontem, permitindo aos manifestantes que subam as escadas como os polícias? É uma pergunta pertinente, pois do comportamento policial – contra, ou ao lado de futuros manifestantes -  poderemos concluir o que faz mexer a policia: uma reivindicação corporativa ou uma revolta anti-governamental.
O mesmo se pode dizer, relativamente à manifestação de iniciativa de Mário Soares, organizada à mesma hora em que as forças policiais subiam as escadas do Parlamento. Também na Aula Magna, podíamos ver caras mais e menos conhecidas, muitas delas de ex-governantes, maioritariamente do PS, que até há três anos atrás foram governo e que, muito provavelmente, vão voltar a sê-lo muito em breve.
Significará esta concentração de ex-governantes, políticos no activo, figuras de direita e de esquerda e simples cidadãos revoltados, uma nova tendência na oposição portuguesa?  Ainda é cedo para extrair conclusões, mas a experiência dos últimos anos não nos permite sermos optimistas: há um cansaço nítido na sociedade portuguesa, que não se revê na partidocracia reinante e está exaurida pelo regime de austeridade  imposto pelo actual governo. Por isso, as iniciativas da oposição, sejam estas de carácter partidário, sindical ou simples movimentos de cidadãos, parecem ter cada vez menos aderência. Basta ver a percentagem de abstenções nos actos eleitorais mais recentes ou o divisionismo reinante nos diversos movimentos, para constatar o óbvio. Que tenha sido uma figura como Mário Soares a organizar tal encontro, ilustra bem o impasse das esquerdas (todas sem excepção), nesta crítica fase da politica portuguesa.  Aparentemente, a oposição está bloqueada e não parece poder oferecer uma alternativa real de governo o que, de resto, é expresso nas sondagens regularmente feitas. Também a composição da sala da Aula Magna, não augura muito de bom, sabendo nós que muitos daqueles ex-governantes contribuíram (e de que maneira) para o estado a que o pais chegou.
Avizinham-se tempos (ainda) mais difíceis. O governo está isolado e pode cair de podre. Mas, as alternativas (à esquerda) não são de molde a entusiasmar os cidadãos. Nem tudo o que parece mexer está de facto de saúde. Este é o dilema.

2013/11/21

Nem mais...

Carta Aberta a um MENTECAPTO (João César das Neves)
Meu Caro João,
Ouvi-te brevemente nos noticiários da TSF no fim-de-semana e não acreditei no que estava a ouvir. Confesso que pensei que fossem “excertos”, fora de contexto, de alguém a tentar destruir o (pouco) prestígio de Economista (que ainda te resta).
Mas depois tive a enorme surpresa: fui ler, no Diário de Notícias a tua entrevista (ou deverei dizer: o arrazoado de DISPARATES que resolveste vomitar para os microfones de quem teve a suprema paciência de te ouvir).
E, afinal, disseste mesmo aquilo que disseste, CONVICTO e em contexto.
Tu não fazes a menor ideia do que é a vida fora da redoma protegida em que vives: - Não sabes o que é ser pobre; - Não sabes o que é ter fome; - Não sabes o que é ter a certeza de não ter um futuro. Pior que isso, João, não sabes, NEM QUERES SABER!
Limitas-te a vomitar ódio sobre TODOS aqueles que não pertencem ao teu meio. Sobes aquele teu tom de voz nasalado (aqui para nós que ninguém nos ouve: um bocado amaricado) para despejares a tua IGNORÂNCIA arvorada em ciência.
Que de Economia NADA sabes, isso já tinha sido provado ao longo dos MUITOS anos em que foste assessor do teu amigo Aníbal e o ajudaste a tomar as BRILHANTES decisões de DESTRUÍR o Aparelho Produtivo Nacional (Indústria, Agricultura e Pescas).
És tu (com ele) um dos PRINCIPAIS RESPONSÁVEIS de sermos um País SEM FUTURO.  
De Economia NADA sabes e, pelos vistos, da VIDA REAL, sabes ainda MENOS! João, disseste coisas absolutamente INCRÍVEIS, como por exemplo: “A MAIOR PARTE dos Pensionistas estão a fingir que são Pobres!”
Estarás tu bom da cabeça, João?
Mais de 85% das Pensões pagas em Portugal são INFERIORES a 500 Euros por mês (bem sei que que algumas delas são cumulativas – pessoas que recebem mais que uma “pensão” - , mas também sei que, mesmo assim, 65% dos Pensionistas recebe MENOS de 500 Euros por mês).  
Pior, João, TU TAMBÉM sabes.
E, mesmo assim, tens a LATA de dizer que a MAIORIA está a FINGIR que é Pobre?
Estarás tu bom da cabeça, João?
João, disseste mais coisas absolutamente INCRÍVEIS, como por exemplo: “Subir o salário mínimo é ESTRAGAR a vida aos Pobres!”
Estarás tu bom da cabeça, João?
Na tua opinião, “obrigar os empregadores a pagar um salário maior” (as palavras são exactamente as tuas) estraga a vida aos desempregados não qualificados.
O teu raciocínio: se o empregador tiver de pagar 500 euros por mês em vez de 485, prefere contratar um Licenciado (quiçá um Mestre ou um Doutor) do que um iletrado.
Isto é um ABSURDO tão grande que nem é possível comentar!
Estarás tu bom da cabeça, João?
João, disseste outras coisas absolutamente INCRÍVEIS, como por exemplo: “Ainda não se pediram sacrifícios aos Portugueses!”
Estarás tu bom da cabeça, João?
Ainda não se pediram sacrifícios?!?
Em que País vives tu, João?
Um milhão de desempregados; Mais de 10 mil a partirem TODOS os meses para o Estrangeiro; Empresas a falirem TODOS os dias; Casas entregues aos Bancos TODOS os dias; Famílias a racionarem a comida, os cuidados de saúde, as despesas escolares e, mesmo assim, a ACUMULAREM dívidas a TODA a espécie de Fornecedores.
Em que País vives tu, João?
Estarás tu bom da cabeça, João?
Mas, João, a meio da famosa entrevista, deixaste cair a máscara: “Vamos ter de REDUZIR Salários!” Pronto! Assim dá para perceber.
Foi só para isso que lá foste despejar os DISPARATES todos que despejaste. Tinhas de TRANSMITIR O RECADO daqueles que TE PAGAM: “há que reduzir os salários!”.
Afinal estás bom da cabeça, João. Disseste TUDO aquilo perfeitamente pensado.
Cumpriste aquilo para que te pagam os teus amigos da Opus Dei (a que pertences), dos Bancos (que assessoras), das Grandes Corporações (que te pagam Consultorias). Foste lá para transmitir o recado: “há que reduzir salários!”.
Assim já se percebe a figura de mentecapto a que te prestaste.
E, assim, já mereces uma resposta: - Vai à MERDA, João!
Um Abraço,
Carlos Paz

2013/11/08

Portugal em 4D

Há tempos escrevi aqui uma prosa sobre o 3D em Portugal (o filme ainda dura...) Hoje ficámos a saber que o director da S&P acha que Portugal deve pedir um 2º resgate. Parecia um desses operadores de telemarketing dos bancos a tentar convencer-nos a pedir um novo cartão de crédito, esforçando-se por nos mostrar as fabulosas vantagens em o fazer. Não há dinheiro, dizem-nos, (lembrem-se das declarações recentes de D. Policarpo e de D. Crato...) mas já se aproximam os tempos do 4D. Afinal os "mercados" estão convictos que Portugal está maduro para  comprar mais crédito. Venham mais juros!!
O negócio do 3D deve estar a ir de vento em popa!

2013/11/07

A Constituição, esse “papão”...

As afirmações, ontem produzidas pelo ministro Aguiar-Branco, sobre a necessidade de rever a actual Constituição, argumentando que vivemos num  “estado totalitário” (!?), só não espanta por conhecermos bem o personagem.
Contudo, não nos devemos admirar.
Durão Barroso, ainda que indirectamente, disse o mesmo em Bruxelas relativamente ao Tribunal Constitucional e, na passada semana, Paulo Portas apresentou o famigerado Plano de Reforma do Estado, que mais não é do que uma tentativa canhestra de alterar as relações sociais existentes, coisa que a actual Constituição assegura. De resto, a tentativa de alterar a Constituição já tinha sido expressa no livro-programa de Passos Coelho, apresentado durante a campanha eleitoral de 2011, objectivo que só não foi atingido ainda por falta de maioria qualificada para poder fazê-lo.
Ou seja, desde que chegou ao poder, a direita vem tentando, umas vezes de “pantufas”, outras de “botas cardadas”, modificar o texto da Constituição que, interpretado pelo Tribunal Constitucional, tem muitas vezes impedido o actual governo de alterar completamente o modelo económico em que a nossa sociedade se baseia e que, nas suas grandes linhas, foi rectificado em sucessivas alterações à Constituição, todas elas posteriores a 1976.
Como muito bem explicou Jorge Miranda, “pai" da actual Constituição, e portanto insuspeito nesta matéria, o texto da actual Lei foi exactamente aprovado contra as tentativas totalitárias de 1975 e não é impeditivo de reformas consideradas necessárias para a sociedade portuguesa, assim o legislador o queira...
O que se está a passar é muito mais grave do que as afirmações de direitolas reaccionários, como Aguiar-Branco e congéneres, fazem supor. Trata-se, no fundo, de modificar as relações económicas que têm prevalecido na Europa do Estado Social e que a recente crise, provocada pela desregulação dos mercados financeiros, está a alterar profundamente em todo o Mundo Ocidental. Ou seja, há uma clara estratégia internacional para alterar o paradigma politico europeu vigente (assente numa economia de mercado supervisionada pelo estado e onde os cidadãos, trabalhadores ou não, estão inseridos num sistema que protege o emprego, a inclusão e a solidariedade social). Os ataques a este modelo, desencadeados um pouco por toda a Europa (veja-se o caso de países relativamente ricos, como a França, a Itália ou a Espanha) mais não são do que tentativas desesperadas do capital financeiro para desregular os mercados, com a conivência dos principais governos europeus, Alemanha à cabeça.
Em Portugal, como de resto noutros países periféricos e de economias mais débeis, já foi atingida a fase de intervenção directa, estádio último do empobrecimento gradual que nos conduzirá à dependência futura, chame-se esta “resgate” ou “programa cautelar”, eufemismos da “troika” que mais não significam do que alteração do sistema democrático vigente. Este é o grande perigo e o grande desafio da sociedade portuguesa, pois dele depende o nosso futuro como nação  independente. Combatê-lo, para além de entendê-lo, é hoje a tarefa prioritária de todas as forças que se reclamam de democratas.

2013/11/04

Chuva em Novembro, Natal em Dezembro

Como se esperava, o Orçamento de Estado para 2014, foi aprovado na generalidade. Nem outra coisa seria de esperar. O simbólico vota “contra” do deputado do CDS-Madeira, Rui Barreto, mais não foi do que isso mesmo: um protesto contra os cortes nos salários e nas pensões, gesto que o mesmo deputado já tinha tido na discussão do OE 2013. Mudou alguma coisa?
Não, não mudou nada, as medidas de austeridade, iniciadas por este governo em 2011, vão prosseguir e os cortes anunciados fazem prever mais do mesmo: despedimentos em massa no sector público, cortes de salários e pensões a partir de fasquia encontrada de 600 euros, cortes nos subsídios de desemprego, inserção social e apoios de toda a ordem, desde a educação, ao abono de família, etc.
No outro lado da balança, o exército dos desempregados continua a aumentar, ainda que o ministro da tutela tenha anunciado uma diminuição de duas décimas na percentagem (17%) de desempregados inscritos nos Centros de Emprego. Esqueceu-se a “luminária” de explicar que essa diminuição deve-se ao simples facto de 120.000 portugueses terem abandonado o pais em 2012, o que obviamente explica tal descida! Será que esta gente é mesmo estúpida ou quer fazer dos portugueses parvos?
Porque os cortes exigidos pela Troika, são de 4.600 mil milhões de euros só no primeiro semestre de 2014, não vemos como este governo poderá evitar as medidas enunciadas no documento ontem votado e aprovado no Parlamento. A descida à especialidade das respectivas comissões será, por isso, um exercício formal que pouco irá alterar nas intenções expressas nestes dois dias de discussão.
Resta a oposição. Mas qual oposição?
O PS, há muito convertido ao discurso eunuco de Seguro, um líder fraco e enfraquecido pelos pares, que fora e dentro do partido é diariamente achincalhado, agora que o “fantasma” de Sócrates voltou à ribalta?
O PCP, entrincheirado nas suas verdades imutáveis que não mobilizam mais de 10% de votantes ou, na melhor das hipóteses, 100.000 manifestantes a descer a Avenida da Liberdade?
O BE, que há muito deixou de ser o partido do crescimento sustentado, para tornar-se um partido em desagregação acelerada?
Ou os movimentos alternativos, como “Que se lixe a Troika!” que, na última concentração, mais pessoas não conseguiu do que alguns (poucos) milhares que encheram a Rua do Ouro em Lisboa?
Não sabemos. Sabemos que o Inverno se afigura mais sombrio e chuvoso. Como sempre foram os Invernos, de resto. Depois, lá para Dezembro, haverá luzes e compras (menos desta vez), mas Natal apesar de tudo. São as únicas certezas, para já. Era bom que houvesse uma surpresa no sapatinho.

2013/10/16

Lanzmann na Cinemateca


No âmbito da 14ª Festa do Cinema Francês, a decorrer em diversas cidades do país, a Cinemateca Portuguesa exibe esta semana uma retrospectiva do cineasta Claude Lanzmann. Sobre este polémico, mas incontornável jornalista e documentarista francês de origem judia, que escolheu a denúncia do holocausto como missão de vida, já quase tudo foi dito. Restam os filmes, pela primeira vez mostrados no seu conjunto em Portugal, uma oportunidade e um privilégio para os cinéfilos portugueses que ainda não conheçam os documentários de Lanzmann. Se mais razões não houvesse, esta era suficiente para justificar a existência da Cinemateca, que está mais uma vez de parabéns por esta iniciativa, a qual contou com a presença do realizador na apresentação (estreia europeia!) do seu mais recente filme “ Le dernier des injustes” (O último dos injustos).
Construído a partir de uma entrevista de 1975 com Benjamin Murmelstein (o último “Ancião dos Judeus” no gueto de Theresienstadt, perto de Praga) o filme foi completado 40 anos mais tarde, com imagens actuais da caserna de Theresien, local escolhidos pelos nazis para construírem um “gueto modelo”, onde viviam artistas, intelectuais e cientistas judeus, num cenário artificial que procurava ocultar os crimes cometidos noutros campos de concentração e de extermínio.
É um documento avassalador, como todos os que já vimos do mesmo realizador, não só pela temática, mas pela abordagem e extensão (4horas), com que Lanzmann disseca o objecto da sua investigação, não deixando pedra sobre pedra sobre este negro capítulo da história recente da humanidade. Resta uma questão, levantada por uma espectadora no debate após a projecção do filme: porque demorou Lanzmann 40 anos a fazer este filme e qual o verdadeiro papel de Murmelstein, condenado e preso por colaboracionismo que, à data da entrevista, se recusava a voltar a Israel...
Uma pergunta pertinente, à qual o realizador não se furtou, argumentando que o filme continha todas as respostas e que ele estava convencido da inocência de Murmelstein (o que de resto é visível na última imagem do documentário, quando ambos, abraçados, caminham pelas ruas de Roma). Um homem amargurado e polémico, o documentarista francês que, independentemente da opinião que dele possamos ter, não hesita em tomar partido numa questão que o absorve e sobre a qual parece querer deixar o testemunho final.
A retrospectiva dedicada a Claude Lanzmann prossegue esta semana e terminará no próximo sábado com a exibição integral de “Shoah” (9horas de projecção), consensualmente considerada a sua obra-prima e o documentário definitivo sobre o Holocausto. No âmbito deste ciclo, foi ainda reeditada uma DVD-box, que inclui “Shoah” e “Sobibor, 14 de Outubro”, com um total de 650 minutos de imagens.
Um documento imperdível.

2013/10/14

Afinal, não era necessário ter assustado os velhinhos...

A conferência de imprensa, ontem montada e transmitida nos canais públicos em “prime time”, do ministro Paulo Portas e da secretária das finanças Maria Albuquerque, é a última peça de uma encenação macabra que consome os cidadãos deste pais.
Não há adjectivos suficientes para qualificar a demagogia e a pulhice de governantes que passam o tempo a anunciar medidas de austeridade, como quem lança balões de ensaio, para no momento seguinte se contradizerem ou, ao mínimo movimento reactivo, darem o dito por não dito, continuando a ameaçar toda a gente: a oposição, os sindicatos, o tribunal constitucional, os funcionários públicos, os pensionistas e reformados, numa espiral decrescente da qual não se enxerga o fim.
Já toda a gente percebeu – e estes governantes, sendo incompetentes, não são todos parvos – que a actual austeridade só provoca recessão e que a “receita” aplicada, falhou. Todos os especialistas, da esquerda à direita, o afirmam diariamente. É ouvir Sampaio ou Soares, Manuela Ferreira Leite ou Bagão Félix, para citar alguns dos nomes do espectro político que, por estes dias, andam a perorar na televisão. Esta é uma “terapia” que, segundo alguns, nunca foi experimentada, e os cientistas sociais que continuam a apostar nela só por sadismo podem acreditar que ao fundo do túnel haverá uma luz. Não há, e a Grécia, é disso o melhor exemplo.
Para onde nos conduzem os criminosos que dirigem o pais, pois é de crime de lesa pátria que estamos a falar, ainda não sabemos. Sabemos, e o próximo orçamento de estado irá confirmá-lo, que a austeridade em 2014 será maior. Portugal terá de pagar, só no primeiro trimestre do ano, 13.000 milhões de euros aos credores e não se vislumbram meios (a não ser através de impostos ou de cortes nos salários e nas pensões) para fazê-lo. Por outro lado, continuam a não existir medidas de estímulo à economia, que podiam, de alguma forma, aumentar o emprego e com este as prestações sociais e o poder de compra. Nada disto está a acontecer e não é necessário ser economista para perceber estas coisas básicas. Mesmo do ponto de vista dos credores, não servirá de muito continuar a depenar uma galinha sem penas, pois os ganhos serão sempre reduzidos...
Que pretende, pois, esta gente, completamente desmiolada?
Não sabemos, ou melhor, ainda não compreendemos bem. Há, desde já, duas hipóteses: ou o governo acredita piamente que a receita de purificação económica levada a cabo, fará renascer Portugal das cinzas, qual Fénix mitológico, após a destruição do sistema ou, o que seria ainda mais patético, os nossos governantes acreditam que a Troika não deixará “cair” Portugal, pois necessita de um bom exemplo na Europa, para provar que a receita resultou. Qualquer dos dois caminhos, só pode conduzir ao desastre.

2013/10/05

O torto do direito

As declarações do presidente da Comissão Europeia hoje no Algarve são um insulto, uma vergonha que não devia passar sem resposta condigna dos cidadãos. Acha este personagem de opereta, este fantoche não eleito, que, em nome da paz com os "mercados," deve haver um "compromisso" que não "incumbe apenas ao Governo, mas a todos os órgãos de soberania e mesmo à sociedade no seu conjunto," nisto incluindo, claro está, os tribunais (mais aqui.)
De um personagem politicamente ilegítimo e tão fraco, como é Durão Barroso, não estamos à espera de grande coisa. Mas, agora parece-me que este zé manel foi longe de mais.
A Lei é afinal para cumprir ou não? É que, a mim, vai-me apetecendo cada vez mais não cumprir nenhuma lei. Prevalece o "vale tudo político" que António Costa referiu no seu discurso de hoje ou a democracia e o "estado de direito" têm regras? E a separação de poderes do Estado Português é para respeitar ou não?
Se é para cumprir e se esta Lei não serve, mudem-na. Se, por outro lado, circunstâncias excepcionais aconselham agora o seu não cumprimento, o Presidente da República que tenha a coragem de declarar o estado de excepção. Se o poder tem medo desta alternativa, uma outra saída poderia também ser a de delegar o poder de declarar o estado de excepção na chanceler alemã ou na Comissão Europeia. Assim, estaria tudo legalmente acautelado.
Enquanto assim não for o "caldo entornou-se" com estas declarações. Fecha a matraca Barroso!!

2013/09/30

E Agora?

Ainda que os resultados das eleições de ontem não sejam todos conhecidos, à hora de escrevermos este “post”, as conclusões são óbvias:
Ganharam o PS, a CDU e as Candidaturas Independentes. Perderam o PSD, o BE e, na Madeira, Alberto João Jardim. O CDS teve uma “vitória de Pirro” que Paulo Portas, como sempre, aproveitou para explorar demagogicamente.
Que destacar nestas atípicas eleições autárquicas?
Desde logo, o aparecimento de um número inusitado de candidaturas independentes, que contribuíram para o colorido da noite e devem ter servido para alertar os anquilosados aparelhos partidários. Neste capítulo, a vitória de Rui Moreira (Porto) foi, sem dúvida, a mais espectacular. Depois, o “pleno” na vitória do PS, que conquistou o maior número de votos, o maior número de câmaras, o maior número de vitórias por maioria absoluta (em Lisboa, Costa arrasou) e a presidência da Associação Nacional de Municípios. Com esta vitória do partido, Seguro não terá de temer pela sua contestada liderança.
Finalmente, o inesperado regresso da CDU, na sua maior votação desde a década de noventa e a reconquista de municípios importantes como Évora, Beja e Loures. A contestação às políticas do governo vão, certamente, continuar.
Restam, a copiosa derrota do PSD, em bastiões tão importantes como o Porto, Gaia e Sintra, apesar das vitórias em municípios relevantes como Braga e Guarda. Na Madeira, o “ciclo” João Jardim parece ter chegado ao fim, apesar do partido continuar a ser o mais votado na ilha.
Sobre a votação do BE, ainda que esta não tenha propriamente espantado (o partido nunca teve grande influência autárquica), os resultados de ontem foram maus de mais para serem escamoteados. Dificilmente, não haverá consequências a nível interno e da direcção.
Onde não se esperam mudanças, a avaliar pelas declarações de Passos Coelho na madrugada de hoje, é na política seguida por este governo. Logo, as medidas de austeridade, previamente anunciadas e combinadas com a Troika, são para aplicar. Onde nos levará esta política suicida de aluno cretino, não sabemos. Ninguém sabe. A começar pelo próprio primeiro-ministro.  



Mesmo em crise, Amsterdão é uma festa (conclusão)

Como é da tradição, na terceira terça-feira de Setembro, o rei profere o “Troonrede” (Discurso do Trono) que, formalmente inaugura o ano parlamentar. Nesse dia, igualmente conhecido por “Prinsjesdag” (O Dia do Princípe), o monarca dirige-se aos cidadãos para comunicar-lhes a agenda do governo para o próximo ano. Numa monarquia constitucional, como a holandesa, o discurso é previamente preparado pelo gabinete de ministros, limitando-se o rei a enunciar as grandes linhas da politica a seguir.
Como sempre, a Holanda parou para escutar o monarca, Willem-Alexander, que sucedeu à rainha Beatriz no passado mês de Abril. Um discurso há muito aguardado, dada a estreia do rei nestas andanças e às medidas de austeridade previsíveis no orçamento deste ano. E que disse o rei de novo?
Que a Holanda era um pais bem organizado, rico em talento e habituado a desafios, mas que, de há cinco anos a esta parte, enfrentava uma crise económica. Que as consequências desta crise são cada vez mais sentidas: o desemprego a crescer, o número de falências a aumentar, as casas a valer cada vez menos, as reformas congeladas e o poder de compra estagnado. Ainda que comecem a surgir tímidos sinais de recuperação,
a economia vê-se confrontada com problemas estruturais, nomeadamente as dívidas do estado, das famílias e a saúde orçamental dos bancos. Devido a causas sociais, como o envelhecimento da população e a internacionalização dos mercados, o mercado de trabalho holandês e a rede de apoios sociais deixaram de responder às exigências deste tempo. Se querem defender a tradicional sociedade de solidariedade em que vivem, os holandeses têm de adaptar-se à nova situação. Até aqui, o diagnóstico do rei.
Depois, o monarca continuou: O actual “verzorgingsstaat” (estado de protecção) deve mudar gradualmente para uma “participerende samenleving” (comunidade participativa). Ou seja, os cidadãos devem tomar o destino nas próprias mãos, mostrando mais iniciativa. Os próximos anos serão de grandes reformas e muitas leis parlamentares, foi avisando o monarca. E porquê?
Desde logo, porque o nível da dívida pública deve ser controlado (os holandeses pagam actualmente, 11 mil milhões de euros de juros/ano, pela sua dívida) e o estado tem de intervir. Sem intervenção, este “déficit” aumentará exponencialmente, o que exige medidas drásticas: para começar, já este ano, um corte de 6 mil milhões de euros. Onde?
Ora bem: a partir de 2014, o governo deixará de compensar a perda salarial sofrida com a inflação. Na assistência à saúde, uma parte passará a ser ministrada pelos médicos de família, assim como aumentará a exigência e controlo sobre os seguros de cuidados paliativos. Será criado um apoio social único, em vez dos existentes (desemprego, invalidez, viuvez, etc.), que diminuirá à medida que o rendimento familiar aumente. As pessoas que o desejem, podem investir o dinheiro que recebem desse fundo numa empresa pessoal, a troco de uma taxa de impostos mais baixa. Os apoios à juventude passam a ser da responsabilidade dos municípios. Os apoios de longa duração têm de ser mudados, pois as despesas dispararam nos últimos anos e já custam €2200/ano a cada holandês. Serão as Câmaras a determinar qual o tipo e por quanto tempo essa ajuda será dada. O apoio médico ficará sob a alçada da Segurança Social regular. As Câmaras passarão a ajudar os agentes sociais a conseguir trabalho para os desempregados de longa duração. O subsídio de desemprego, assim como a lei do despedimento, vão ser “modernizados”, diminuindo o tempo máximo de subsídio para 24 meses.
Deixará de haver apoios para minorias específicas, nomeadamente no sector do ensino extra-curricular, como é o caso das escolas do Islão.
A nível internacional, a Holanda apoiará a criação de uma União Bancária Europeia (UBE) e será anfitriã da próxima cimeira da Segurança Nuclear contra o Terrorismo, marcada para 2014 em Haia.
Para concluir e ainda nas palavras do rei: A transição para uma “comunidade participativa” será mais visível na segurança social e no apoio a longo prazo. O modelo clássico do “verzorgingsstaat” (estado de protecção) da segunda metade do XX, criou regras que estão desadequadas aos tempos actuais. Nos tempos que correm, as pessoas querem ser mais participativas e ter mais iniciativa na resolução dos seus próprios problemas.
Perante tal semântica, que mais acrescentar? O Estado Social holandês pode ainda não ter terminado, como se apressaram a escrever alguns dos comentadores da nossa praça, mas caminha para lá a passos largos. Curiosamente, ou talvez não, no dia seguinte a este discurso, foram reveladas as intenções de voto dos holandeses. Sem surpresa, os partidos da actual coligação governamental, o VVD (liberais de direita) e o PVDA (trabalhistas), caiam a pique nas sondagens. O partido mais votado seria, agora, o PVV (extrema-direita populista) que é pela proibição do Islão e pela defesa das pensões dos reformados.

2013/09/28

Mesmo em crise, Amsterdão é uma festa (3)


Um dos percursos culturais mais interessantes na cidade é proporcionado anualmente no “Open Monumentendag” (Dia do Monumento Aberto), data em que dezenas de instituições, públicas e privadas, abrem gratuitamente as portas à população. Este ano, porque o dia dos monumentos (15 de Setembro), coincidiu com um domingo, a municipalidade alargou as visitas a todo o fim-de-semana. A melhor altura para fazer o percurso é de manhã, quando as filas são ainda pequenas, mas, quando chegámos ao prédio “De Granada”, uma mansão senhorial situada na Nieuwe Herengracht, o canal tradicionalmente habitado por judeus abastados, já a fila era já tão grande que optámos por outra alternativa, esta situada uns números mais à frente, a “Huize Avondrood”, igualmente propriedade de uma rica família judia. Infelizmente, o tempo de espera afigurou-se tão longo que decidimos passar a outra instituição na vizinhança, a “Uilenburgersjoel”, uma das três sinagogas da cidade, recuperada depois da pilhagem na segunda guerra e que hoje, para além de lugar de oração, é utilizada como escola e local de ensaios. Lá estivemos, a ouvir música de reportório “klezmer”, magnificamente tocada por um “ensemble” de jovens músicos de origem.
Tempo para passar ao monumento seguinte, “De Oude Kerk” (A Igreja Velha), considerado o edifício mais antigo da cidade. Pese a sua antiguidade, a igreja, de culto protestante, apresenta sinais de grande vitalidade depois da restauração a que foi sujeita em 2008 e que ainda não terminou. Para além das cerimónias litúrgicas tradicionais, é intenção da municipalidade criar no seu espaço (gigantesco) uma galeria de arte moderna. Foi lá que vimos uma exposição de fotografia, cujo tema central era a “mulher” em diversas sociedades e profissões. Fotos de grande nível, com destaque para uma série sobre “travestis” mexicanos, premiada com o 1º lugar em fotografia documental. Situada em pleno coração do “bairro vermelho” de Amsterdão, a “Oude Kerk” é um “must” do roteiro turístico da cidade.
Seguiu-se uma visita à “Gulden Trip” no mesmo bairro, uma pequena moradia com quintal, datada de 1565, construída sobre os alicerces de uma das mais antigas casas da cidade, cujas origens remontam a 1380. Durante a sua reconstrução, em finais do século XX, foram descobertos e restaurados os pavimentos e tectos originais, que podem ser admirados em todo o seu esplendor. A “Gulden Tulp” alberga, actualmente, a sede do “Fundo National de Instrumentos”, uma fundação que apoia a divulgação de instrumentos antigos e de um “ensemble” musical de cordas. Vale a visita.
Depois de um breve interregno, seguimos para a “Ambtswoning” (residência oficial do presidente da câmara) famosa pela sua decoração de inspiração francesa e pelas suas tapeçarias e lustres em Arte Deco. Também aí, as centenas de pessoas na fila fizeram-nos optar pelo “Stadsarchief Amsterdam” (O Arquivo Municipal), um edifício imponente que domina toda a Vijzelstraat, uma das principais artérias da cidade. Inaugurado em 1926, o edifício, também conhecido por “De Bazel”, nome do arquitecto responsável pela obra (J.J. Bazel, 1869-1923), foi originalmente construído para sede do Banco HandelsMaatschappij Nederland, que mudaria de local em finais do século passado. Depois de um período em que esteve encerrado, o edifício reabriu ao público em 2007, já nas funções actuais: as de arquivo da cidade desde a sua fundação, que inclui um departamento arqueológico, onde são registradas e catalogadas todas as descobertas posteriores. Trata-se de um edifício de 10 andares (dos quais 3 são subterrâneos), com mais de 40 kilómetros de documentação (muita dela totalmente digitalizada) com a história da cidade e a dos seus habitantes. Influenciado pelo estilo “De Stijl”, as linhas sóbrias e funcionais do edifício espantam pela sua solidez e bom gosto, onde todos os pormenores foram calculados. Dispõe ainda de um centro de documentação, sala de cinema e loja, para além de exposições permanentes e temporárias e a possibilidade de visitas guiadas ao arquivo, localizado na cave imensa com três pisos.
Dada a falta de tempo, deixámos para outra oportunidade a visita aos andares superiores (sala da direcção e de reuniões), tendo assistido à projecção do filme “Fotostudio Merkelbach”, uma selecção de “portraits” do realizador Kees Hin (que passou em 2012 por Lisboa, no Festival Cinema Bioscoop), dedicado à colecção Merkelbach, famoso fotógrafo de Amsterdão do século passado. Pelo seu estúdio, passaram nomes famosos da sociedade holandesa, como Mata Hari, Toon Hermans, Van Halst van Overtoom. entre outros. Todas fotos recuperadas, entre mais de 40 000 negativos salvos de uma cheia recente. Um espanto, o “De Bazel”, finalmente à disposição do grande público.
Chegados ao fim deste excitante dia, tempo para uma sandwiche de espadarte fumado com carpazzio e uma cerveja biológica “De blauwe Bijl”, fabricada artesanalmente numa “brouwerij” da zona Este de Amsterdão. A prova final que Deus existe...

2013/09/26

Mesmo em crise, Amsterdão é uma festa (2)

Overhoeks, 't IJ, Amsterdam-Noord, Amsterdam - Netherlands

De todas as obras recentemente levadas a cabo na cidade, duas sobressaem pelo seu arrojo arquitectónico e fins a que se destinam, respectivamente à música e ao cinema. Estamos a falar do “Muziekgebouw” (que inclui a mítica “Bimhuis”, verdadeira meca do jazz internacional) e do edifício futurista “Eye” (a cinemateca local, situada na margem norte da capital holandesa). Ambos têm uma programação de excelência, sendo visitados por milhares de melómanos e cinéfilos diariamente, o que atesta da sua programação e do poder de compra médio dos locais. Lá fomos, numa noite ventosa e com alguma chuva à mistura, assistir a uma sessão de free-jazz , uma das tradições da “Bimhuis” de velhas recordações. A alma de Chet Baker ainda deve andar por lá (o trompetista viveu e morreu em Amsterdão), pois o concerto a que assistimos tinha uma secção de sopros de primeira água. O programa tinha como título “Carte Blanche Oene van Geel”. Van Geel é um virtuoso violinista local que tinha como convidados The Nordians Extended (ensemble ad-hoc de Amsterdão-Norte), Theo Loevendie (uma velha lenda do clarinete e do sax) e a magnífica cantora Nora Fischer. De realçar, ainda, um convidado indiano nas “tablas” e um convidado escocês na flauta e na gaita de foles, que ofereceram duas horas de verdadeiro prazer, num mix de jazz e músicas do mundo, de grande qualidade musical. No final, tempo para percorrer a excelente loja da “Bim”, onde se podem encontrar exemplares únicos de “standards” do Jazz e da World Music, muitos deles em Vinyl. Até a Amália Rodrigues se podia lá comprar. A noite não terminaria sem provarmos algumas “Palm”, cerveja castanha, de beber e chorar por mais... Outra visita, que se tornou um “must”, desde a sua inauguração em 2012, foi à Cinemateca, situada na margem norte do IJ, o lago que divide a cidade em duas margens distintas. O nome “Eye”, assim se chama o novo edifício, é um trocadilho entre a palavra “olho”, em inglês, e a palavra IJ, que se pronuncia de igual modo. Para além das 4 salas de projecções em simultâneo (duas das quais dedicadas a estreias de filme de autor). a nova cinemateca dispõe de salas de exposições permanentes e de uma loja de “gadgets” cinematográficos, que são uma verdadeira tentação para qualquer cinéfilo. A exposição temporária era dedicada a Federico Fellini e estava anunciada por toda a cidade. Trata-se de um projecto original do “Eye”, aqui apresentado em premiére mundial, que ocupa toda a parte superior do edifício. Durante duas horas, passámos em revista a vida e os filmes do genial realizador italiano, apresentadas em painéis bi-lingues, estrategicamente colocados. Para além dos dados biográficos e das notas sobre os filmes, a colecção tinha a particularidade de mostrar os “storyboards” desenhados por Fellini, um ilustrador de reconhecidos méritos. Completavam a mostra, excertos de alguns dos seus principais filmes: “I Vitelloni”, “O Sheik Branco”, “La Dolce Vita”, “8 ½”, “Julieta dos Espíritos”, “I Clowns”, “Roma”, “Amarcord” e “Casanova”, projectados em écrans de grandes dimensões, como estivéssemos numa sala de cinema normal. Um verdadeiro “happening” cultural, que tivemos o privilégio de ver, num espaço que recomendamos a todos os futuros visitantes desta cidade cinematográfica.

2013/09/23

Mesmo em crise, Amsterdão é uma festa


Forçado, pelas circunstâncias, a deslocar-me a Amsterdão, aproveitei para tirar alguns dias de férias e fugir do calor abrasador que se fazia sentir em Portugal.
Acontece que o Outono já começou na Holanda e as temperaturas médias nesta época do ano (15º), acompanhadas de alguma chuva e vento, não foram as mais propícias para quem queria andar a pé pela cidade. Valeu a pena pela oferta cultural, agora que a nova temporada artística teve início e a cidade está mais vibrante do que nunca.
Das visitas incontornáveis, aconselho o renovado Rijksmuseum, a sala de visitas da cidade, reaberto após mais de 10 anos de obras, devido à ampliação do espaço e renovação da sua colecção permanente. Um espanto, o novo “Rijks”, agora com um “hall” de recepção envidraçado, no lugar das antigas caves do edifício, onde se entra através de uma escadaria ladeada por amplos balcões de atendimento e informações de toda a ordem. É neste espaço aberto que estão situadas as duas lojas do museu e a cafetaria, onde os clientes têm de esperar em fila por uma mesa vaga, tal a afluência de visitantes nestes primeiros meses.
Depois, é escolher por onde começar. O Museu tem três pisos acima do nível da rua e um abaixo, também designado por piso 0. Foi aqui que começámos, para ver as colecções especiais, dedicadas às louças, moda, armas e modelos de barcos, agora numa nova disposição dentro do museu. Também neste piso, uma assinalável colecção de pinturas e arte sacra (1100 e 1600), designada como “arte primitiva” pelos locais. Depois de uma boa hora de deslumbramento, tempo para subir ao 2º piso, dedicado ao período 1600-1700. É aqui que estão as obras que fizeram a reputação do Museu: “A Ronda da Noite”, e a “A Noiva Judia” de Rembrandt, ou “A Pequena Rua” e a “Rapariga do Leite” de Vermeer, mas também pinturas de contemporâneos como Steen e Hals. Um deslumbramento absoluto, que só a afluência desmesurada de turistas e respectivos guias, perturbou. Razão para parar e descer à livraria, onde a informação é abundante e multi-lingue. À saída, e porque chovia, tempo para parar numa feira russa de gastronomia, instalada em plena praça dos museus, e provar um pão casqueiro de peru fumado e uma “pancake” coberta de mel, acompanhada de chá original, servidos por uma simpática siberiana vestida com trajos da região. Que mais desejar?
Voltaríamos ao Museu, alguns dias mais tarde, agora para visitar os  pisos restantes que abrangem outros tantos períodos. O primeiro piso (1700-1800) dedicado ao romantismo, e ao impressionismo onde, entre outros, podem ser admirados trabalhos de Gabriel, Breitner, Van Gogh e Goya, para além de colecções representativas da escola de Amsterdão e de Haarlem e à época do iluminismo (William IV e V).
Finalmente, o último piso, dedicado ao século XX. Esta é uma colecção renovada, que está dividida por duas alas distintas: a ala Este (1900 a 1950) onde podem ser admirados magníficos exemplares das correntes “Art Nouveau” e “Stijl”, para além de obras de Rietveld, Mondriaan e um exemplar do primeiro avião fabricado pela Fokker. É nesta sala que é projectado o documentário “Philips Rádio” (1931) da autoria de Joris Ivens. E a ala Oeste (1950-2000) onde o sobressaem os trabalhos de Yves Saint-Laurent, Appel e Constandt, para além de obras dos mais famosos arquitectos e urbanistas holandeses. Também nesta sala, é projectado o documentário, “Deltaplan Phase 1”  de Bert Haanstra, que Lisboa viu recentemente integrado no Festival Cinema Bioscoop.
Era já tarde, quando saímos do Museu, não sem antes termos dado uma volta pelo jardim circundante, onde estão expostas esculturas de Henry Moore.
Uma festa para os olhos e para os sentidos, a provar que a grande arte ajuda a lavar a alma.  

2013/09/14

Quantos funcionários públicos, exactamente, temos a mais?

Quantos funcionários públicos há a mais em Portugal? 12, 129, 4327, 100 539? Digo-vos um segredo aqui ao ouvido: ninguém sabe. Em que estudos se baseiam aqueles que proclamam com ar, muitas vezes, convicto que "temos funcionários públicos a mais"? Adianto-vos, em primeira mão, um outro segredo: não há um único estudo fidedigno, sério, isento.
Por que razão volta então agora o assunto à baila?
Que a administração pública foi durante anos e anos uma forma que o país encontrou para "controlar" o problema do emprego e disfarçar a crónica ausência de programas sólidos de desenvolvimento da economia; que este expediente foi usado por todos os administradores públicos, de Salazar até Passos Coelho; que o Estado inventou funções sem qualquer espécie de justificação ou sustentabilidade para engrossar os quadros de funcionários públicos, disso não tenho a mínima dúvida. Que nenhum, nem um!, funcionário público entrou por uma repartição dentro, se sentou a uma secretária, começou a exercer funções por sua alta recreação e ingressou finalmente nos quadros, disso também não me resta qualquer dúvida. 
Por outro lado, sei que cabe ao Estado exercer a Justiça em sentido lato. Cabe ao conjunto da sociedade e, portanto, ao Estado como seu delegado executivo, produzir um conjunto de tarefas que, só assim executadas, poderão garantir Justiça e assegurar equilíbrio social. Se temos funcionários a mais a executá-las ou não, não sei. Mas, sei que é ao Estado que cabe executar certas tarefas porque elas não poderão nunca ser transformadas em negócio, porque não podemos ficar cativos da "iniciativa privada" se as queremos ver executadas e porque, se for a tal iniciaitiva privada a executá-las, o desígnio do lucro vai transformar a sua natureza e cavar desequilíbrios sociais. A sociedade humana caminha no sentido de um cada vez maior equilíbrio social. Contrariar isto é voltar à barbárie.
Agora que, a propósito do ataque em marcha contra os funcionários públicos, volta a conversa do "temos funcionários a mais," vou cismando se esta direita revanchista -que actua, de facto, como um banal bando de ladrões de estrada sempre que toma conta do poder em Portugal- pretende, como diz, tornar mais ágil e eficiente a função pública ou voltar à barbárie, cavando (mais) uma divisão artificial entre portugueses, pondo trabalhadores do sector público e privado em confronto e camuflando, assim, um ataque final às conquistas dos trabalhadores portugueses e a uma aproximação cada vez maior desta Justiça de que falo.
Quando ouço alguém que vive da remuneração do seu trabalho repetir a "verdade" nunca provada de que temos funcionários públicos a mais (versão do dia do "gastámos acima das nossas possibilidades") lembro-me de Maiakovski e daquele seu poema "E Não Sobrou Ninguém," rescrito por Brecht, Niemöller e outros. E apetece-me fazer a minha própria versão. 
Primeiro atacaram os pensionistas e aposentados, mas eu não liguei porque não sou nem uma coisa nem outra. Depois "requalificaram" os trabalhadores da função pública, mas eu não liguei porque trabalho na privada. Depois começaram a "requalificar" também trabalhadores do sector privado, mas como eu mantive o meu emprego não me coloquei, como devia, ao seu lado. Agora despediram-me a mim, mas já não sobra mais ninguém para me defender...

2013/09/08

Foi você quem pediu uma guerra?

Barack Obama, certamente o mais prematuro Nobel da história da Academia Sueca, prepara-se para um ataque punitivo e cirúrgico à Síria, como retaliação pelas vítimas das armas químicas, causadoras de milhares de mortos entre a população civil. Não sabemos se as armas, proibidas pelas convenções internacionais, terão sido usadas pelo regime de Assad ou pelos rebeldes que o combatem, uma vez que os peritos da ONU, enviados para o terreno, ainda não divulgaram as conclusões da investigação em curso.
Também não parece haver grande apoio da parte da população americana, que é maioritariamente contra e, muito menos da Europa, que continua dividida sobre esta questão. O governo inglês, tradicionalmente o maior aliado das aventuras americanas no Médio-Oriente, viu a sua proposta ser chumbada pelo parlamento daquele país e, na Alemanha,  Merkel, certamente mais preocupada com as eleições, adiou a decisão para quando houver um mandato claro das Nações Unidas. Só Hollande parece, neste momento, apoiar inequivocamente Obama, mas também tem a população francesa contra.
Na recente cimeira do G20 em S. Petersburgo, o presidente americano tentou mais um “tour de force” junto de Putin, mas a Rússia, tradicional aliada da Síria, não lhe fez a vontade e pediu provas inequívocas sobre o uso das armas pelo governo de Assad, coisa que os EUA não têm...Vem agora a Sra. Ashford, uma espécie de ministra dos negócios-estrangeiros da UE, declarar que há um acordo de princípio assinado por 11 países europeus, no sentido de  apoiar a decisão de Obama em bombardear a Síria.
Entretanto, em Washington, o Nobel da Paz não desiste da sua ideia pacificadora e reiterou a vontade de ir para a guerra, mesmo que de forma unilateral, agora apoiado numa decisão positiva (que carece de ser rectificada) do Congresso.
Ou seja: queira a ONU ou não, queiram os principais aliados dos EUA ou não, queiram a maioria dos países da UE ou não, queiram as próprias populações da região ou não, nada parece demover o governo americano de levar por diante esta ideia fixa: punir o governo sírio  de forma exemplar. Não será uma guerra convencional, no sentido em que não haverá soldados americanos no terreno, mas haverá bombardeamentos cirúrgicos durante um tempo limitado, que pode ir de 2 a 3 meses. Acho sempre fantásticas estas previsões dos altos militares do Pentágono, que sabem como as guerras devem começar, mas nunca pensaram como estas podem acabar. Logo se verá, deve ser o espírito da coisa...
Pensava que os americanos tinham aprendido algo com as recentes fiascos no Iraque e no Afeganistão, mas, pelos vistos, “the smell of napalm in the morning” é mais forte do que a realidade. Como dizia alguém por estes dias, em Damasco, “o presidente Obama subiu a uma árvore e não sabe como descer dela”. É uma boa imagem.
De lamentar apenas que estas almas, sempre tão caridosas e pacíficas, não se tenham lembrado das armas químicas que foram usadas pelos mais diferentes regimes, a começar pelos americanos no Vietnam, por Sadam Hussein (então apoiado pelos EUA) na guerra contra o Irão ou, mais recentemente, na faixa de Gaza, por Israel, num ataque com bombas de fósforo. Onde estava o Nobel da Paz, nessas ocasiões? 

2013/09/04

Cinema Bioscoop: 5 a 8 de Setembro em Lisboa




Decorre esta semana, em Lisboa, a 2ª edição do Festival Cinema Bioscoop, uma pequena Mostra do que melhor e mais actual se produz em matéria cinematográfica em países de língua neerlandesa.
Depois do sucesso da primeira edição, onde foram exibidos filmes da Holanda, Bélgica e Suriname, o Festival volta a animar as tardes e noites lisboetas, com sessões diárias no cinema S. Jorge e na Cinemateca de Lisboa.
Destaque para o ciclo da “água”, tema central do festival deste ano, com obras dos conceituados documentaristas Joris Ivens e Bert Haanstra, dos quais veremos alguns dos seus mais celebrados filmes.
Na secção de longas-metragens, serão exibidos entre outros, “De Hel van ‘63” de Steven de Jong, “Taartman” de Annemarie van de Mond  e “Confituur” de Lieven DeBrauwer  (presente em 2012 com “Pauline en Paulette”).
Confirmado, está igualmente o filme “ De tweeling” (As gémeas), de Ben Sonbogaert, baseado no romance do mesmo título, da autoria da escritora holandesa Tessa de Loo, que estará presente no debate após o filme.
O Festival terá início esta quinta-feira, dia 5, no cinema S. Jorge, com a exibição do filme “Iedereen Beroemd!” (Todos famosos!) do belga Dominique Deruddere.
Para mais informações sobre locais, horários e bilhetes das sessões, deve ser consultado o “site” do festival em: www.cinemabioscoop.com. 

2013/08/30

Um país a ferro e fogo

Foto DR
No Verão de 1979 passei três meses numa aldeia do concelho de Montalegre (Trás-os-Montes), local escolhido para “trabalho de campo” no âmbito de uma licenciatura em Antropologia.
O objecto de estudo (baldios e práticas comunitárias na região do Barroso) tinha sido definido em função da tradição enraizada entre as populações locais e que, à época, já se encontrava em vias de extinção: a utilização comunitária das terras de pastorícia, prática essencial para a manutenção dos rebanhos e para a economia de sobrevivência dos habitantes da região. 
Foi uma experiência enriquecedora, tanto do ponto de vista humano, como do conhecimento geográfico da região e do Portugal profundo, numa altura em que o refluxo dos anos loucos do PREC ainda se fazia sentir e as “vendettas” eram prática comum nas zonas rurais do pais.
Lembro-me de ter sido apresentado ao responsável dos serviços florestais do distrito, um engenheiro agrónomo, cujo local de trabalho era numa ampla vivenda, onde também residia. Disse-lhe ao que vinha, mostrei-lhe a carta (escrita em inglês) onde o orientador de tese pedia apoio para a minha investigação e o homem, depois de a ler, logo ali pôs os arquivos do centro à minha disposição. Durante dias a fio, passei largas horas naquele arquivo, lendo relatórios  e comparando dados sobre as terras incultas e o uso comum dos baldios e da floresta à guarda do estado, sobre os quais os últimos dados existentes eram do censo de 1970. Todas as semanas havia fumo no horizonte e eu sabia que algures, nas serras circundantes, a floresta estava a arder. Falávamos muito de fogos e, um dia, após ter recebido uma mensagem de alerta, virou-se para mim e perguntou-me: “Quer ver um fogo de perto? Venha comigo, pois vai assistir a um”.
Lá fomos no jipe da guarda florestal e após largos minutos por montes e vales chegámos a uma distância relativamente perto da ocorrência. Aguardava-nos um cenário dantesco: labaredas gigantes que ora avançavam, ora recuavam, mudando de direcção, fagulhas lançadas pelo vento que alimentavam a combustão, uma cortina de fumo negro que impedia a visão a uma dezena de metros e um calor abrasador que não nos permitia respirar. Fiquei, literalmente, siderado. Rapidamente, demos meia-volta, deixando para trás uma corporação de bombeiros que procuravam limitar os estragos. Perguntei-lhe se pensava que os fogos podiam ter uma origem criminosa... ”Nunca vi nenhum fogo espontâneo. Você já viu?”, foi a sua resposta.
Continuei o trabalho e, nas fichas consultadas, confirmei a opinião do técnico. Mais de metade das ocorrências estava marcada com a menção “fogo posto” ou “negligência”; enquanto os restantes casos apontavam como “origem desconhecida” a causa improvável dos incêndios.
Passados alguns dias, estava eu em Montalegre, ouviu-se uma explosão que fez estremecer toda a vila. Uma coluna de fumo negro elevava-se por cima da residência do técnico florestal. A notícia rapidamente se espalhou: uma bomba artesanal tinha deflagrado na casa do homem e este tinha morrido. No funeral, dizia-se à boca calada que ele tinha posto fim à vida. Várias versões sobre a sua morte, correram naquele Verão, entre as quais a de que ele teria dados comprometedores nos seus arquivos.  O caso caiu no esquecimento e provavelmente nunca se saberá a verdadeira razão de tão estranho acidente. Nunca me esqueci deste episódio e lembro-me sempre dele quando chega o Verão e vejo Portugal a arder.
Passaram mais de 30 anos e, ciclicamente, todos os Verões, os fogos em Portugal regressam, se possível com maior violência e mais vítimas humanas a lamentar. Se durante a ditadura os fogos eram, normalmente, associados a agricultores ou pastores, a quem eram atribuídas as “queimadas” para limparem o mato circundante; depois de 1974, as razões invocadas tem sido as mais díspares: desde pirómanos, a motivos políticos, motivos pessoais (vendettas), lobby da celulose, interesses mobiliários, empresas de material de combate aos fogos, falta de limpeza das matas e, claro, a inevitável imprevidência. Todas razões plausíveis, mas que não podem servir de argumento para continuar esta situação insustentável. 
Uma coisa é certa: nenhuma razão poderá ser invocada sem haver uma mudança radical de mentalidades (dos governantes, dos responsáveis e das populações interessadas), única forma de parar este verdadeiro flagelo nacional, contra o qual parece não haver antídoto.
É tempo de haver uma mobilização nacional à volta de uma riqueza tão importante como a floresta, para não falar das vidas humanas (de bombeiros e não só) que todos os anos são notícia nos telejornais. O diagnóstico, sobre as razões dos fogos, está feito e não são necessários mais programas “Prós e Contras” para um debate sobre o tema.
Mais do que os meios – que toda a gente diz serem suficientes – é necessário mais e melhor prevenção e não se percebe porque todos os anos falhamos. Haja vergonha!

2013/08/23

A Cinemateca não pode fechar!



Nem no tempo da ditadura, a Cinemateca fechou. É verdade que o seu director à época (Luís de Pina), assim como parte significativa dos seus colaboradores (António Lopes Ribeiro, por exemplo) eram declarados apoiantes do Estado Novo, para não dizer fascistas assumidos, o que facilitava a colaboração.
No entanto, isso não impediu que a Cinemateca Portuguesa fosse uma instituição considerada e respeitada no estrangeiro, com um espólio onde já havia clássicos como “Potemkin”, “A Mãe”, “Outubro” (e tantos outros filmes vedados ao espectador comum), que podíamos ver nas suas salas. Após o 25 de Abril, a “casa” passou por várias remodelações e direcções, das quais, a mais longa e significativa, seria a de Bénard da Costa. Com todas as suas vicissitudes e constrangimentos (nomeadamente orçamentais) a Cinemateca sempre cumpriu os pressupostos de qualquer cinemateca: guardar e mostrar o espólio dos filmes à sua guarda.
Com a passagem da Cinemateca a Museu de Cinema, e implícita inclusão da instituição na rede dos museus nacionais tutelados pelo estado, maior se tornou a responsabilidade deste em relação à missão principal de um Museu.
Não se percebe, por exemplo, que as receitas da Cinemateca dependam de uma percentagem de 4% de publicidade nos cinemas (ver entrevista da directora no “Público” de quarta-feira), quando se sabe à partida que os cinemas tendem a fechar e as receitas a diminuir. Logo, o Estado, através do respectivo orçamento, deve providenciar no sentido de criar um subsídio estrutural que garanta o seu funcionamento. É assim em todos os países desenvolvidos e deve ser assim em Portugal.
Um pais que não cuida da sua memória (seja ela cinematográfica ou outra) não tem futuro.