2023/06/17

Celebrando José Afonso (De Ouvido e Coração)

"A primeira vez que nos lembramos de ter escutado "De Ouvido e Coração" - concerto interpretado e comentado por Amílcar Vasques-Dias - terá sido nas instalações da "Fábrica Braço de Prata", espaço de inovação e experimentalismo lisboeta, já lá vão uns bons anos.

Revimo-lo muitas vezes, em lugares tão improváveis como a "Sala de Espelhos" do Palácio Foz em Lisboa, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal, na Livraria "Ler Devagar" em Alcântara, no Festival Badasom em Badajoz, no Convento dos Remédios em Évora, no Coliseu de Lisboa, na Amstelkerk em Amsterdão, na Holanda (país onde o projecto teve início), na Praça do Giraldo em Évora e, mais recentemente (2022), na "Casa Verdades de Faria" no Estoril. 

Da primeira audição guardamos a memória de um concerto íntimo, numa sala forrada a madeira e livros e de dois músicos de excepção: o Amílcar Vasques-Dias, compositor e pianista que conheci na Holanda e o violinista Luís Pacheco Cunha, parceiro de sempre neste projecto. 

A surpresa e o entusiasmo foram tais que, nessa mesma noite, concordámos em apresentar o concerto numa sessão pública em Setúbal, o que viria a acontecer no Dia Mundial da Música, no Salão Nobre da Câmara Municipal. Um acontecimento, desta vez presenciado por dezenas de amigos do Zeca, quiçá pouco habituados a adaptações clássicas e contemporâneas da obra do cantor, desde sempre mais identificado com a música popular portuguesa. 

O sucesso foi imediato, pelo que repetir o concerto em Lisboa seria uma questão de meses. Dessa vez, numa parceria com a Livraria "Ler Devagar", em sala esgotada para o efeito. Outros concertos se seguiriam, dentro e fora do país, entre os quais deve ser realçado o do Coliseu de Lisboa, dado o simbolismo da data evocativa dos 40 anos da passagem do Zeca por aquela sala. 

Entretanto, o concerto "cresceu" em duração e em execução musical, agora mais coeso e ágil, acrescido da expressividade da "cantaora" Esther Merino, uma revelação para todos nós. Com este trio, estivemos na Holanda, em sessão organizada pela agência local "Q.Art", numa igreja de Amsterdão (Amstelkerk), onde o êxito não seria menor. De volta ao país de origem, o projecto foi enriquecido com a voz da cantora lírica Natasa Sibalic e, pontualmente, com intérpretes do "cante" alentejano. 

Ver e ouvir "De Ouvido e Coração" hoje, continua a ser uma experiência única, porque irrepetível na sua riqueza harmónica e melódica, só ao alcance de intérpretes de excepção. A recriação da grande música de José Afonso conhece, desta forma, a dimensão que sempre lhe esteve subjacente e à qual não tínhamos tido, até agora, acesso. Entre música erudita, canto lírico, jazz e flamenco, o concerto reinventa os grandes temas de Afonso, mantendo-se fiel à matriz original. Temas como "A mulher da Erva", "Que amor não me engana" ou "Cantar Alentejano" (Catarina Eufémia), para citar alguns exemplos, constituem verdadeiras pérolas de um acervo inesgotável. 

Faltava a edição discográfica. Esta foi sendo burilada, em momentos únicos, ao longo de uma década, até à versão final. Agora, com os convidados especiais, Ricardo Ribeiro e Carlos Guilherme, que se associaram ao projecto original. Para que todos os que conhecem a música de José Afonso e o concerto "De Ouvido e Coração" possam desfrutar desta simbiose única: a de uma grande música interpretada por grandes músicos. O resultado está aí, nesta gravação que arriscamos em apelidar de histórica. Regozijemo-nos, pois".*

* (texto original, incluído no livrete do CD).