2019/02/15

Taxi Driver (16)

Foto blogue Segirei

Boa tarde
- Boa tarde, então para onde é que vamos hoje?
Hoje vamos para a Rua de São Bento, ali ao pé do Parlamento...
- Estava mesmo a dizer aos meus colegas, que nunca sei para onde levo o senhor...
Pois, é sinal que tenho poucas rotinas...
- Vamos aqui pelo Monsanto?
Parece-me melhor. É sempre mais rápido...
- Isto, hoje, está a anunciar chuva. Será da depressão dos Açores?
É bem possível...há por lá muitas depressões...
- Pois há. Começam sempre lá e, depois, vêm para o continente.
Deixe lá, o Inverno está quase a terminar. Mais duas ou três semanas e já temos bom tempo outra vez.
- Vamos lá ver se este é um bom ano de colheitas. Tenho umas batatas para apanhar e tenho de ir à terra ver como estão e limpar a mata...
Ora bem, nada como prevenir. Para evitar os fogos e não só...
- Já viu como está bonito o Monsanto? Tudo verde. E as árvores que eles plantaram aqui? Há de tudo, pinho bravo, pinho manso, sobreiros, carvalhos, oliveiras, até juncos e palmeiras...
Sim, sim. Um projecto visionário. Do Duarte Pacheco, que foi ministro de obras públicas no regime de Salazar. Tem uma estátua à entrada do viaduto.
- Eu sei. Eu ainda não era nascido, mas isto aqui eram só quintas e eiras e foi tudo expropriado. Lisboa era uma cidade de provincia, nessa altura. Agora, não se pode cá viver e os campos estão desertos.
Estão desertos, porque as populações emigraram para o litoral e para a Europa...
- Claro. Se não tinham dinheiro para comer! O meu pai, que tinha uma pequena leira, onde semeava as coisas que comíamos, contava-nos que nos anos trinta e quarenta, passavam uma fome de rato. Quando havia seca, como em 45 e 46, nem batatas que chegassem, havia! Iam lá os capatazes, buscar os homens para trabalharem à jorna e, depois de dois ou três dias de trabalho, só levavam os mais fortes e deixavam os outros à míngua...
Por isso é que as pessoas fugiram: para as cidades primeiro e, mais tarde, para França e outros países da Europa. Nas aldeias ficaram só os idosos, as mulheres e as poucas crianças que não iam com as famílias. Com a guerra colonial, foram-se embora os jovens em idade de trabalhar e, a partir daí, nunca mais houve repovoamento do interior. Um drama social e demográfico, que ainda hoje continuamos a pagar...
- Pois foi. E ainda há quem diga bem do Salazar! Tenho colegas meus que dizem que no tempo dele havia comida com fartura...Eu lembro-me bem da GNR ir à nossa aldeia, ver se os homens estavam todos lá a trabalhar, não fossem fugir alguns...
Não deve ter servido de muito, pois só nos anos sessenta e setenta, saíram mais de 1 milhão e meio de portugueses, dos quais 200.000 eram jovens que não quiseram fazer a guerra...
- Eu não sei quantos foram, mas sei que todas as semanas partiam homens. Um deles, meu vizinho, até comprou umas botas de couro com solas de borracha para andar e, quando chegou a França, ia com a sola das botas todas rotas. Tanto tinha andado!
Há muitas histórias dessas. Muitas nunca foram contadas, mas todos conhecemos os dramas da emigração. Por um lado, não interessava ao Salazar que os portugueses emigrassem, mas por outro interessava-lhe receber as remessas dos emigrantes, para compensar o dinheiro que gastava com a guerra. Não se esqueça que 40% do orçamento nacional ia para a guerra colonial!
- Sim, sim. E havia muito contrabando na fronteira, pois não havia cá muitas coisas que havia em Espanha. O meu avô, que andou na construção da ponte que liga Belmonte à Covilhã, contava que passaram lá muitos combóios carregados de minério e de armas para ajudar o Franco, que era outro que tal...
Está a ver, só confirma o que eu disse.
- Há gente que não sabe o bem que tem. Se tivessem vivido no tempo do "botas" não se esqueciam do que era fome e miséria.
Fome, miséria e ditadura. Quem falasse contra, era preso e torturado.
- Pois, isso era mais nas cidades, mas a gente ouvia falar das prisões lá na terra. Um sacana o Salazar (o senhor desculpe, a minha linguagem!).
Ora essa! Usou o termo apropriado.


 

     
 

2019/02/12

Honra e Vergonha


Flayed, Paula Rego

Desde o início deste ano, já foram mortas 9 mulheres e uma criança, pelos seus companheiros e ou pais das vítimas. Janeiro de 2019, passou a ser o segundo mês com maior número de vítimas de violência doméstica, em 14 anos. Duas vítimas por semana, causados por violência, neste caso violência de género, uma vez que as vítimas eram todas mulheres.
De acordo com os dados, relativos a 2018, publicados pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) e pela União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), foram registrados 26.439 denúncias, tendo sido condenados 1457 homens por crimes de violência doméstica, dos quais, apenas 603 usam "pulseiras electrónicas". Mais de 80% destas condenações dizem respeito a violência de género. A cada 20 minutos, há uma denúncia, a cada 3 dias há um assassínio. Em dois anos, o número de "casas abrigo" aumentou de 26, para mais do dobro, em todo o país. Nestas casas, residem mais de 3000 mulheres e crianças, que tiveram de abandonar os seus lares, devido às ameaças e maus tratos sofridos, enquanto a maior parte dos homens acusados, aguarda julgamento em liberdade, muitas vezes mantendo-se na própria casa, donde nunca chegaram a sair (!?).
Apesar de alguns avanços conseguidos - maior consciência da sociedade, maior número de denúncias, criação de unidades especializadas em atender este tipo de denúncias em postos da PSP e da GNR, maior número de condenações - o atavismo herdado de uma sociedade machista e patriacal como a portuguesa, continua a fazer escola. Se no "tempo da outra senhora", não se falava da violência caseira, seguindo o velho princípio de "entre homem e mulher não metas a colher" e quando os casos conhecidos eram normalmente associados ao ruralismo ignorante e a famílias destruturadas pelo alcoolismo e pelo desemprego, hoje sabemos que a violência de género é transversal a todas os grupos etários e sociais, pois tanto é maltratada a empregada doméstica como a advogada de sucesso.  Uma chaga social, que coloca Portugal em 11º lugar em 21 estados europeus, atrás de países como a Escócia, Holanda e Espanha ou à frente da Lituânia, Malta e Albânia, os últimos da lista.
As razões são reconhecidas pelos agentes sociais envolvidos. Poucos meios (financeiros e humanos), deformação deficiente das forças policiais (maioritariamente constituida por elementos do sexo masculino, que tendem a desvalorizar as queixas, sem provas físicas evidentes), uma mentalidade corporativa reinante entre magistrados e juízes (que, não raramente, utilizam o argumento jurídico para aligeirar as penas), advogados e psicoterapeutas imorais, que prolongam o sofrimento das vítimas com tentativas de "reconciliação" patéticas, que apenas contribuem para o escalar de situações incontroláveis, etc. Uma vergonha civilizacional, que está longe de terminar.
Ainda que todas estas razões sejam de considerar, é preciso ir mais longe e, como bem lembra esta semana o antropólogo José Gabriel Pereira Bastos (in "Público" de 11 de Fevereiro), na génese da violência de género, há um padrão que não se alterou. O antropólogo alerta para o pouco relevo, dado ao facto (frequente), do assassinato da mulher ser acompanhado do suicídio do assassino: "Trata-se de um padrão cultural com longa tradição. Há uns anos, no Alentejo, um vizinho meu, a caminhar para uma invalidez precoce, tentou matar a mulher disparando sobre ela a caçadeira e suicidando-se a seguir. A mulher sobreviveu. Outro vizinho fez questão de me informar depois que, no velório, o pai do assassino levantou a voz e afirmou com frontalidade desafiante: "O meu filho tinha a obrigação de confirmar que tinha morto a mulher antes de pôr fim à vida" (J.G. Pereira Bastos, ibidem).
Encontramos, pois aqui, resquícios de uma longa "tradição mediterrânica", descrita em clássicos da disciplina como "Honour And Shame" (J.G Peristiany), "Honour, Family and Patronage" (J.K. Campbell) ou, mais próximo de nós, "Ricos e Pobres no Alentejo" (José Cutileiro).
"O homem de honra não aguenta a perda da face, a humilhação pública, a desonra, que o obriga a reagir de acordo com as expectativas da comunidade que partilha estes valores. Não se trata de ciume, nem de amor frustrado. O que está em causa é a honra viril, o orgulho fálico" (J.G. Pereira de Bastos, ibidem).
É pois, este padrão de honra fálica, incutido ao assassino desde a infância, que é cultivado e partilhado por uma população que espera dele o acto final de se suicidar, após a morte da companheira, como única forma forma de recuperar a honra perdida da comunidade em que está inserido.
Como combater este flagelo?
Pereira Bastos não está optimista. Mas, avança algumas sugestões. Desde logo, através de acções de prevenção e combate radical a esta cultura de "honra e vergonha", transmitida de geração em geração, nos meios onde os criminosos estão inseridos. Depois, isolando-os e envergonhando-os onde eles são mais vulneráveis: na sua virilidade e machismo comportamental. É aqui que o papel dos homens pode ser fundamental. Para que estes, igualmente, se libertem e, dessa forma, sejam activamente solidários numa luta que é de todos. De mulheres e de homens.