2023/10/05

A "rentrée" (e agora, António?...)

 


É verdade que o Verão acabou, mas as temperaturas continuam altas. De acordo com as estatísticas, 2023 poderá vir a tornar-se o ano mais quente de sempre, desde que há registos. Para quem nega o aquecimento global, não será uma preocupação: a Terra é "plana" e o perigo de cairmos é mínimo. Se a Terra fosse redonda não nos aguentávamos de pé...

Provavelmente, deve-se a este Verão prolongado (calor excessivo e sol na moleirinha) as notícias que habitualmente fazem parte da "silly season". Entre nós, esta "estação", dura sempre mais umas semanas do que noutras latitudes. Podemos não ser bons a planificar, mas, em criatividade, ninguém nos bate...    

Só no "querido mês de Agosto", contei várias, que ocuparam dias a fio as primeiras páginas da imprensa de referência (!?) e foram abertura em todos os telejornais. Relembro as que me chamaram mais a atenção, não necessariamente por esta ordem:

Tivemos a visita do Papa (à qual escapei por um triz, já que me encontrava no estrangeiro); o beijo de Luís Rubiales, à jogadora da selecção espanhola de futebol; a petição pública, para mudar o nome proposto para o passadiço do rio Trancão; a observação de Marcelo ao decote de uma emigrante no Canadá; a proposta de aceitar estrangeiros nas forças armadas portuguesas; a transladação de Eça para o Panteão Nacional; não esquecendo, claro está, os fogos, a seca, a falta de água e as habituais queixas dos empresários do Algarve que, ao que parece, tiveram menos turistas portugueses...

Dirão, é sempre assim: quando não há pão, há que dar circo ao povo. Na falta de futebol...

Mas, com a mudança de estação (afinal, estamos no Outono) havia que celebrar a "rentrée", agendada para Setembro. Tivemos as "universidades" de Verão dos partidos, as festas do Pontal e do Àvante e (cereja em cima o bolo) as eleições regionais na Madeira que, para não fugir à tradição, deram a vitória ao PSD, partido que há mais de 40 anos governa o arquipélago. Nada que não se esperasse nesta ilha de caciques, ainda que desta vez sem maioria absoluta. A única novidade reside na aliança proposta pelo presidente eleito que, na falta de um deputado, preferiu aliar-se ao partido dos animais, para "não alimentar o crocodilo (leia-se, "Chega") que o podia comer"... Um cómico, o Albuquerque.

Já em Lisboa, a coisa "fia mais fino". Confrontado com a vaga de protestos que atravessa a sociedade portuguesa em áreas tão essenciais como a educação, a saúde ou a habitação, o governo continua a fazer "orelhas moucas" às reivindicações de professores, médicos e inquilinos, algumas das quais com anos de existência. Nunca o chamado "estado social" foi tão sistematicamente desvalorizado, pese embora os bons resultados na área financeira, com a descida da dívida pública (111% do PIB), controlo do défice orçamental (0,4%) e baixo desemprego (6%). Acrescente-se as previsões relativas ao turismo (20 milhões de visitantes/ano) mais o dinheiro arrecadado em impostos (IVA) e não é difícil perceber porque é que o ministro das finanças apresenta resultados na ordem dos 1700 milhões de excedente orçamental. Então, porque é com esta "almofada" financeira e os dinheiros do PRR (22 000 milhões) e dos programas europeus de coesão 2020 e 2030 (43 000 milhões), não se fazem investimentos públicos duradouros e estratégicos para o futuro? 

A resposta deu-a António Costa, esta semana, numa entrevista de duas horas às cadeias de televisão TVI e CNN: o governo não pode satisfazer as reivindicações dos professores (anos de salário em atraso, etc...), porque ia abrir um precedente relativamente a outras categorias de funcionários públicos (médicos, enfermeiros, oficiais de justiça, maquinistas, revisores, etc.) e o estado não tem dinheiro para todos. Acrescentou ainda que as variáveis não controláveis (pandemia, guerra, inflação) o obrigavam a conter despesas, já que por cada décima a menos no pagamento de juros da dívida o governo poupava 60 milhões de euros. Ou seja, a prioridade continua a ser o pagamento da dívida pública, ainda que a inflação não baixe  dos 5%, o que se traduz automaticamente no aumento do custo de vida, nomeadamente nas hipotecas das casas que, só este ano, aumentaram 20% em média! A situação no sector da habitação é de tal forma dramática que, pela primeira vez, milhares de inquilinos e jovens sem casa, desceram à rua em 24 cidades do país a exigir casas de renda acessível, uma exigência que não poderá ser satisfeita na próxima década. Como referiu uma conhecida cronista do "Público", a questão da habitação poderá significar o princípio do fim do governo de Costa. 

Que numa entrevista de duas horas, o primeiro-ministro (provavelmente devido ao guião imposto pelos entrevistadores) nunca tivesse mencionado os custos da guerra (inflação) para a população europeia em geral e para os portugueses em particular, é algo de extraordinário. Resta saber se por opção ou por esquecimento. E, no entanto, a guerra (esta guerra em particular) que se arrasta há mais de ano e meio sem fim à vista, só aproveita um dos actores: os EUA, que vendem armas em troca da futura reconstrução da Ucrânia, sem que sofram perdas humanas no terreno (no boots on the ground). Grande negócio!

Para Costa, nada disso interessa. Vamos organizar o campeonato do Mundo de Futebol 2030 e, se tudo correr bem, até Zelensky (esse grande "defensor do Ocidente") poderá chegar amanhã ao Porto, para participar na reunião do "Grupo de Arraiolos". Ora digam lá se isto não é um "milagre" para o governo?  Uma verdadeira festa. Já que não há pão, que venha o circo!