2022/01/29

Reflexões

(Marcelo Rebelo de Sousa fotografado por Alfredo Cunha)


Terminaram as campanhas partidárias. 

Ao longo do último mês, os portugueses tiveram oportunidade de escutar, ao vivo e a cores, debates televisivos e radiofónicos, campanhas de rua por todo o país e opiniões diárias, de analistas e tudólogos, para todos os gostos. Ninguém pode queixar-se de não ter sido informado ou de ter faltado informação, ainda que esta nem sempre tenha primado pela isenção exigida. 

Houve de tudo, desde ataques "ad hominem", a discursos abertamente xenófobos, passando pela mudança de tácticas a meio do percurso, sempre que as sondagens não correspondiam ao efeito desejado. Assistimos às mais desencontradas opiniões e críticas do homem da rua que, não raramente, se indignava pela crise desencadeada com a reprovação do Orçamento e apelava à unidade de esforços conjuntos para evitar o regresso de uma direita de má memória, desta vez acompanhada por um partido populista, abertamente racista. 

Os partidos de esquerda, que até há pouco pareciam defender causas comuns, levaram as suas contradições para o debate público e não se coibiram de criticar-se mutuamente pela situação existente. Só nos últimos dias da campanha, parece ter havido uma inflexão nas suas posições, muito por causa das sondagens que apontavam para um despique cerrado entre os dois maiores partidos e respectivos blocos à sua esquerda e à sua direita. 

Chegados aqui e de acordo com as três últimas sondagens publicadas pela Universidade Católica/RTP/Público, ISCTE/Expresso/SIC e TVI/CNN/Pitagórica, parece que todas elas (sem excepção) apontam para uma vitória escassa do PS (2 a 3%), assim como para uma provável maioria parlamentar de esquerda (5 a 10 deputados). Há, no entanto, a ressalvar que as projecções, se situam dentro da margem de erro e não têm em conta a possível abstenção (derivada do confinamento provocado pelo COVID) o que poderá alterar os dados. Tudo em aberto, portanto...

Não vale a pena os parceiros da "geringonça" continuarem a incriminar-se mutuamente. Não há inocentes nesta história. Só houve uma "geringonça" (2015-2019) e esta só existiu porque, paradoxalmente, Cavaco Silva o exigiu, através de uma acordo escrito. Aparentemente, a fórmula resultou, pelo menos aos olhos da opinião pública. Se não resultou em 2019, isso deveu-se ao PS, que não quis governar sozinho com o BE (o PCP já se tinha afastado e não queria mais acordos escritos). A partir desse momento, cada partido foi à sua vida, até porque representam três visões/modelos diferentes de sociedade e a unidade, então encontrada, foi circunstancial (e de interesse mútuo) para afastar a direita do poder.  Esse ciclo acabou e dificilmente voltará.

O que provavelmente voltará, será o "bloco central de interesses" apadrinhado por Marcelo Rebelo de Sousa, o homem da "governabilidade", que nunca escondeu a sua agenda e não descansará enquanto não houver um acordo ao centro entre os dois maiores partidos. Vem aí muito dinheiro (cerca de 60.000 milhões de euros até ao fim da década) e os dois partidos do poder (70% dos votos) necessitam de alimentar as suas clientelas habituais (corporações diversas, maçonarias e quejandos) e não querem perder esta oportunidade. 

Por isso, parece-nos que nada de essencial irá mudar, já que não se trata apenas de políticas partidárias, mas de uma cultura de clientelismo e patrocinato, enraizada na sociedade portuguesa. Não perceber estas coisas simples, pode ser fatal. Como diria o conhecido assessor de Bill Clinton: "É a economia, estúpido!". 

2022/01/26

Córdoba ou o apogeu do Al Andalus (2)

 

Dizem os guias turísticos, que a melhor forma de entrar na cidade de Córdoba é pela margem esquerda do Guadalquivir, atravessando a Puente de San Rafael. Para quem vem de Sul, pela auto-estrada A4, essa foi uma escolha natural. De facto, a perspectiva da cidade, antes de atravessar a ponte, é determinante para ter uma ideia global do perímetro urbano, do casario que envolve o centro histórico e, no meio de tudo, os telhados da mesquita, encimados pela torre da catedral no centro. Um "bilhete postal" que dispensa apresentações. 

O mais difícil nestas coisas é sempre arranjar lugar para o carro, num centro histórico pejado de turistas, limitado na sua circulação e onde os "parkings", para além de caros, estão normalmente cheios. Depois de muito circular sem sucesso (a circulação faz-se num só sentido) foi necessário atravessar a Puente de Miraflores, em sentido contrário, para encontrar um lugar junto ao projectado Centro de Congressos. Até ao primeiro monumento da cidade, a Torre de La Calahorra, são cinco minutos. A Torre, um antigo forte construído pelos árabes, é hoje um dos "ex-libris" da cidade e alberga, para além da Fundação Roger Garaudy, o "Museu das Três Culturas" (Islâmica, Judaica e Cristã). A partir daí, a melhor forma de voltar ao casco histórico da cidade, é atravessar a Puente Romano, cujo tabuleiro e (parte dos) arcos que a suportam, datam da época romana. Depois, é sempre a subir, até à Mesquita-Catedral, o mais emblemático monumento da cidade.   

Visitar a Mesquita de Córdoba constitui, por si só, uma experiência inolvidável. Nas palavras de um guia local: "poderia descrever-se como o encontro com um Mundo já perdido, onde a sensualidade e a geometria constituía a porta preferencial de acesso ao sobrenatural". Consta que o rei Fernando III de Espanha, quando conquistou a cidade em 1236, não escondeu o seu assombro pelas dimensões do edifício. De tal modo, que deu ordem para preservar a mesquita e para construir um templo cristão embutido, no seu interior, de modo a sublinhar a convivência que durante séculos existiu entre as duas religiões da cidade. A primeira coisa que espanta, é a extraordinária dimensão da sua planta. Vista do lado oposto (Torre de Calahorra) a Mesquita parece um gigantesco mausoléu, dentro do qual estão escondidos séculos de História. Se pensarmos que à época do califado, Córdoba era a maior cidade europeia com cerca de 1 milhão de habitantes, podemos imaginar as multidões que acudiam à chamada do "muezzin".

No interior do edifício, encontramos um imenso mar de centenas e centenas de colunas, todas diferentes, que saem do solo, sem base a sustentá-las, para formarem onze naves paralelas com mais de 100 metros de comprimento. Dos seus capitéis, surge uma sucessão interminável de arcos em forma de  ferradura, sobrepostos até três níveis, que ascendem aos tectos (embutidos a madeira), como uma metafísica palmeira. No centro do edifício, surge a zona da Catedral, que os cristãos levantaram no século XV. Curiosamente, não existe qualquer barreira a separar os dois templos (incrustados um no outro) pelo que os visitantes, podem atravessar todo o edifício e escolherem o lugar preferido. À saída, tempo ainda para percorrer e admirar o famoso Pátio das Laranjas, outro lugar mágico, onde o cheiro das laranjeiras carregadas, cercadas pelo murmúrio da água corrente das fontes, completaram um dia perfeito.

Ainda que o centro histórico de Córdoba, seja relativamente pequeno, a quantidade de locais interessantes é assinalável. Destacamos os que pudemos visitar, já que o tempo era escasso. Desde logo, a Judiaria, a norte do perímetro histórico. Um intrincado labirinto de ruas e ruelas, extremamente bem conservadas, no centro da qual existe a única Sinagoga de Andaluzia. O antigo bairro judeu é hoje um dos pontos mais fervilhantes da cidade, com centenas de pequenos comércios e aprazíveis pátios exteriores, onde ao fim da tarde se juntam os locais e os turistas, em permanentes deambulações. Outro dos percursos obrigatórios, são os famosos "pátios", que podem ser visitados em Maio, durante o festival que atrai à cidade milhares de forasteiros. O evento, já foi reconhecido pela UNESCO, como Património Imaterial. Também o "souk" (bazar árabe) pode ser visitado, apesar de dimensões reduzidas, quando comparado com o de Granada, bastante maior. A não perder mesmo, são os "salmorejos" locais (um creme frio, da família do gaspacho, confeccionado com pão, azeite, tomate, alho, ovo cozido e presunto) considerados os melhores de Andaluzia. Depois de repetidas provas, só posso estar de acordo com a sua reputação. 

A percorrer também, é a Calle Cardenal González, uma animada rua onde estão situados os banhos árabes (hammans) diariamente frequentados por jovens locais e turistas, embrulhados nas suas toalhas turcas. Seguindo a rua, desembocamos na Plaza del Potro, lugar mítico da cidade, referido por Cervantes no romance "D. Quixote de La Mancha". Nesta praça, estão situados o Museu de Belas Artes e o Casa-Museu Julio Romero de Torres (1874-1930), notável pintor de Córdoba, famoso pelos retratos a óleo de mulheres andaluzas. Ainda na mesma praça, existe um dos poucos currais medievais existentes, este recuperado e restaurado. Numa das dependências do curral, funciona o Centro de Flamenco El Fosforito, famoso cantor flamenco do século passado (originário da cidade e vencedor e.o. da Chave de Ouro, um dos mais altos galardões da Arte Flamenca). Córdoba é, de resto, uma das cidades de grande tradição flamenca. Ali, existiram alguns dos mais famosos "Cafes Cantantes" da Andaluzia onde, em 1871, actuou o lendário Silverio Franconetti, um ícone da arte. Outros nomes famosos da actualidade, são os cantores El Pele e Juan Serrano, para além dos guitarristas Vicente Amigo e Paco Peña, todos oriundos da cidade. 

Por fim, a jóia da coroa do Al Andalus: a Medina Azahara (Madinat Al-Zahra). À semelhança dos califas orientais, Abderramão III fundou em finais do século IX, a 8km de Córdoba, uma cidade de excelência, como prova do poder político e económico do Califado Cordobés. Considerada a Versailles da Idade Média, chamaram-lhe a "Cidade Resplandecente" e ainda hoje deslumbra. A sua construção durou 25 anos e seria finalizada pelo filho do Califa. Foi fundada em 941, mas teve uma existência curta, já que em 1010 foi completamente arrasada pelas tropas berberes, que desafiaram o Califado, após o que a cidade seria parcialmente destruída e abandonada durante mil anos. No seu apogeu, chegou a ter 25.000 habitantes. São cerca de 1500m de comprimento por 750 metros de largo. Quase 112 hectares de superfície, dos quais somente 10% foram, até à data, postos a descoberto e recuperados, num dos mais belos museus ao ar livre da península. Desta vasta superfície, só é autorizado visitar a zona Norte da Medina, onde estava situado o palácio de Abderramão III e as moradias nobres da cidade. Os jardins, considerados os maiores e os mais belos de todo Al Andalus, podem ser vistos dos diversos miradouros, instalados na parte alta, mas devido aos trabalhos de arqueologia (que se iniciaram em 1911) e à pandemia vigente, estavam encerrados. 

Tudo isto e muito mais, a ver e repetir, pois a beleza não tem preço, nem limites. 

2022/01/25

Córdoba ou o apogeu do Al Andalus


A viagem estava prometida há anos. Aproveitando o interregno natalício, a escolha recaiu em Córdoba, uma das cidades míticas de Andaluzia. Três curtos dias não seriam suficientes para ver tudo, mas deu para aguçar o apetite e voltar na semana seguinte, tal o impacto da primeira visita.

Antes, porém, um pouco de História:

Córdoba (ou a "cidade do rio") foi fundada em 169 a.C. pelo general romano Claudio Marcelo que, numa colina do Guadalquivir, criou o primeiro assentamento militar da zona. Este pequeno núcleo populacional, daria origem à fundação da cidade romana de Corduba. Pouco a pouco, Corduba extendeu os seus limites e prosperou como cidade. Até que, em 45 a.C., a guerra civil entre César e os filhos de Pompeu, obrigou a cidade a escolher um dos lados. O apoio de Corduba aos pompeianos (e posterior derrota destes) provocou uma terrível represália que acabaria com a vida de 22.000 habitantes. 

Em pouco mais de vinte anos, Corduba recuperou o seu papel relevante. No ano 27 a.C. o imperador Augusto nomeou Corduba, a capital da Bética, importante província romana em Hispânia. Nos anos seguintes a cidade viveu uma época de esplendor a tornou-se uma das cidades mais importantes do império romano e da Europa. Nessa época, Corduba protagonizou um autêntico renascer urbanístico. Foram construídos grandes monumentos, o forum, o circo, o teatro, o templo romano, uma grande muralha que cercava toda a cidade e a ponte romana que conduzia a Roma, através da via Augusta. Alguns destes monumentos subsistem e podem ser visitados. Paralelamente, a cidade viveu um renascimento cultural, graças a filósofos como Sèneca e a poetas como Lucano, ambos oriundos de Corduba. 

Em meados do século XV, Corduba perde o estatuto de capital e sofre diversas revoltas que marcam o seu imparável declínio. No ano 572, os Visigodos conquistaram Corduba, dando início a quase dois séculos de domínio da cidade. Durante esse período, os judeus, que haviam gozado de liberdade de culto com os romanos, foram perseguidos e obrigados a abandonar a religião. Este facto, provocou o futuro apoio do povo hebreu às tropas muçulmanas, que invadiram a cidade em princípios do século VIII.

No ano 711, as tropas berberes do Norte de África, cruzam o estreito de Gibraltar e iniciam a invasão da Península Ibérica. Sete anos mais tarde, todo esse novo território (denominado Al Andalus) tornou-se uma província dependente do Califado de Omíada. Durante 20 anos, o exército berbere avançou até ao Norte, até ser derrotado em Tours (França). Esta batalha marcou o início do retrocesso muçulmano, o que viria a provocar conflitos internos entre berberes e árabes. 

No meio do caos, Abderramão l, o único sobrevivente do massacre da dinastia Omíada na Síria, fugiu de Damasco e fundou o primeiro emirado de Córdoba em 756. Desta forma, Córdoba tornou-se a capital do Al Andalus a ser independente do Califado, embora mantendo os laços religiosos. Nos 170 anos que se seguiram, sete emirados sucederam a Abderramão I. Durante esse período, a cidade viveu importantes transformações, urbanas e culturais: o bairro judeu, conhecido como Judiaria, ampliou-se e as suas ruas seguiram o traçado típico da arquitectura muçulmana, dando lugar a um labirinto de ruas e becos estreitos. Prosseguindo a ideia do "jardim do paraíso", os pátios das casas encheram-se de fontes e flores aromáticas. Esse novo modelo de residência foi mantido até aos dias de hoje, dando lugar aos famosos "pátios" de Córdoba. Também foram construídas mesquitas e banhos árabes (hammans) na capital assim como o templo mais importante do Al Andalus, a Mesquita de Córdoba. 

O oitavo emir de Córdoba, Abderramão III, rompeu definitivamente os vínculos religiosos com Bagdad no ano 929 e auto-proclamou-se Califa de Córdoba. Sob o seu mandato a cidade viveu uma época de esplendor sem procedentes e chegou a ser o principal centro cultural do Ocidente. Com quase 1 milhão de habitantes, Córdoba simbolizou a convivência de judeus, cristãos e muçulmanos. Em todo esse tempo, a cidade califal tornou-se um ponto de encontro de célebres cientistas, filósofos, astrónomos e matemáticos. Além disso, foram feitas importantes obras públicas, como o pavimento de ruas, esgotos e iluminação nocturna. Mas, sem dúvida, a obra mais importante da Córdoba califal, foi a construção, em 936, da Medina Azahara, uma cidadela vizinha a Córdoba. Abderramão III transladou o governo e a corte da cidade palatina e passou a gerir do seu palácio o funcionamento do califado, onde recebia os líderes internacionais e a conciliar as relações entre berberes, cristãos e judeus.

O seu sucessor no trono, foi Ad-Hakam II, que por sua vez deixou o trono ao filho Hisham II de apenas 11 anos. A sua inexperiência possibilitou a ascensão do fidalgo Almançor que ganhou cada vez mais protagonismo e poderio militar. Os constantes ataques de Almançor aos reis cristãos, fizeram com que se estes se unissem e desencadeassem um levantamento, que colocou fim ao Califado de Córdoba em 1031. Os berberes saquearam e incendiaram Medina Zahara e a comunidade muçulmana de Córdoba dividiu-se em pequenos reinos de Taifas. Depois da dissolução do Califado de Córdoba, a capital ficou dividida em 39 reinos de Taifas, o que fez com que o poder ficasse descentralizado. No século XII, o Império Almoada chegou à Península Ibérica e unificou todos esses reinos. Estes seriam, finalmente, dissolvidos pelos cristãos, dando lugar ao terceiro reino de Taifas. Finalmente, as tropas cristãs de Fernando III entraram em Córdoba e conquistaram este território em 1236. Embora a cidade tenha mantido a sua essência árabe, os muçulmanos foram expulsos, a Medina passou a ser uma vila medieval e foram construídas diversas igrejas cristãs. Córdoba iniciava, assim, a sua época cristã.

No século XV, os reis católicos instalaram-se em Córdoba, para dirigir da cidade a reconquista de Granada e, nessa altura, a cidade recuperou parte do seu esplendor. Em 1486, Isabel e Fernando receberam o marinheiro genovês Cristovão Colombo, no Alcácer dos reis cristãos, para escutar a sua inovadora rota rumo à Índia. A cristianização de Córdoba chegou em 1482, quando os reis católicos expulsaram os judeus e muçulmanos da Península Ibérica. Como consequência, em 1523, Carlos I autorizou a construção de uma catedral no interior da Mesquita. Nos anos seguintes foram também construídas as Cavalariças Reais, a Porta del Potro e a Plaza de La Corredera, lugares incontornáveis em qualquer visita. Córdoba teria, ainda, um papel de protagonista em 1808, quando as tropas do general Castaños venceram o exército francês na batalha de Bailén, naquela que foi a primeira derrota de Napoleão.

Desde meados do século XX que a cidade vive um renascimento económico e cultural que originou um crescimento considerável da sua população. Córdoba conta hoje com mais de 325.000 habitantes (a terceira maior cidade da Andaluzia). A UNESCO, declarou Córdoba Património da Humanidade em 1984. Recentemente, em 2008, o conjunto arqueológico da Medina Azahara foi declarado Património Mundial. 

(continua)