2012/08/03

No nascimento do Zeca


Se fosse vivo, José Afonso teria feito ontem 83 anos. Para celebrar a efeméride, o núcleo de Lisboa da Associação José Afonso levou a efeito uma sessão evocativa. O evento realizou-se nas instalações da livraria Ler Devagar em Lisboa e contou com a participação de Rui Pato (mítico acompanhante do Zeca nas décadas de sessenta e setenta) e António Ataíde, um reconhecido valor da actual canção de Coimbra. Perante uma sala a transbordar, os dois magníficos intérpretes passaram em revista o reportório da fase coimbrã do Zeca, quando Pato era ainda seu exclusivo guitarrista. Grandes e menos conhecidas canções, a maioria das quais reunidas nos primeiros discos de Afonso, quando o acompanhamento se limitava a um instrumento acústico: a guitarra e os arranjos de Rui Pato. Zeca já tinha deixado a fase do Fado de Coimbra (ligada aos seus tempos de estudante) e ensaiava um novo ciclo, marcado por uma lírica nostálgica e metafórica onde, não raramente, os textos continham uma crítica implícita à ditadura de Salazar. Esta atitude militante, cedo viria a causar-lhe problemas de toda a ordem - censura, concertos proibídos, perseguição e dificuldades materiais - cuja realidade Pato ilustrou com humor durante o concerto, através da leitura da correspondência trocada à época entre os dois. Uma grande sessão de divulgação da música e poesia de José Afonso, onde as qualidades humanas e o espírito crítico do cantor ficaram, mais uma vez, bem expressas. As evocações do nascimento de José Afonso prosseguem amanhã, em Grândola, com um concerto de Janita Salomé e da Filarmónica Idanhense, evento igualmente organizado pela Associação José Afonso.

2012/08/01

A importância de ser Álvaro

Afirma Pereira, numa audição parlamentar hoje na AR, que "a importância disto (referia-se não percebi bem a quê) é porque estes dois projectos são importantes." A frase poderá não ter sido exactamente dita assim, mas foi mais ou menos isto.
É por estas e por outras que, depois de o ministro Pereira afirmar peremptoriamente, logo a seguir, que o seu ministério está a operar uma verdadeira revolução, eu fico totalmente convencido, arriscar-me-ia mesmo a dizer que acredito que acredito que  com as "reformas estruturais", —misteriosas, é certo, mas, segundo ele, absolutamente decisivas— e com Pereira ao leme, a economia portuguesa sairá da situação de estagnação, velha de décadas, em que se encontra. Fico tão convencido com estas palavras como com a sua previsão da "retoma" já em 2013 ou 2014, que a evidência contraria, ou com a sua fé nas virtudes do novo código laboral, que ele parece ser o único a ter.
Nem acredito que, depois de observar o ar determinado com que o ministro Pereria diz tudo isto, alguém me consiga agora convencer que os tempos de estagnação não estão terminados de vez. Ai estão, estão! Eu cá acredito!
Todos as previsões apontam para o mesmo (embora com uma latitude mais ou menos ampla): a recessão vai continuar e o desemprego vai aumentar. Em inequívoca sintonia, o país reconhece que o ministro Pereria não existe. Mas ele lá vai prometendo virar a economia do avesso, cantando solitárias hosanas ao código laboral e fabricando reformas virtuais.
Uma conclusão pode ser retirada, sem margem para dúvidas ou tergiversações, das afirmações do  ministro Pereira e da qualidade da sua governação: a importância do importante é importante.

2012/07/31

Nuno Teotónio Pereira, o nosso Mandela

Há já muito tempo que, por vários motivos, não compro jornais. Estando o Público indisponível na Internet sem ser a pagantes, só o leio quando me cruzo com um exemplar, no barbeiro ou em cafés, normalmente com uns dias de atraso.
Para dele tomar conhecimento, foi portanto necessário que uma mão amiga, a de Jorge Abegão, me fizesse chegar o artigo, publicado no Público de dia 29, a propósito da atribuição pela Igreja Católica do prémio Árvore daVida / P.e Manuel Antunes a Nuno Teotónio Pereira. Começa assim esse artigo de António Marujo:
«Cinco dias depois de ter deixado de ver de um dos olhos, em Maio de 2009, o arquitecto Nuno Teotónio Pereira, hoje com 90 anos, acordou a sentir que a outra vista estava com sintomas semelhantes. Levantou-se, saiu de casa, no bairro de São Miguel, em Lisboa, e, como habitualmente, apanhou os transportes públicos atravessando a cidade para se dirigir ao ateliê, na Rua da Alegria. Ali, arrumou todas as suas coisas. Antes de deixar o gabinete, o arquitecto telefonou para a mulher, explicando o que se passava e dizendo que tinha de voltar ao oftalmologista. Ela pediu-lhe que apanhasse um táxi e viesse depressa. Mas Teotónio Pereira fez de novo como todos os dias: apanhou os transportes públicos. Ao entrar em casa, disse: "Despedi-me de Lisboa." À hora de jantar, perdera completamente a visão.»
Estou de acordo com o Jorge quando ele afirma que «esta história é borgeana.» Mas o que me tocou mais, até me comover, foi a apreciação sobre a foto que acompanha o artigo do Público: «é duma intensidade fulminante», refere. E descreve:
«São as mãos que avançam e falam dele como uma nova maquete desenhando um edifício onde estão presentes os três pilares, que perfilhou, "de forma equilibrada: a funcionalidade, a resistência ou solidez e a beleza". Borges, contrariando Shakespeare, na Cegueira, disse: "o mundo do cego não é a noite que as pessoas supõem". O mundo do Nuno, como o artigo denota, está cheio de claridade e de luz. Para muitos, como eu, enquanto jovens, quando pensávamos que o mundo justo estava ali mesmo à mão dos nossos vinte anos, Nuno foi a figura paterna, a referência ética de que necessitávamos e que resistiu ao acomodamento dos tempos.»
Bem hajam aqueles, e tão poucos são, que, como «o nosso Mandela»*, resistem ao acomodamento dos tempos!

*  Que ambos perdoem a comparação, já que ambos são incomparáveis.

2012/07/30

Ah! como é diferente a eugenia em Portugal...

Uma casa modesta, de idosa manifestamente modesta, uns parcos utensílios à vista. A mulher exibe os sinais da agressão de que foi vítima. Conta que "eles entraram por aqui dentro a gritar 'onde está o cordão? onde está o cordão?' Disse-lhes que não tinha nenhum cordão, bateram-me."
Aqui há tempos uma outra idosa, menos modesta, sugeria que os hemofílicos podiam ser descartáveis, estarão lembrados. Recentemente, Pinto Balsemão lamentava o facto de a população portuguesa ter idosos a mais. O problema do défice estaria resolvido, acha ele, se houvesse menos velhos. São formas de agressão encontradas por quem não tem a coragem ou o poder de nos liquidar fisicamente. O Governo, com o beneplácito do Presidente da República, e a troika, mais prosaicos,  optam por nos assaltar a casa à procura do cordão. Não o encontrando, agridem-nos a sério.
Exagero, pensará quem lê estas linhas. Mas há, por mais absurdo que possa parecer, uma lógica nisto tudo. Uma lógica que a nossa inércia forjou e encorajou.