2020/06/30

Quinze semanas noutra cidade: É a pobreza, estúpido!


Escrevo em vésperas do encontro transfronteiriço, entre os chefes de estado de Portugal e Espanha, marcado para o próximo dia 1 de Julho, em Badajoz. A cerimónia assinala a reabertura da fronteira terrestre entre os dois países, encerrada desde o passado 16 de Março devido ao Coronavírus.
Se tudo correr bem, a partir de amanhã, será possível voltar a atravessar a fronteira rodoviária, já que a linha ferroviária, entre Évora e Badajoz (80km), continua por construir. Um pequeno passo para a Humanidade, mas (aparentemente) um grande passo para Portugal que, apesar dos inúmeros programas de financiamento europeu, nunca considerou prioritário terminar uma linha ferroviária que ligasse o Alentejo à Extremadura espanhola. Só muito recentemente, foi dada "luz verde" à construção de uma linha de mercadorias entre Sines e Badajoz (via Évora) que - pasme-se! - quando estiver concluída, não passará por Caia, que já dispõe de uma estação (desactivada) de passageiros. Tudo indica que a linha será apenas para mercadorias. Será que receiam o vírus espanhol?
Entretanto, indiferente às fronteiras, o vírus continua a propagar-se pelo Mundo, agora a uma velocidade estonteante. Tedros Adhanom Ghebreyesus, secretário-geral da Organização Mundial da saúde (OMS) vem dizendo, há dias, que os países não podem confiar nas notícias da diminuição dos contágios. "Estamos numa fase nova e perigosa", repete. Quase metade dos novos casos, são oriundos do continente americano, mas os números do Sul da Ásia e do Médio-Oriente, não são menos preocupantes. Mais de dois terços, dos falecimentos recentes, ocorreram na América. Os EUA já ultrapassaram os 129.000 mortos, o Brasil 59.000, o México 22.000, o Perú 9.500 e o Chile 5.700.
A OMS alertou para o avanço imparável do vírus, na passada semana, quando se atingiu os 150.000 casos diários, pela primeira vez. Desde então, a situação continuou a piorar. No domingo passado, atingiu 183.000, a cifra mais alta desde o início da pandemia. Para ilustrar o ritmo, que está a atingir o Coronavírus, o director da OMS empregou uma comparação bastante gráfica: foram registados em todo o Mundo mais de 10 milhões de casos. Chegou-se ao primeiro milhão, depois de 3 meses de epidemia. O último milhão foi contabilizado apenas em oito dias. "Parece que todos os dias, chegamos a um novo e sombrio record", avisa Ghebreyesus. Muitos destes estados, já sofreram uma primeira onda de contágios e conseguiram controlá-los após alguns meses de confinamento. O epidemiologista Antoni Trilla não crê que possamos falar de uma "segunda vaga", em quase nenhum país e menos ainda em estados europeus como a Alemanha ou Portugal, considerados países-modelo há poucas semanas atrás. Trilla considera que ainda não saímos da primeira vaga de contágios. As recidivas que estão a acontecer, um pouco por todo o Mundo (China, Coreia do Sul, Taiwan, Alemanha, Islândia, Portugal) obrigaram países, como a Alemanha, a isolar um bairro inteiro (640. 000 pessoas) devido a um foco de contágio que atingiu 1.500 trabalhadores numa fábrica de carne. Não porque os alemães tivesse lidado mal com a pandemia, mas porque, apesar de terem feito tudo bem, não puderam evitar que houvesse uma recidiva. Já a situação nos Estados Unidos e na América Latina, é de uma gravidade extrema, assegura Trilla, não só porque estão a aparecer dezenas de milhares de casos todos os dias, como dentro em pouco terá início o inverno austral, uma "receita perfeita", com mais vírus circulando, mais frio, mais pessoas que permanecem em casa e menos possibilidade de haver condições de temperatura, de humidade e sol, que ajudam a desacelerar a transmissão do vírus.
Em Portugal, país considerado modelo, pela forma como conseguiu controlar a chegada da pandemia, também parecem estar agora mais preocupados com o ritmo de novos contágios. O governo impôs novas restrições (reuniões limitadas a dez pessoas) encerramento do comércio às 20h. e multas nos casos de incumprimento. Aparentemente, o alarme teria disparado depois de uma festa particular que infectou dezenas de jovens em Lagos e, posteriormente, uma "beach party" de mil jovens em Carcavelos, muitos dos quais apresentaram sinais de contágio nos dias seguintes.
Como é habitual nestas ocasiões, não faltaram as críticas dos moralistas de serviço, que logo associaram a "inconsciência" dos jovens festivaleiros ao surgimento dos novos focos de contágio detectados. É bem possível que alguns (muitos) desses jovens tenham contraído o vírus e sejam agora potenciais portadores do Covid. Acontece que, depois dos eventos relatados e amplamente difundidos e comentados pela Comunicação Social, os casos de contágio na Grande Lisboa e na margem Sul, aumentaram exponencialmente, ao ponto do diário espanhol "El País", ter feito uma notícia de primeira página, onde se podia ler que "3 milhões de portugueses da grande Lisboa, tinham voltado ao confinamento". Um exagero, claro, logo desmentido pelo governo português, já que notícias destas poderão afectar o turismo de Verão, agora que grande parte dos turistas nórdicos hesitam em passar férias no mediterrâneo e Portugal voltou a ser notícia por más razões.
Acontece que a "Grande Lisboa", de que fala o artigo de "El País", não é uma realidade uniforme, sendo constituída por diversas cidades-dormitório e bairros periféricos, onde habitam a maior parte das pessoas que trabalham na capital. Muitas delas, a maior parte, desloca-se diariamente para a grande cidade, em transportes suburbanos apinhados (comboios, autocarros, metropolitanos); e outros, em menor número, em carros privados. Também muitos destes trabalhadores, vivem em bairros degradados e desempenham funções de maior contágio (restauração, construção civil, limpezas em lares e hospitais); enquanto outros, durante o confinamento, não necessitaram sequer de sair de casa para desempenharem as suas funções (teletrabalho). Uns, a maior parte, têm os filhos em escolas publicas, onde muitas vezes não existem condições de salubridade e onde não há aquecimento; e outros, em menor número, têm filhos (em colégios privados) que transportam em carros privados. Um Mundo de diferenças.
É pois, natural, que a maior parte dos novos casos de infectados com o vírus, sejam da Grande Lisboa, onde vive um 1/3 da população do país. Como também é natural, serem os mais desfavorecidos (social e economicamente) os primeiros infectados. Dito de outro modo: haverá sempre mais casos de Coronavírus na Amadora, em Loures ou nas "Jamaicas" deste país, do que no Restelo, Telheiras ou Cascais.
Parece pois, óbvio, que, mais do que a inconsciência dos jovens e as festas da praia, o vírus que urge mesmo combater, é o vírus da pobreza (e da desigualdade), a maior das epidemias portuguesas. Combatam-se ambas com determinação e medidas adequadas e a imunidade dos portugueses melhorará de forma significativa. Prevenir, sempre foi melhor do que remediar.