2016/10/22

Outono em Amsterdão (4)


Criada em 1984, a Associação Portuguesa de Amsterdão (vulgo APA), surgiu após um longo processo de unificação de duas associações de emigrados portugueses na Holanda: a Casa Portuguesa de Amsterdão (CPA), fundada nos anos sessenta e a Associação Resistência e Trabalho (ART), surgida em 1970. Dos anos sessenta, data igualmente o Clube Desportivo "Os Lusitanos", ainda em actividade, que não participou no movimento unificador das associações na década de oitenta.
Instalada recentemente num parque da zona oeste da cidade, a APA mantém as  principais actividades de origem, ainda que reduzida no espaço físico e no número dos membros activos que dão vida diária à associação. Não se vêem por aqui muitas caras novas e são ainda os emigrantes da primeira e segunda gerações que, à volta da mesa de cartas ou em frente ao écran gigante onde assistem aos jogos de futebol da liga portuguesa em directo, continuam a animar o convívio.
Paralelamente, outros frequentadores e organizações, usam o espaço da associação para organizarem sessões e tertúlias menos lúdicas, normalmente dedicadas à literatura ou à poesia, onde a componente gastronómica é parte obrigatória do programa. É o caso do grupo "Tertúlia" que, mensalmente, escolhe um tema à volta do qual são organizadas as sessões com convidados exteriores.
A "Tertúlia" deste mês, foi integrada no Festival "Seis Continentes" (evento multicultural organizado simultaneamente em vários países) e incluíu no seu programa a apresentação do livro "Exílios", uma obra colectiva na qual participámos. Trata-se de um livro de testemunhos e memórias de ex-exilados políticos (desertores e refractários) que recusaram a guerra colonial portuguesa e viveram os anos de exílio em diversos países europeus. As honras da casa foram feitas por Teresa Pinto (do festival "Seis Continentes") enquanto a apresentação do livro esteve a cargo de Fernando Venâncio, professor jubilado da Universidade de Amsterdão (ele próprio um ex-desertor e exilado na Holanda). Ao escriba destas linhas coube a explicação da génese do projecto que, mais do que reunir histórias de vida, pretendeu fixar testemunhos de uma geração que discordou da guerra (sobre a qual poucos ousam falar) para que, desta forma, a memória não se apague. Seguiu-se animada conversa com a assistência luso-holandesa presente, tendo a sessão terminado com os habituais registos para a posteridade. A visita a Amsterdão terminava, assim, da melhor forma.
   

2016/10/21

Outono em Amsterdão (3)


No início dos anos quarenta, viviam na Holanda cerca de 140.000 judeus. 
Durante a ocupação alemã, foram presos e transportados para os campos de concentração, mais de 120.000 judeus. Destes, 104.000 morreram.
Em Amsterdão, a comunidade judaica habitava um quarteirão no centro, cujo perímetro era limitado a Oeste pelo rio Amstel (que atravessa diagonalmente a cidade) e a Nordeste pelo Jardim Zoológico (vulgo Artis), um frondoso parque onde podem ser vistos animais e plantas exóticas.
Após a guerra, o "quarteirão judeu" foi parcialmente destruído e as velhas casas substituídas por novos edifícios, onde funcionam os serviços administrativos da câmara municipal, a ópera, museus, e diversos hotéis e restaurantes.
No espaço, anteriormente ocupado pelo bairro, foram entretanto surgindo museus e memoriais ligados à história da comunidade judaica na cidade e na diáspora. Este quarteirão cultural judeu, inclui, para além da "Sinagoga Portuguesa" (construída em 1675), o "Museu da História Judaica", o "Memorial Nacional do Holocausto" e o "Museu Nacional do Holocausto", que podem ser visitados comprando um bilhete único pelo módico preço de 15euros.
Dispensámos a Sinagoga, que já conhecíamos de anteriores visitas, e iniciámos a visita pelo "Museu da História Judaica", a peça de resistência deste périplo, onde pode ser vista a exposição "The Power of Pictures - Fotografias e Filmes da antiga União-Soviética". Fotografias, filmes e "affiches" das décadas vinte e trinta do século passado, quando o movimento avantgardista russo atingia o seu auge. Admiráveis trabalhos fotográficos de Rodchenko, Schaikhet, Shudakov, Petrusov, Zelma, Penson, Nappelbaum, Ignatovich e filmes clássicos de Eisenstein, Barnet, Kuleshov, Pudovkin, Turin, Kalatozov, Vertov (que podem ser visionados em projecções diárias), para além da excelente colecção de "affiches" revolucionários que, um século mais tarde, permanecem verdadeiros ícons da arte.
Seguimos para o "Memorial do Holocausto", situado no Hollandsche Schouwburg, a antiga sala de espectáculos da cidade, construída em 1892. Entre Julho de 1942 e Novembro de 1943,  o Schouwburg foi utilizado como lugar de deportação. Os judeus de Amsterdão e arredores, tinham de apresentar-se no teatro, para serem deportados, ou eram levados à força. Ali aguardavam dias, às vezes semanas, pelo transporte para os campos de Westerbok e de Vught, perto da fronteira alemã. Daí, eram metidos em combóios que os transportavam para os campos de extermínio. Depois da guerra, o edifício deixou de ser utilizado e acabaria por ser parcialmente demolido. Já em 1962, a Câmara de Amsterdão decidiu erigir um monumento em honra das vítimas, situado num pátio interior do edifício. Recentemente, outro presidente da câmara, o judeu Ed van Thijn (ele mesmo uma vítima da guerra) inaugurou um novo memorial, constituido por placas de vidro nas paredes, onde podem ser lidos os nomes das 6700 famílias dos 104.000 judeus mortos.
Em frente ao teatro, do outro lado da rua, está situado o "Museu do Holocausto", no lugar onde existia uma creche e eram recolhidos os filhos das famílias deportadas. Muitas dessas crianças acabariam por ser levadas clandestinamente, por membros da resistência holandesa, que os entregavam a famílias adoptivas no Sul da Holanda, onde ficaram até ao fim da guerra.
O Museu, inaugurado em Maio este ano, dispõe apenas de três salas. Na primeira, pudemos assistir a um filme sobre o pintor (e actor) Jeroen Krabbé, cujo avô foi levado e morto em Sobibor. No documentário (50') Krabbé explica os motivos e o processo de trabalho seguidos, que o levaram a mergulhar na história da família e na tragédia do seu avó Abraham. Depois, passámos à sala da exposição propriamente dita, sobre a vida, a prisão, o transporte e a morte de Abraham, intitulada "O declínio de Abraham Reiss". Nove "tableaus" de 3x2metros de altura, belos e horríveis na sua crueldade, onde a técnica mista de óleo, desenho e colagem, serve o propósito dramático do autor.
A última sala, seria a mais surpreendente. Num espaço vazio, onde estão instaladas duas mesas com terminais de computadores, os visitantes podem inserir dados sobre familiares mortos ou desaparecidos na Holanda. Os dados são imediatamente projectados numa das paredes da sala, transformada num écran gigante de computador, que envia a informação para todo o Mundo em simultâneo. Assim se preserva a memória.           

2016/10/20

Outono em Amsterdão (2)



Nem só pelos canais é conhecida a cidade de Amsterdão. Uma das áreas onde mais se investiu, nos últimos anos, foram as zonas verdes (parques e bosques) que ocupam grande parte do tecido urbano. Um dos parques mais agradáveis da cidade é, actualmente, o Westerpark, situado num antigo bairro operário com o mesmo nome. O parque, criado no século XIX, serve os habitantes do bairro e alberga a antiga fábrica de gás da cidade (construida em 1888), um complexo de edifícios em tijoleira vermelha, a lembrar o estilo britânico da era da industrialização. Está situado ao longo da Haarlemmerweg, uma via rápida que liga Amsterdão à cidade de Haarlem.
Nos anos sessenta, com a descoberta de gás no mar do Norte, a fábrica tornou-se absoleta e foi encerrada. Os seus edifícios seriam mais tarde ocupados por "krakers" (movimento de ocupação de casas) que transformaram o espaço em "ateliers" e serviços comunitários diversos. A fábrica foi preservada pelo município e classificada como "arqueologia industrial". Depois de alguns anos encerrado, o Westpark reabriu ao público em 2003, agora dividido em duas zonas distintas, Norte e Sul, separadas pelo antigo complexo industrial, totalmente recuperado e onde funcionam "ateliers", "galerias de arte, "start-ups", dois restaurantes, o café "loja do pão" (que fabrica e vende diariamente pão fresco), para além de um auditório ao ar livre, o "North Sea Jazz Club" e um cinema de arte "Het Ketelhuis", que exibe filmes clássicos. Devido à temperatura convidativa, o parque estava cheio de famílias e turistas que enchiam os multiplos recantos desta Amsterdão ainda relativamente desconhecida.
Outro "must" a visitar, é o edifício "Eye", que alberga a cinemateca de Amsterdão. Inaugurada em 2012, esta construção modernista, a lembrar um avião supersónico, está situada na margem norte do Ij (o canal que divide o Norte do centro da cidade). No "Eye" podem ser vistos filmes clássicos e em estreia (8 salas de projecção), para além de exposições temporárias, sempre surpreendentes. Depois das grandes exposições dedicadas a Kubrick, Fellini, Kronenberg e Antonioni, que tinhamos admirado em anos anteriores, foi a vez de apreciar "Celluloid", uma instalação colectiva de artistas fascinados pelo material filmico e por máquinas de projecção de 16mm e 35mm. Uma agradável surpresa onde, entre nomes mais consagrados, como Rosa Barba, Tacine Dine, Sandra Gibson e Luis Recoder, podem ser vistos trabalhos dos portugueses João Maria Gusmão e Pedro Paiva, no caso as curtas "Onça Geométrica" (2013) e "Glossolalia" (2014). A visita, à loja da cinemateca, é imperdível, assim como a vista panorâmica do "skyline" da cidade,  a partir da esplanada do "Eye".
Dali, seguiriamos para a FOAM, uma galeria especializada em fotografia, que neste momento alberga quatro exposições, todas elas interessantes: "Dinastia Marubi" (diversos "portraits"de uma colecção de 150.000 negativos, feitas num dos primeiros estúdios albaneses); "Made in China", de Olya Oleine, uma pequena e representativa exposição a preto e branco, sobre a China actual; "Night Soil" de Melanie Bonajo, composta de pequenas curtas metragens sobre movimentos feministas norte-americanos e "Safe Passage", com trabalhos do conhecido dissidente chinês Ai Weiwei, sobre os refugiados da guerra que dão à costa grega. Weiwei, actualmente a viver em Berlim (após a sua libertação em 2015), fotografou e filmou dezenas de famílias de refugiados nos campos de acolhimento montados na ilha de Lesbos. Centenas de polaróides, que cobrem literalmente as paredes de um dos andares do edifício, numa avalanche de informação que nos interroga sobre o drama existencial de milhares de vítimas da guerra. Numa sala separada, fotos tiradas pelo artista em cativeiro, algumas verdadeiramente hilariantes, onde podem ser vistos diversos agentes chineses à paisana, que Weiwei (impedido de sair de casa) ia fotografando da sua janela. As fotos tiradas, com pequenos intervalos de tempo, são acompanhadas de legendas irónicas sobre o trabalho de observação e controlo levados a cabo pela polícia chinesa. Uma dor de cabeça para as autoridades, o activista Ai Weiwei, certamente um dos artistas mais criativos da actualidade. A não perder, para quem se desloque à cidade antes de Janeiro. 

2016/10/19

Outono em Amsterdão

Sair de Lisboa e chegar a Amsterdão com 24 graus de temperatura positiva é coisa que, raramente, nos lembramos de ter experimentado. E, no entanto, foi isso que aconteceu há umas semanas atrás, aquando da nossa última visita àquela cidade holandesa, onde se fazia sentir um Outono, digno do melhor "indian summer". Doze dias de Verão meridional, a lembrar que o "aquecimento global" não é uma palavra vã. Mais uns anitos e teremos vinhas plantadas nas margens do Amstel...
Para quem se queixa da gentrificação em Lisboa, a capital holandesa oferece um bom exemplo do que nos está reservado. Não que o fenómeno seja novo (afinal, a cidade sempre foi uma das mais visitadas da Europa), mas a dimensão do "estrago" começa a ser de tal ordem que, passear e viver no centro daquela que foi uma das mais pacatas urbes europeias, é o mesmo que desembarcar numa grande Disneyland enxameada de turistas, lojas de conveniência e "fastfood" em todas as ruas. Algo que um famoso escritor holandês, do século passado, apelidou de "patat cultuur" (a cultura da "batata frita"), ao escrever sobre as transformações sofridas num dos bairros mais sofisticados da cidade. Dirão que não há nada a fazer e o turismo é predador. É verdade. O turismo de massas descaracteriza as cidades, principalmente quando os habitantes locais são literalmente "expulsos" das habitações - onde sempre viveram e pagavam rendas razoáveis - para darem lugar a novos moradores (com poder de compra) e a novos prédios, transformados em AirB&bs, uma tendência das grandes urbes na era dos voos "low-cost". Foi assim em Veneza, como em Barcelona ou Berlim, cuja municipalidade se viu obrigada a impôr restrições à proliferação de hóteis baratos, única forma de preservar prédios para habitação social. Amsterdão não é excepção (recebe 15 milhões de turistas ao ano!) e muitas das habitações sociais, quando vagam, deixam de pertencer ao sector de arrendamento e passam a ser vendidas no mercado livre. Manter uma casa no centro histórico é um privilégio, só ao alcance daqueles que lá moram há gerações ou novos proprietários endinheirados. Pelo meio, as lojas de conveniência, restaurantes "fastfood" e "hostels", continuam a proliferar. 
Porque a cidade é relativamente pequena (700.000 habitantes) fácil é percorrê-la nos eléctricos e autocarros, que nos levam a qualquer bairro periférico. Foi o que fizemos, logo na primeira noite. Alertados pela programação do Teatro Munganga, uma companhia brasileira local a comemorar o seu 20º aniversário, lá fomos ouvir o grande Rogério (Bicudo de seu apelido), um tocador de violão de 5 quilates, velho amigo das músicas e não só. O concerto, intitulado "As Américas", foi uma excelente forma de conhecer e rever autores tão díspares como John Coltrane, Wayne Shorter (USA), Eric Calmes (Curaçao), Leo Brouwer (Cuba), Agustin Barrios (Paraguay), Villa-Lobos, Garoto, Nelso Cavaquinho ou Baden Powell (Brasil). Uma "performance" inesquecível, de um virtuoso guitarrista que, às vezes, passa por Lisboa. No final, tempo para uma "caipirinha" e troca de impressões sobre a actual situação brasileira, que a comunidade "brasuca" vê com apreensão. Há por aqui mais apoiantes do "Fora Temer", do que eu suspeitava. A estadia não podia ter começado melhor...    

foto Editie NL / Agnes de Goede