2019/08/01

José Afonso: nos 90 anos do seu nascimento


Se fosse vivo, José Afonso faria hoje 90 anos.
Se outra razão não houvesse, a efeméride serviria para lembrar o genial compositor, cujo legado constitui, de há muito, uma obra incontornável do património artístico e cultural português.
Assim o entendem os milhares de subscritores da petição, hoje entregue ao governo, para que este reconheça e classifique, a obra do cantor, Património Cultural de Portugal. Uma iniciativa da Associação José Afonso (AJA) sediada em Setúbal que, em menos de um mês, reuniu 11500 assinaturas para este fim. Um passo mais, no reconhecimento do homem e da sua obra, agora que a figura parece ter conseguido um consenso que nunca obteve em vida. São assim, os clássicos. A qualidade sobrevive ao passar do tempo. A sua intemporalidade será sempre o melhor critério para avaliá-la.
Também por isso, torna-se urgente a reedição da obra discográfica de José Afonso, hoje dispersa por diversas editoras e cujas edições continuam (parcialmente) esgotadas. Uma lacuna difícil de explicar, não fora vivermos em Portugal, um país que não prima pelo reconhecimento dos seus melhores e onde a mentalidade reinante complica o óbvio.
A falta de albuns originais, contudo, não tem impedido admiradores e intérpretes, de recriarem uma obra que, de tão prolífera, continua a gerar versões onde a genialidade das composições é uma constante. Escolhemos um exemplo, ao acaso, porventura menos conhecido do grande público, a canção "Benditos ", que fala por si. Afinal, esta é a melhor forma de evocar José Afonso. Enquanto a sua a obra for divulgada, podemos estar seguros de que não desaparecerá.     
Muito continua a acontecer, portanto. Desde logo, este fim-semana, um pouco por todo o país, onde estão programadas sessões evocativas da efeméride, organizadas pelos núcleos da AJA de Setúbal, Grândola, Almada, Porto, Aveiro e Tavira, que contarão com a participação de dezenas de intérpretes que desta forma se associam à data.
Em Lisboa, a sessão constará do lançamento do livro-disco "José Afonso (ao vivo)", constituida por um livro,  um LP e dois CDs, com gravações inéditas de dois concertos realizados em Coimbra (1968) e Carreço (1980), recentemente recuperadas e editadas pela Tradisom. A sessão contará com a presença de Adelino Gomes, autor do texto e José Moças, responsável pela edição. A parte musical será assegurada pelas cantoras Filipa Pais e Maria Anadon e pelo cantor Zeca Medeiros, que serão acompanhados por David Zaccaria (guitarra).
A sessão de Lisboa, tem lugar no próximo dia 3 de Agosto, pelas 16h. na sede da AJA, situada na Rua de São Bento, 170.
Lá estaremos.

2019/07/31

Criadores e Criaturas

Maus de Art Spiegelman
Que o Mundo pode ser um lugar perigoso, já sabíamos há muito tempo.
Provavelmente, desde que o homem é "sapiens" e iniciou a luta pelo seu território.
Com altos e baixos, a História foi-se fazendo, sempre de maneira diferente, mas nem por isso menos surpreendente, uma vez que a História (em princípio) não se repete. Ou melhor, como dizia o filósofo, repete-se, primeiro como tragédia, depois como farsa.
Tudo isto, a propósito da recente "onda" de ditadorzecos, uns exercendo o poder de facto e outros aspirando a tal, que têm surgido um pouco por todo o lado. O processo vem de trás, mas o "Brexit", a eleição de Trump e a ascensão dos populismos na Europa, são sinais inequívocos desta tendência regressiva. Juntem-se, a estes exemplos, a China de Xi Jinping, onde o poder é exercido com mão de ferro; a autocracia mal disfarçada de Putin; a democracia musculada de Erdogan; a demência de Duterte; ou o regime proto-fascista de Bolsonaro, para termos uma ideia do que pensam e fazem tais persongens.
Ainda que tenham características comuns, a verdade é que o poder de uns (Trump, Xi, Putin...) é incomensuravelmente maior do que outros, os quais representam um perigo regional, que não deve ser subestimado. Estão neste caso, Erdogan, Duterte, Maduro ou Bolsonaro.  
Como chegámos aqui?, é uma pergunta recorrente, feita pelos mais diversos analistas. As causas são várias, pois nem todos os países foram confrontados com o mesmo tipo de problemas que poderão estar na origem de tal fenómeno: dos efeitos da recente crise económico-financeira, ao terrorismo internacional, passando pela crise dos refugiados e emigrantes (ligada à islamofobia e ao racismo crescente), são múltiplas as explicações para o recrudescimento do autoritarismo, da xenofobia e da "supremacia branca", que existe em todos os regimes populistas mencionados.
Em artigo recente, Nuno Severiano Teixeira ensaia uma explicação para o ataque a que as democracias estão, actualmente, sujeitas: "Mas, sejam quais forem as razões, uma coisa é certa: a liberdade e a democracia estão sob assalto e globalmente em retrocesso. Mais: se olharmos para esse retrocesso, uma coisa parece evidente: a queda das democracias já não é o que era. Dantes, caíam de um só golpe, súbita e estrondosamente, à força de armas. Era o tempo dos golpes de Estado. Hoje, caem lenta e silenciosamente. Na verdade, não caem, vão caindo, à medida que os incumbentes usam os mecanismos democráticos para subverter a própria democracia - isto é, as democracias já não caem pelo método violento do derrube, mas sim pelo método incremental da erosão" (in "Público", d.d. 31.7.19).
Se dúvidas houvesse, bastava olhar para o que se passa nos Estados Unidos - portanto, uma democracia consolidada - onde o populista Trump faz diariamente discursos racistas e apelos à expulsão de congressistas de origem estrangeira (ele, cuja família é de origem escocesa!) entre ataques descabelados ao reverendo Al Shappton, por este ousar criticá-lo; ou, mais a Sul, o que se passa no Brasil - uma democracia desde 1985 - onde o mentecapo Bolsonaro protege garimpeiros que querem destruir o Amazonas e as comunidades índigenas, enquanto continua a negar a existência da ditadura militar, que governou o país durante 21 anos!
Porque as democracias não são todas iguais, diria que Trump (sendo mais perigoso) é mais controlável, devido ao sistema de "checks and balances" existente na democracia americana; Já Bolsonaro (um ex-militar ignaro e fascistóide) é suportado por uma bancada de evangélicos, ruralistas e militares, que detém a maioria num congresso, onde as leis são aprovadas através da compra de votos.  
Uma coisa é certa: todos estes personagens - criadores e criaturas - sairão de cena, mais cedo ou mais tarde. Quanto mais não seja, pela inevitabilidade da morte. Também, porque, aos períodos de autoritarismo, sempre sucedem períodos de democracia. Ninguém, em consciência (a menos que seja masoquista) deseja viver em ditadura. O apelo da liberdade, será sempre mais forte.  

2019/07/28

A "Época dos Fogos"


Como é da "tradição", voltaram os fogos de Verão. O fenómeno é de tal ordem, que alguém o baptizou de "época de fogos". Se já tínhamos a "quadra natalícia" e a "época balnear", porque não a "época dos fogos"? Desta forma, podemos sempre criar mais um "ritual de passagem" e anunciar lá fora: "Venha a Portugal no Verão: sol, praia e fogos, garantidos!". 
Os números não mentem. De acordo com o relatório "O Mediterrâneo Arde", apresentado este mês pela World Wildlife Fund" (WWF), as perspectivas para os países do Mediterrâneo Norte (Portugal incluído), são preocupantes. Já em finais de 2018, outro estudo, liderado por Marco Turco (universidade de Barcelona), apresentava projecções catastróficas: no melhor cenário, aquele em que a temperatura média do planeta aumentará 1,5ºC (limite estabelecido pelo Acordo de Paris sobre alterações climáticas) , o Mediterrâneo verá a sua área ardida aumentar em 40% até ao fim do século, sendo a Península Ibérica uma das zonas mais penalizadas. Caso o aquecimento chegue aos 3ºC, a destruição poderá atingir os 100%.
O relatório do WWF,  que incide sobre Portugal, Espanha, França, Itália, Grécia e Turquia, alerta ainda para o facto de termos entrado numa época de megaincêndios (de sexta geração), imprevisíveis, violentos, incontroláveis e letais. Fazem parte desta categoria, os grandes fogos de 2017 (Pedrogão e 15 de Outubro) e 2018 (Grécia). Este ano, devido às irregularidades climatéricas e um Verão relativamente fraco, os grandes fogos começaram mais tarde. No entanto, bastaram dois dias de incêndios violentos (Vila de Rei e Mação), para que os números disparassem. Num só fim-de-semana, arderam 8000 ha, metade da área ardida em todo o ano! Se esta é a realidade de Julho, o que podemos esperar dos dois meses que faltam, para terminar a "época dos fogos"?...
É verdade que não houve vítimas, como há dois anos (112 mortos), o que mostra algum avanço na forma de combater o fogo. A estratégia passou a ser "salvar vidas", em detrimento de casas e bens. Mas, conforme todos os especialistas apontam, muito há ainda por fazer nesta área, a começar pela prevenção, que leva tempo a implementar e sem a qual o combate ao fogo será sempre inglório.
O diagnóstico está feito e passa por acções conjuntas, a começar pelo ordenamento do território e respectivo cadastro, sem o qual é impossível gerir a floresta existente nos terrenos privados (90% do território). Estes, encontram-se ao abandono, seja por falta de meios humanos, seja por falta de meios materiais.
Há duas variáveis que Portugal (os respectivos governos) dificilmente poderão controlar: o aquecimento global e a desertificação do interior. Relativamente ao primeiro "item", só através de acções conjuntas a nível internacional (o Acordo de Paris é um bom exemplo) poderão ser tomadas medidas que defendam o planeta do anunciado aquecimento. No segundo caso, os incêndios não poderão ser evitados (haverá sempre fogos, durante todo o ano), mas poderão ser minorados, desde que a prevenção tenha um papel determinante. Uma das formas, será criando incentivos que ajudem os proprietários a limpar os terrenos e a entregar a madeira e mato recolhidos, em troca de benefícios que justifiquem a recolha sistemática da carga "combustível" existente, para que, dessa forma, esta possa ser transformado em biomassa. Se não houver contrapartidas, dificilmente os donos dos terrenos, investirão numa industria, da qual não colhem proveitos. Na melhor das hipóteses, plantam árvores (eucaliptos e pinheiros) de crescimento rápido, para obter algum rendimento, uma das razões que estarão na origem de muitos dos fogos das últimas décadas. Uns por negligência, outros por interesses obscuros, já que sabemos que só uma ínfima parte dos fogos são originados por causas naturais (trovoadas, etc...).
Desde a década de sessenta do século passado, que a migração para o litoral (e para o estrangeiro) é uma constante. Mais de 75% da população portuguesa vive hoje numa faixa litoral, compreendida entre Braga e Setúbal. Reverter este processo, tornou-se utópico, admitindo que algum governo o queira tentar. Resta, pois, uma gestão equilibrada e sustentável do território, que passa por uma estratégia de longo termo, se ainda queremos salvar algo. Olhando para os gestores da coisa pública actuais, tememos o pior. Não se vislumbram grandes metas e as soluções (temporais) encontradas, acabam por ser mais do mesmo...Voltamos sempre ao princípio, ancorados numa velha certeza: o da tradição, imutável, como convém. Assim, não vamos lá...