2021/11/16

Sob o signo da memória histórica

Oitenta e cinco anos depois da guerra civil em Espanha e dos crimes cometidos pela ditadura franquista que se seguiu, a sociedade espanhola continua presa aos fantasmas, nunca esconjurados, que teimam em regressar sempre que a memória é mais forte que a "lei del olvido" instaurada com a democracia.

Esta é uma consequência da Lei de Amnistia, aprovada em 1977, que procurou, numa sociedade dividida e traumatizada por 40 anos de ditadura, inculcar a ideia de que todas as vítimas eram iguais, já que houvera mortos dos dois lados...

Não é verdade e os saudosistas da ditadura sabem-no bem. Por isso, tentam escamotear a verdade dos factos, criando a falsa ideia de que a memória não deve preocupar-se "apenas" com os 115.000 mortos fuzilados e enterrados em milhares de valas comuns, mas com todos os mortos, procurando dessa forma minimizar as responsabilidades da ditadura. Como se morrer em combate ou assassinado com uma bala na nuca, seja a mesma coisa. Nunca o será. 

Para lembrar esta verdade dramática, que envergonha o país com mais valas comuns em todo o Mundo (depois do Camboja) foi criada, em 2000, ano da descoberta das primeiras valas, a ARMH (Associação Recuperação Memória Histórica de Espanha), que conta hoje com centenas de núcleos espalhados por todo o território espanhol, continuando o hercúleo trabalho a que se propôs: encontrar e desenterrar os mortos assassinados pela ditadura franquista e prestar-lhe a homenagem a que têm direito, como vem sido exigido pelos familiares das vítimas. 

Neste contexto, diversos foram os eventos, marcadas para a semana de 8 a 15 de Novembro último, nomeadamente em Sevilha, epicentro das manifestações onde o tema da memória seria mais uma vez escrutinado

A primeira destas manifestações, teria lugar durante o Festival Europeu de Cinema de Sevilha, onde foram exibidos dois filmes marcantes: "Horacio, El Ultimo Alcalde" (de María Rodriguez e Mariano Agudo) sobre a figura de Horacio Hermoso Araújo, o último alcaide de Sevilha, assassinado e enterrado numa das valas comuns do cemitério da cidade; e "Pico Reja, la verdad que la Tierra Esconde" (de Remédio Malvárez e Arturo Andújar) sobre a vala Pico Reja, situada no cemitério da cidade, onde se supõe estarem enterrados mais de 2000 corpos. Uma sessão histórica, no clássico teatro Lope de Vega, que contou com a presença de Horacio Filho, o guardião da memória de seu pai, que subiu ao palco debaixo de uma estrondosa ovação. Igualmente presente, a cantora flamenca Rocio Marquez, que interpreta o tema musical do filme. Cá fora, esperavam-nos dezenas de activistas e familiares que, nessa noite, encheram a sala do velho teatro, exibindo retratos dos familiares mortos. 

Outro momento marcante, seria a visita guiada à vala de Pico Reja, no cemitério de San Fernando onde, desde 2019, decorrem as escavações e exumação de milhares de corpos. Os técnicos presentes  (arqueólogos e antropólogos forenses), falaram em mais de 1800 corpos encontrados até ao momento. Impressionante a visão daqueles esqueletos amontoados, a maior parte deles deitados de boca para baixo, sinal de que tinham sido fusilados à queima roupa (muitos dos crânios apresentam perfuração de balas), para além de outras escoriações, visíveis nos ossos, das torturas a que foram sujeitos. Uma visão macabra e de indignação, que o director da equipa de escavações, Juan Manuel Guijo, sublinhou no final da visita, ao referir que, para além da indignação, havia que preservar a memória, única forma de combater a injustiça no futuro. Do grupo de visitantes, fazia parte uma delegação de militantes Zapatistas de Chiapas (México), em visita a Andaluzia, que tomava nota de todas as informações prestadas. 




Finalmente, a grande manifestação de sábado passado, uma iniciativa conjunta da Coordenadora Andaluza pela Memória Histórica e Democracia e da Assembleia Memorial Andaluza, que reuniu cerca de 5000 pessoas, vindas de toda a Andaluzia, para exigir ao governo da região a aplicação de medidas prometidas e consignadas na Lei de 2017, aprovada por maioria no executivo anterior (PSOE). O actual executivo, uma coligação de direita e extrema-direita (PP, Ciudadanos e VOX)  recusa a "Lei da Memória Histórica" e quer substitui-la pela designação "Lei Inclusiva", forma encontrada para pôr no mesmo plano vítimas e algozes. Sob as palavras de ordem "Verdade, Justiça, Reparação", a marcha percorreu os dois quilómetros que separam a Praça Nova do Palácio de São Telmo (sede do poder executivo), onde, num palco improvisado, discursaram a presidente da Coordenadora e o ex-magistrado Baltasar Garzón. Este último, que leu o Manifesto apresentado pelas associações organizadoras da marcha, reforçou as exigências da Coordenadora, acrescentando que "A lei deve estar acima da ideologia do momento. Os governos, o que têm de fazer, é aplicá-la, em respeito pelas vítimas. E há que reivindicar essa memória, que todavia custa a muitos reconhecer".

Uma semana inesquecível, em defesa de uma memória que urge preservar.