2020/03/28

Duas semanas noutra cidade (4): Países do Sul, Países do Norte

Seriati, Itália (foto Pakistan Latest News)
A pandemia viral não poupa ninguém. Salvo raras excepções, todo o planeta parece infectado e deixou de haver "santuários" protegidos. O encerramento de fronteiras (ainda que ajude) nunca resolverá este problema, pela simples razão que o vírus não conhece limitações geográficas e os portadores já se encontram, muitas das vezes, entre nós. Não conhecer o inimigo é, por isso, o maior medo.
John Carpenter, cineasta americano de culto, realizou um filme ("The Thing") onde explora este sentimento, provocado por um vírus desconhecido. No filme, a "coisa" vem do espaço e aloja-se no corpo de um cão, adoptado por um equipa de cientistas, numa estação de investigação no Ártico. A metáfora perfeita do Corona. Acontece, que não estamos num filme de ficção científica, mas numa realidade que ganhou a dimensão de uma pandemia.
Aparentemente, só há duas soluções para combater a situação: uma vacina (que ainda não existe) e o isolamento - voluntário ou forçado - das populações infectadas. Contrariamente ao que possa pensar-se, a segunda medida não se destina apenas a manter pessoas em casa, mas a isolar o grupo de risco que necessita de mais cuidados. Para determinar quem, dos infectados, necessita de cuidados prioritários, é preciso fazer testes e ter material sanitário adequado o que, como se compreende, não existe na maior parte dos países, nem é possível adquirir de um dia para o outro. Daí, o método chinês, que se revelou fundamental para circunscrever o vírus à região infectada (Wuhan).
Ao contrário de epidemias conhecidas (malária, ébola, dengue, sars, etc.) normalmente circunscritas a territórios pequenos em países africanos, asiáticos e sul-americanos (os chamados países em vias de desenvolvimento), o "corona" espalhou-se pelo Mundo Ocidental, com uma rapidez sem precedentes. Habituados a viver em estados mais assépticos, graças a sistemas de saúde funcionais e maior prevenção, os europeus descobriram que não estavam imunes à "coisa". Pior: porque a maioria dos países ocidentais desvalorizou o surto de vírus na China, não foram tomadas medidas atempadas e, agora, corremos "atrás do prejuízo": uns mais que outros, mas, inevitavelmente, todos na mesma direcção: maior número de infectados, maior número de mortes e o colapso da maior parte das unidades médicas existentes...
Como o vírus é "democrático", não escolhe países, classes sociais, ou protegidos do reino. Atinge toda a gente, ricos e pobres, novos e velhos, famosos e desconhecidos, Que o digam personagens como o monarca de Mónaco, o príncipe Charles de Inglaterra ou, mais recentemente, o primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, para citar três exemplos avulso. Que chatice.
Os europeus (e os norte-americanos por extensão) descobriram também que tinham de seguir uma disciplina férrea (há quem lhe chame "estado de emergência") se queriam sobreviver. Em países autoritários, como a China e em "democracias musculadas", como a Coreia do Sul e Singapura, é sempre mais facil, mas, à falta de melhor método, a coação e as multas ajudam. De um dia para o outro, ficámos todos confinados ao nosso pequeno espaço doméstico, com saídas limitadas e a privacidade ameaçada. Passámos, sem dar por isso, a exilados em casa própria. Agora, somos todos sírios. Após esta crise, veremos. Pode ser que a experiência nos torne mais sábios e solidários.
A solidariedade, no entanto, não parece ser interpretada da mesma maneira pelos governantes desta Europa a 27. Como era esperado, as clivagens entre Norte e Sul (leia-se países "ricos" e países "pobres") voltaram a fazer sentir-se. Nem uma crise humanitária, com estas dimensões, parece ter demovido os "empedernidos corações" calvinistas e luteranos na Holanda e na Alemanha. Perante o apelo de Sánchez, Conte e Costa, apoiados por Macron, para que fossem criados "bonds" europeus como forma solidária de combater a crise (os chamados "Coronabonds"), a Holanda, a Alemanha, a Austria e a Finlândia (o bloco do "marco"), opuseram-se firmemente, argumentando que o Mecanismo Europeu de Estabilidade, criado em 2012, poderia ser utilizado para este fim. Acontece, que a sugestão dos países do Sul, que pretendiam "dividir o mal pelas aldeias" (criando um fundo temporário àparte), não convém à Holanda e à Alemanha, mais interessados em emprestar dinheiro, do qual possam receber juros. Já Portugal, Espanha e Itália, países fortemente penalizados com os "resgates" sofridos, após a crise de 2008, não querem repetir a experiência e criticaram fortemente esta posição, que trará menos solidariedade e mais desigualdade entre os países membros.
Esteve bem Costa, ao criticar publicamente o ministro das finanças holandês (Wopke Hoekstra) que "sugeriu que a UE investigasse o que justifica alguns países não terem verbas suficientes (!?) para lidar com os impactos económicos da crise motivada pelo coronavírus". Depois do cretino Jeroen Dijsselbloem ter afirmado, em 2017, que os países do Sul "só pensam em mulheres e vinho" (!?), esta é a segunda vez que ministros holandeses repetem afirmações arrogantes, com base numa pretensa superioridade, sustentada pelo dinheiro. De resto, o primeiro-ministro Rutte é da mesma opinião, o que não espanta, vindo de um governo cuja ideologia neoliberal sempre defendeu o primado da economia sobre as pessoas. A situação agravou-se, com o crescimento de dois partidos de extrema-direita (leia-se neo-fascistas) o PVV (Wilders) e o FvD (Baudet),  o segundo dos quais tem a maioria na primeira câmara (Senado), o que pode explicar as reticências de Rute em libertar verbas de coesão, com medo de perder votos para a direita.
Azar dos Távoras: a Holanda, portanto um país com um dos melhores sistemas de saúde do Mundo, de acordo com os parâmetros da OMS, tinha (às 19h de hoje) um total de 9.762 infectados e 639 mortos pelo corona vírus,  sendo já 10º país com mais casos de infectados no Mundo (worldometer).
Muito mais haveria a dizer. Por exemplo, sobre a política de confinamento seguida, que permitiu a milhares de holandeses regressarem de férias sem serem testados, o reduzido número de testes praticado diariamente (cerca de 2000) e a política de comércio semi-aberto no início, o que facilitou o contágio, como, de resto, aconteceu em Inglaterra. Contrariamente, ao que possa pensar-se, Portugal, Espanha e Itália, são os países com as medidas mais drásticas da Europa, relativamente ao isolamento e aplicação da lei neste momento. Isso não evitou a propagação do vírus como sabemos (a Itália tinha hoje 86.498 infectados e 9.134 mortos e a Espanha 72.248 infectados e 5.812 mortos, respectivamente), mas os restantes países para lá caminham. É só uma questão de tempo.
Nem só do corona vírus, morrem pessoas, no entanto. Nas últimas semanas, foram muitos os conhecidos e alguns amigos que faleceram. Deles, falarei no próximo "post".

(continua)

Carta de um vírus em vilegiatura

Genoma do do coronavirus, 2019-nCoV de Wuhan (Instituto Pasteur)
Viva, estou a falar-te daqui do meio do muco que enche os alvéolos pulmonares de um tipo qualquer — não faço ideia quem seja.
É mais um.
Não me consegues ver, mas eu vejo-te muito bem.
Não me consegues ver, não nos consegues ver, mas nós estamos a ver-vos e somos muitos.
Somos, aliás, cada vez mais. Vamos sendo cada vez mais. Graças a ti e à tua estupidez.
Estamos a fazer exactamente aquilo que muitos de vocês fazem: a lutar pela sobrevivência, seja de que maneira for.
Mas temos uma enorme vantagem sobre vocês.
Tu, mesmo com os teus poderosos microscópios, mesmo com os teus sofisticados sequenciadores, não atinas comigo.
Eu já te tirei o retrato. De corpo inteiro.
E já percebi tudo o que me interessa sobre ti.
Mesmo que, aparentemente, tenhas sobre mim a vantagem de uma vida mais longa e os recursos que resultam do carácter poliforme do teu organismo, não tens hipótese comigo.
Nós fazemos rigorosamente apenas o que é necessário, unimo-nos, multiplicamo-nos e reproduzimo-nos mais depressa do que tu poderás alguma vez fazer. Somos mais ligeiros, mais simples e menos dados a distracções do que tu.
Estamos totalmente focados na nossa tarefa.
E estamos por todo o lado.
À espreita.
À primeira oportunidade vamo-nos agarrar a cada superfície do teu ambiente, a cada peça da tua roupa, vamos pousar em cada ponto do teu corpo, vamo-nos infiltrar por cada um dos teus tecidos, vamo-nos meter por cada um dos teus poros, furar as paredes de cada uma das tuas células. Vamos andar pacientemente à procura de cada uma dessas entradas. A nossa vida consiste em aprender como.
Só fazemos isso. Temos tempo.
Tu não.
O tempo que andas a perder com discussões inúteis, é o tempo que nós vamos aproveitar para te aniquilar. Não sobrará um único de vós.
Estavas talvez à espera de um meteoro? Algo vindo do além? Um “castigo” de uma qualquer divindade, dessas que vocês gostam de criar para vos consolar nas vossas frustrações?
Pois, não te canses mais.
Nós já aqui estamos.
Mesmo ao teu lado. Não nos viste?
Estamos aqui mesmo.
À espreita. 


A vigiar as tuas células.

Não vai sobrar um único de vocês.
E tu estás a ajudar, felizmente. Oh se estás!
A cada dia que passa, verifico que a tua ajuda é preciosa. Nem sei o que faria sem ela…
Tudo o que podias fazer de errado, fizeste-o no passado e continuas a fazê-lo agora. Estragaste tudo à tua volta. Mas, sobretudo, estragaste aquilo que te trouxe ao ponto em que estás — os teus laços com os outros.
Que bom que andem agora todos às cotoveladas!
Juntos, tu com os outros, sois imbatíveis. Mas, felizmente, fizeste tudo para quebrar esses laços. És tão estúpido!
E eu estou tão feliz por o seres.
Porque isso facilita imensamente a minha tarefa.
E traz cada vez mais lutadores para o meu exército.
Exército, sim.
Porque é, de facto, uma guerra que aqui estamos a travar. Mas tu vais perdê-la!
Repara como consigo liquidar já, sem qualquer dificuldade, os mais velhos. É canja. Consegui perceber logo isso.
Mas, não te iludas! Tu, falo contigo, jovem, vais a seguir!
Vou continuar a aprender e, em breve, nem os que ainda estão para nascer vão sobrar. A estupidez não vos vai permitir ter tempo para perceber como é que nós vos vamos liquidar a todos, com toda a  facilidade, velhos, novos ou fetos.
A estupidez não escolhe idades, e a tua idade não vai, de facto, ser impedimento para eu concluir a minha tarefa.
Nem há locais ou situações privilegiadas para te defenderes de mim.
Não deixaremos de cumprir o nosso destino. E tu? Qual é o teu?

Nós, tu e eu, estamos intimamente ligados, desde os tempos mais remotos. Os nossos destinos parecem desde sempre ligados. Não penses, portanto, que te vais livrar facilmente de mim.
Seja onde for, seja quem for, mais hora menos hora, repito: não vai sobrar um único de vocês!

A menos que…

A menos que, para meu azar, resolvas emendar a mão. E percebas que, sem vocês, nós também não vamos longe e que isto é uma guerra que, nem nós poderíamos ganhar sem a vossa existência. É que nós precisamos de vocês, mas vocês não precisam de nós, para nada.
Já viste?
O que estás a fazer então?
O que andas para aí a fazer, a perder tempo em vez de restabeleceres os teus laços com os outros? De trabalhares para os outros, como trabalhas para ti?
Talvez assim me conseguisses ver, finalmente,
Talvez assim conseguisses virar o desfecho desta fatalidade.
Mas, por enquanto, apenas eu te vejo a ti.
Não me consegues ver, a mim, é verdade, mas consegues ver os outros, teus semelhantes, à tua volta.
Repara como estão vivos. Repara como, no fundo, querem todos continuar vivos como nós.
Pensas que algum desses, que vês à tua volta, quer morrer às minhas mãos?
Oh que ingénuo! Todos querem o mesmo que tu.
A única diferença entre vocês, é que pensas que só tu tens o poder de escapar às consequências da minha luta pela sobrevivência. Que te vais safar. Mas, como te disse antes, não vais. Só terás o poder de te veres livre de mim se assumires que o não podes fazer contando apenas contigo.
Eu sou muito mais esperto que tu. A minha luta por permanecer vivo resume-se, simplesmente, a criar mais de nós. Por outro lado, repara, não há, entre nós, velhos e novos, pretos e brancos, ricos e pobres, do norte ou do sul. Somos muitos, somos rigorosamente iguais e, graças a ti, seremos sempre quantos formos necessários para sobreviver. É por isso que somos imbatíveis.
Cada um de vocês que tu, com a tua estupidez, sacrificas à minha determinação, é alguém que não vais poder substituir. Que te poderia ajudar. Alguém diferente. Alguém que te poderia talvez ajudar precisamente por ser diferente. É nisso que reside o teu poder, não vês?!
Nós estamos todos focados no mesmo objectivo e cada um de nós que tomba será substituído, à tua custa, por alguém exactamente igual a mim, com a mesma determinação, o mesmo propósito e a mesma sanha por te sugar o último traço do teu ADN.
Eu estou focado e só me interessa uma coisa. Cada um de nós que desaparece é substituído por uma multidão de outros, que toma o nosso lugar e se junta aos outros nesse propósito. É o nosso foco que mantém, justamente as nossas fileiras em crescimento. É o nosso foco, único, que nos dá a força de que precisamos. O teu foco enfraquece-te.
Vê os que estão à tua volta. Ou melhor, ouve-os! Ouve-os, a sério. Ouve-os como ouvias quando andavas a dar os teus primeiros passos nesta Terra. Eles dizem tudo o que é preciso saber para mudar o rumo das coisas e tu já não sabes ouvi-los.
Talvez ainda haja tempo. Mas apressa-te porque eu viajo ligeiro. Quase nada pode impedir o meu desígnio.
Eu e os meus irmãos temos a simplicidade das coisas que perduram, que se adaptam, que resistem. Vimos de longe. Temos o foco, o espaço e todo o tempo do mundo..
E tu?

2020/03/26

Duas semanas noutra cidade (3): Fronteiras, Espanha e Pandemia

Foto Brunoticias

Após uma semana de espera, o segundo telefonema do Consulado Português em Sevilha. O interlocutor, simpático, começa por perguntar se já "regressei" a Portugal. Dada a resposta negativa, informa que os serviços consulares (leia-se MNE) não conseguiram reunir os 20 passageiros necessários, que justificasse o aluguer de um autocarro para um repatriamento colectivo. Pragmático, passou às alternativas existentes: apanhar um autocarro de carreira Sevilha-Ayamonte (15 euros) e, de lá, chamar um táxi que me leve a V.R. Sto. António (20 euros). A partir daí, tinha duas opções: comboio V. R. Sto. António-Lisboa (com mudança em Faro); ou autocarro, directo, até Lisboa. Outra opção (mais cara), seria alugar um carro com chauffeur, mais barato que um táxi, por um preço médio de 150 euros até à fronteira de V. Real. Acrescentou, que se trata de carros de luxo, agora a preço reduzido (!?), dada a escassez da procura. Perguntou-me qual a minha situação e se podia esperar em segurança. Respondi que sim. Realista, acrescentou: "nesse caso, deixe-se estar onde está, que está bem. Quanto mais viajar, maior o risco. De qualquer das formas, quando regressar, terá sempre de cumprir os 15 dias de quarentena, obrigatórios em Portugal." Na despedida, não deixou de sublinhar que eu tinha o seu número de telefone e que o Consulado estaria sempre à disposição para qualquer informação ou ajuda, se necessário...
Contas feitas, e na melhor das hipóteses, irei permanecer aqui até dia 11de Abril, quando o segundo período de quarentena no país terminar.
Com menos de 15 dias de quarentena (o primeiro período ainda não expirou), a situação em Espanha é de alarme generalizado. O país atravessa uma crise sanitária sem precedentes e as estruturas de acolhimento estão à beira do colapso. É o caso de Madrid (o mais grave) onde os hospitais públicos não têm meios humanos e materiais, para receber todos os infectados. O governo fez um apelo aos hospitais privados, alguns dos quais já disponibilizaram alas inteiras para tratamento dos mais necessitados e encomendou 14 milhões de euros em material sanitário. O pessoal médico começa a acusar o esforço titânico a que tem estado submetido e o contacto com os infectados já provocou as primeiras baixas que, nalguns centros, são da ordem dos 20% entre os médicos e enfermeiros! Os meios necessários (camas, máscaras, respiradores, kits de teste, desinfectantes) são manifestamente insuficientes para as proporções desta epidemia e os apelos ao governo são, por isso, constantes. Afinal, os médicos estão na primeira linha do combate e serão os primeiros infectados. São eles os heróis, nos dias que passam. Diariamente, a população de Sevilha, assoma às janelas pelas 20h. para agradecer com uma salva de palmas a dedicação demonstrada. Minutos impressionantes.
Nem tudo são palmas, no entanto. Também há "caçaroladas". A primeira, contra o rei Filipe VI, durante o discurso onde este animava o país, e que coincidiu com anúncio onde renunciava à herança do seu pai, por manifesta corrupção; a segunda, contra o governo, por ter decretado o prolongamento do estado de calamidade pública, agora reforçado com medidas austeras de circulação e multas pesadas para quem não obedecer. Os transportes públicos foram reduzidos a metade e a entrada nos únicos estabelecimentos abertos (supermercados e farmácias) é feita a conta-gotas, com filas de pessoas que guardam distância entre si. Pesem as medidas tomadas, o número de mortos não pára de aumentar. À hora de escrever este texto, o Worldometer (OMS) registava um total de 56 197 infectados e 4145 mortes em Espanha, o 4% país com mais infectados a nível mundial, depois da China, USA e Itália. Uma catástrofe sem precedentes. A infecção já está em 196 países, apesar de alguns não publicarem estatísticas fiáveis.
Países com maior número de infecções (short list):
China: 81.285 (3.287 mortes)
USA: 74.388 (1.072)
Itália: 74.386 (7.503)
Espanha: 56.197 (4.145)
Alemanha: 41.519 (239)
Irão: 29.406 (2.234)
França: 25.233 (1.331)
Suiça: 11.712 (191)
UK: 9.849 (477)
Coreia do Sul: 9.241 (131)        
Holanda: 7.431 (434)    
Portugal, aparece em 15º lugar com 3.544 infectados e 60 mortes.
A registar, pela positiva, a redução do número de mortos na China e na Coreia do Sul, onde a epidemia foi considerada controlada (o que pode ser explicado pela disciplina e pelas austeras medidas militares de contenção e prevenção); o baixo-número de mortos na Alemanha (o que pode ser explicado pelo sistema de prevenção existente: 160 000 testes/dia - mais do que na Coreia do Sul) - o maior número de camas por habitante (8/26) e menos mortes de pessoas idosas.
A surpresa, surge do Reino Unido (o país que criou o National Health Service), da Suíça e da Holanda, países com bons sistemas de saúde. Se, no primeiro caso, uma das explicações poderá ter a ver com a descapitalização do NHS e a atitude negligente do governo neoliberal de Boris Johnson, que, para manter a economia a funcionar, autorizou a abertura do comércio, para além do razoável (deixando a porta aberta aos contactos sociais que ampliaram as infecções); já na Suíça e na Holanda, países pequenos com grande densidade populacional, a possibilidade de contágio é um factor de risco. Acresce que, em ambos os países, a descapitalização e consequente privatização dos serviços públicos, também se fazem sentir o que, de resto, é transversal à maioria dos países europeus.
Portugal, em termos relativos ainda pouco atingido, confronta-se com o mesmo problema: depois de uma década de desinvestimento no sector público (anos da Troika, com Passos Coelho e anos de estabilização com Costa) não recuperou os níveis anteriores a 2011. A privatização da saúde (50% do sector) aumentou o fosso entre os "have" e os "have not", com as consequências conhecidas. Com a curva dos infectados a aumentar (ainda que abaixo das projecções mais pessimistas), o sistema do SNS está em risco de implosão e o governo deve tomar medidas que defendam a população. Desde logo a nível sanitário (comprando material e obrigando os privados a disponibilizar instalações e testes para a população) e, simultaneamente, criando medidas temporárias de apoio a desempregados e empresas em dificuldade. Estamos num tempo de solidariedade. A economia, fica para depois.
Este é, de resto, o apelo de Sanchez (PSOE) e outros líderes europeus, que pediu um novo "Plano Marshall" para a Europa, ao que a presidente da Comissão (Von der Leyen) respondeu que a Comissão dispunha de meios suficientes para suster a crise (!?). Quanto à comissária da saúde europeia, parece perdida em combate, já que ninguém ouve falar dela...
No meio do caos organizado em que se transformou esta pandemia, não faltam as vozes da oposição, para quem tudo o que os governos fazem está mal feito. No caso espanhol, o líder do Vox (extrema-direita) secundado pelo PP (franquista), falam todos os dias das suas casas, onde estão refugiados em quarentena. Abascal (Vox) criticou o governo por autorizar manifestações feministas no dia 8 de Março que, na sua "perspectiva", teriam aumentado o risco de contágio (!?); ontem, voltou a manifestar-se, exigindo que os imigrantes ilegais pagassem todos os gastos se fossem atendidos em hospitais públicos (!?). Esqueceu-se de referir os milhares de imigrantes legais, que trabalham nas estufas andaluzas, sem máscaras e sem luvas, onde são explorados e vivem em condições deploráveis de salubridade.
Outro palerma, é um médico de Granada, que dá pelo nome de Jésus Candel e coloca vídeos na Net. Começou por elogiar os serviços médicos nos primeiros dias, para mudar o discurso à medida que faltava material e o hospital onde trabalha deixava de responder às necessidades. O homem pensou que tinha graça e fez das suas intervenções diárias, uma espécie de "stand-up comedy", onde injuriava tudo e todos, a começar pelo primeiro-ministro. A idiotice (um caso de insubordinação inqualificável) foi criticada por colegas de profissão e Joan Planas, um comentador que (num vídeo viral) exigiu a Candel que pedisse desculpa ao povo espanhol. Já esta semana, Candel retratou-se e veio mudar o discurso, agora com lágrimas nos olhos. O medo e o pânico não poupam ninguém, mesmo os mais parvos.
Esta é, provavelmente, a maior lição desta pandemia. Atinge tudo e todos: doentes e médicos, pobres e ricos, famosos e desconhecidos: do monarca de Mónaco ao príncipe Charles de Inglaterra; de Irene Montero (Podemos), ministra da Igualdade a Carmen Calvo (PSOE), vice-presidente do governo espanhol, que, hoje mesmo, teve alta do hospital onde se encontrava internada devido ao Coronavírus. Também o juíz Garzón, se encontra hospitalizado com dificuldades respiratórias.

(continua)





 

2020/03/24

Duas semanas noutra cidade (2): isolamento, rotinas e notícias


Em dias de quarentena forçada, continuamos à espera de notícias do consulado de Sevilha, sobre um eventual repatriamento colectivo, organizado pelo governo português a partir da capital andaluza. 
Como era expectável, o governo espanhol decidiu prolongar o período inicial da quarentena, de 15 para 30 dias. O governo português fez o mesmo, o que de resto estava implícito no "estado de emergência" decretado no passado 15 de Março. A quarentena está para durar, pelo menos até dia 11 de Abril. A circulação, entre os dois países, foi drasticamente limitada (menos 99% de tráfico terrestre, segundo a imprensa espanhola) e as punições para os infractores podem atingir multas na ordem dos milhares de euros. As medidas mais drásticas da União Europeia, segundo Sánchez, o primeiro-ministro. 
Outros países tomaram medidas similares (o que, em si, é compreensível) e não tardará muito que a população europeia (quiçás mundial) fique confinada em casa, esperando pelo abrandamento da "crise sanitária". Se a "coisa" resultar, o confinamento pode ser uma tentação para ditadores em potência. Não por acaso, foram os partidos de direita extrema (Chega, CDS, etc...) os primeiros a exigir o "estado de emergência", apesar de não saber muito bem o que fazer com ele. Para já, os populistas estão desaparecidos em combate, ainda que o "desventurado" André, tenha andado pelos hospitais a tentar capitalizar o descontentamento dos médicos e utentes, na tentativa vã de culpar o SNS (leia-se, o governo) pelos infortúnios de uma sociedade pouco preparada para uma epidemia destas dimensões. Ninguém estava preparado. A prova é o crescimento exponencial do vírus a nível mundial, como pode ser observado diariamente na app "worldometer", que actualiza ao minuto as cifras disponibilizadas pela Organização Mundial de Saúde. Vão lá ver e depois falem.
Para já, há que seguir as indicações sanitárias aconselhadas e permanecer em casa. Parece fácil, mas não é. A principal dificuldade, é a falta de exercício. Compensamos com sessões de yoga diárias e subidas à açoteia que cobre todo o edifício (vantagens mediterrânicas), lugar de reunião dos condóminos e dos filhos em tempo de clausura. Uma vez ao dia, descemos para ir ao supermercado (falta sempre qualquer coisa), à farmácia ou ao ATM. Aproveito para comprar o "El País" impresso, já que nem todos os artigos estão disponíveis online. Os "workshops" na cozinha fazem parte da rotina diária e temo pelos quilos acumulados.  As leituras diárias, online e não só, são obrigatórias, dada a informação importante que circula, ainda que a opinião disparatada tenha aumentado em proporção. Podemos dividir as notícias que circulam em três grandes grupos: as catastrofistas, as cómicas e as cínicas. As primeiras, vêem na actual pandemia, um sinal do fim do Mundo (fundamentalistas religiosos e negacionistas em geral); as segundas, fazem circular anedotas, algumas delas geniais (o humor é importante nos dias que correm); finalmente, as terceiras, provavelmente as mais  pessimistas, ainda que, às vezes, com razão. Afinal, um pessimista é um optimista realista.  
Das centenas de notícias lidas, respigamos alguns assuntos que nos chamaram a atenção:
Desde logo, o "estado de excepção", promulgado pelo governo português, depois de um apelo do Presidente da República, após ouvir o Conselho de Estado no passado dia 18. A medida seria aprovada por uma maioria da AR, com abstenção do PCP, Verdes e IL. Uma lei polémica, já que é a primeira vez que  é aplicada em 44 anos de democracia (se exceptuarmos o período que se seguiu ao 25 de Abril, quando os militares, do MFA, garantiam a ordem democrática) e que continua a ser fortemente criticada em diversos artigos de opinião, e.o. por Raquel Varela, Manuel Loff, Rui Tavares (Público), Francisco Louçã (Expresso), Garcia Pereira (Diário de Notícias) ou Carlos Matos Gomes (Tornado). No seu discurso perante a AR, António Costa procurou serenar os ânimos, ao garantir que as liberdades fundamentais (leia-se, democracia) estavam salvaguardas. Resta saber se, ao prolongamento da situação de excepção, se seguirá uma situação de aceitação destas mesmas medidas, que poderão ser prolongadas caso a crise social e económica, que, inevitavelmente, virá a seguir, lance o pânico nos "mercados". Conhecemos o enredo: em situação de crise, a especulação aumentará exponenciamente e, a não serem tomadas medidas preventivas desde já (dos governos, mas também dos cidadãos que neles votaram) podemos vir a confrontar-nos com um dos dois pesadelos: ou controlo financeiro da economia e, por extensão da política, como aconteceu após o "crash" de 2008; ou o fascismo (implícito e explícito), que é a forma mais drástica do ditadura do capital. Como declarava, ontem, Yanis Varoufakis, em debate online organizado pelo movimento DIEM25, "a esta hora, em Budapeste, Orbán e os seus congéneres europeus, como Le Pen e Salvini, esfregam as mãos, à espera da próxima crise que facilitará os regimes autoritários."
Outras notícias, não menos importantes, são naturalmente os boletins clínicos e conselhos práticos fornecidos diariamente pela OMS e, no caso português, pela DGS. Pesem algumas discrepâncias em dados e opiniões abalizadas, algumas coisas começam, no entanto, a ser aceites pelo mundo científico. Assim, e contrariamente à notícia difundida em Janeiro, o Coronavírus pode ter sido originado noutro local, que não em Wuhan, apesar de ter sido num mercado dessa cidade que primeiro foi detectado. De acordo com cientistas chineses, japoneses, taiwaneses e norte-americanos, o vírus pode, inclusive, ter origem nos EUA, o único país onde foram (até agora) encontradas as cinco estirpes do Corona. O seu aparecimento na Ásia, não exclui a possibilidade de ter sido transportado para Wuhan, onde decorreram exercícios militares internacionais. Em todos os outros países asiáticos (China, Coreia do Sul, Japão, Taiwan, Singapura, etc.), o vírus tem apenas uma ou duas estirpes. Está tudo num artigo publicado no El Ciudadano.
Também sabemos que a China e a Coreia do Sul, os primeiros países (com o Japão) a serem atingidos pela epidemia, conseguiram o "achatamento da curva" de expansão dos infectados, reduzindo o número de mortos. Dos 1500 casos diários registados no pico da crise, Wuhan passou a 6 por dia! Uma das explicações para o sucesso, prende-se, naturalmente, com a disciplina asiática o que, num estado totalitário como a China, não será difícil de acatar. Já na Coreia do Sul (o segundo país asiático mais infectado), assim que souberam da situação chinesa, foi desenvolvida uma estratégia nacional: as 4 maiores fábricas farmacêuticas do país receberam meios e dinheiro para fabricar kits de teste, o que permitiu testar 20 000 cidadãos diariamente, em hospitais e unidades clínicas de proximidade. Simultaneamente, foram criados 56 laboratórios em todo o país, para analisar os resultados e, desta forma, separar os cidadãos infectados da restante população. Hoje, tanto os médicos chineses, como os sul-coreanos, estão na Europa (o continente mais afectado) a ajudar em países como a Itália e a Espanha. A prevenção e a disciplina, não bastam, mas ajudam.

(continua)