2011/02/26

CABARET FILOSÓFICO

O que será? Parece não jogar, a liga a cair, a coxa a espreitar e o raciocínio a ir-se. Mas não será assim na tradição alemã. Desde logo porque Karl Valentin marca um estilo que faz do burlesco uma metafísica, ou não será isso que acontece quando uma carteira da primeira classe antiga perde as pernas e esmaga um corpo infante, como num desmoronamento, ficando de fora o pé descomunal do adolescente na crise de crescimento quando o corpo estica mais que a cabeça. Não lhe chamou Brecht clown metafísico? Aquele ar desorbitado, aquela capacidade de fazer do non sense uma anarquia estimulante, aquele tipo de resposta inesperado que deu a quem lhe oferecera um livro: e não pode mandar-mo já lido? E não dizia dele, também Brecht, que era a blague em corpo e não um contador de anedotas?
Que o cabaret é de um tempo de crises é certamente. Que é um lugar mais liberto que outros de polícias e interditos também é verdade. É mesmo um lugar em que os polícias podem ser foras-da-lei. Nele tudo se diz, tudo vale, na penumbra e de sentidos alçados e a censura quando entra, entra com o porrete e vai tudo para a esquadra. Mas quando acontece e o espectáculo está no ar, no espaço do Cabaret todos os tráficos se cruzam, os “sérios e respeitáveis” e os obscuros e sanguinários. A crise não é mole e faz vítimas. Um dos seus aspectos mais salientes é a intensidade da violência. Na crise a violência desregula e vai para patamares de vulgarização que choca apenas os despertos. A crise é um adormecimento generalizado, um dormir acordado que não passa, um modo de hibernar. No cabaret a regra, sendo o vale tudo, permite que a verdade apareça, sem disfarce. E na tradição alemã, a que este Cabaret Keuner se refere, mais pelos textos que pelo espectáculo, não há nenhum desprezo do que possa ser pensar e fundamentalmente exercer a crítica num cinismo abrangente e na blague, lançar a dúvida em que outros se estatelam, colocar a pergunta proibida. Neste conjunto de pequenas histórias e apotegmas, de dúvida burlesca e de afirmações de recorte clownesco – o parvo vicentino espreita lá do seu século 15, como o bobo de Shakespeare, essas figuras da verdade autorizada por falta de estatuto que o José Carlos Faria seleccionou, montou e interpreta – viajamos por dentro de um pensamento e não propriamente saltando por um aleatório caminho de raciocínios soltos, como se salta sobre as pedras de uma ponte improvisada nas águas de um ribeiro. Por detrás, de facto, do que é representado, está um modo de indagar a realidade, uma realidade que nos coloniza como seres incapazes de a conter e mesmo de a perceber nos outros, de a decifrar relacionalmente, pois sendo o que é, de uma violência inumana, parece que não a conseguimos mudar. E é isso que Keuner detesta, a insensibilidade à dialéctica, à predisposição para a mudança que ajuda a mudar. Numa sociedade de estatutos, hierarquias e frases feitas, é cada vez mais importante que se abram espaços de perspectiva, abertas como se diz da tempestade que cessa e que regressará, abertas de pensamento. Nada mais prático e operacional que o que foi pensado com plano e principalmente o que é laborado na consciência do erro como caminho. A experimentação é a transformação do erro, a qualificação do realizado no pressuposto da democracia, da consideração do outro, como outro que é também um eu.
Este nosso Cabaret é um Cabaret da resistência ao lugar comum e principalmente à inevitabilidade do abismo, como ele é pintado pelos que entoam constantemente o coro da dívida e têm na Crise uma espécie de emprego garantido e também a garantia de lucros cada vez mais fabulosos.
Disseram ao Senhor Keuner que ele estava na mesma e ele corou. A nós dizem-no que apertando muito o cinto nos fortaleceremos. E nós dizemos: até quando? Quando soará a hora da democracia concreta neste totalitarismo kitsch que nos leva manipulados? O populismo novelizado da era mediática estará para a sociedade do espectáculo como a fé cega outrora para os grandiosos autos de fé da inquisição.

2011/02/23

O teste do tempo

O "Plano Inclinado" foi suspenso. Não é um programa que se veja de forma neutra, os seus actores não são neutros, o que dizem não é neutro, o próprio aparecimento do programa na grelha da SIC N não terá sido neutro. Revejo-me em muitas opiniões ali emitidas, não me revejo noutras. Há milhentas razões para concordar e outras tantas para discordar daquilo que ali é dito. Ouvimos os seus intervenientes, questionamos o que dizem, tentamos aferir a sua coerência e fazemos a nossa avaliação.
Acontecerá certamente isso com todos os espectadores. E porquê? É o conceito do programa que o dita.  Quem fala é responsável pelo que diz e quem ouve é responsável pelas conclusões que tira. O "Plano Inclinado" é uma introdução à cidadania. Diz-nos enquanto decorre e eu digo-o depois de a ele assistir: "somos todos responsáveis! Haja ferramentas..."
A minha avaliação pessoal sobre o programa nem sequer é positiva. Considero que muitos intervenientes ficam claramente aquém do seu papel e da sua crítica, por exemplo. Mas prezo bastante o facto de que, em geral, não se colocam tão pouco além do seu papel e da sua crítica.
E prezo, sobretudo, o respeito que o conceito do programa revela pela capacidade de ser eu a decidir o que penso de tudo aquilo. O respeito pela inteligência dos outros não é um valor muito estimado em Portugal e isso reflecte-se na televisão portuguesa. Se fosse, um programa que pratica o respeito não seria exemplo praticamente único, inserido na grelha de um canal temático, emitido a horas tardias.
Não sei porquê, ao assistir a certos episódios mais contundentes, daqueles em que se punham nomes aos bois e aos boys, pensava para com os meus botões que poderíamos estar perante um exemplo de que afinal alguma coisa mudou de facto em Portugal. A denúncia pública dos responsáveis pelos problemas do país, feita de forma sistemática e sustentada, é possível sem que estes ou as forças obscuras que os comandam caiam na tentação de intervir. O tique inquisitorial ou pidesco poderiam estar a desvanecer-se finalmente. Desvanecer não é desaparecer, mas, pensei muitas vezes, pode ser, insh'Allah, um sinal de que algo está a mudar.
Ao mesmo tempo, confesso-o, também me perguntava como e se um programa destes iria resistir. Se vencesse o teste do tempo, então sim, estaríamos perante um sinal inequívoco de que algo mudou de facto. O teste do tempo provaria que um programa deste género pode esgotar-se e desaparecer naturalmente com o tempo, por causa das suas fraquezas próprias, mas nunca, fora de tempo, pela tentação da intervenção totalitária.
Ficamos então a saber que o programa foi suspenso, sem data de regresso, para "repensar" o conceito... Não resistiu ao teste do tempo.

2011/02/22

Rio sem rir

Num seminário sobre regionalização e revisão constitucional, Rui Rio usou palavras fortíssimas para classificar a situação actual. Observou que a "economia está de gatas", acrescentou que temos gente que "está a sofrer por causa disso e vamos ainda ter mais gente a sofrer por causa disso". Descobriu que o sistema é "injusto para com essas pessoas". Classificou a dívida pública de "monstruosa". A dívida externa, rematou, é "ainda pior". Recordou os princípios do 25 de Abril, e sentenciou, grave, que o clima geral é de "impunidade". Atentos e veneradores os orgãos de comunicação reproduzem-lhe fielmente as palavras.
São necessárias "rupturas", descobriu com brilho nos olhos. E quem as promove? Ora, é muito simples: o PS, o PSD e o CDS, os partidos pleonasticamente considerados "democráticos", "os três que mais se identificam com o regime e a democracia", pois claro, os três pilares do sistema político português.
Os partidos a quem alguma divindade entregou a dura tarefa de governar, estes partidos do arco do poder, são os mesmos... que deixaram a economia de gatas e que com isso fazem  sofrer os portugueses. São os mesmos que elevaram a dívida pública à categoria de monstruosa. Os mesmos que fizeram da dívida externa algo ainda pior que uma monstruosidade! Os mesmos que construíram, pedra a pedra, a injustiça do sistema. Os mesmos que são agora convocados por Rui Rio para destruir o sistema...
E Rui Rio diz tudo isto sem rir.
E nós ouvimo-lo também, sem qualquer vontade de rir.
A sério!

2011/02/20

PRAÇATAHIR DO PAÇO

Séculos de hieróglifos, formas piramidais, paredes de símbolos em diálogos cabalísticos emaranhados, a morte omnipresente e cultuada, faraós de carne e osso o sagrado cu assente em tronos de ouro no serviço quotidiano de adorações, baixos-relevos de perfil dançante em meio corpo sugerindo a outra metade apetecida, figuras hieráticas em consonância ritual com os entrecruzados raios solares, o sol em Deus por justíssima razão, maior que outra que faz de um Deus Deus sem que isso nos aqueça, arquitectura funerária como nenhuma em grandeza e ciência construtiva, os crocodilos do Nilo e uma agricultura fertilizada pela riqueza dos detritos das cheias construíram um mito civilizacional – e a nossa escola, “nos tempos” como se diz em Moçambique, ilustrava tudo isto a cores - a que a figura de Cleópatra, enigmático poder feminino absoluto numa sociedade de absoluto poder masculino, se acrescentava como enigmática cereja no topo da pirâmide que todos vimos, agora as mais das vezes pelos olhos de um turismo obsessivo com camelos e bossas a roçar o burlesco e uma promessa de nariz partido na velha areia a levantar a adrenalina bem comportada.
Nada mais claro do que a pirâmide para se chegar à consciência de uma complexa diversidade das formas em três D, e sou fascinado de cilindros ao alto, cilindriformes mas algo fusiformes porque não, atentando contra a forma cilíndrica, e por poliedros ligeiramente aparentados na vocação de contrariar a gravidade pelo lado da inclinação que fez de Pisa a fama da sua torre. Pois hoje, muito mais tarde na história e com uns faraós de pacotilha descartáveis a mandar mais palpites que exercer poder, mas de uma arrogância personalizada ao vivo enquanto durar o que duram os mandatos, nas cidades que percorremos, raramente conseguimos conviver com seja que grandeza for, afinal, na origem, feita de lógicas artesanais, matemáticas, cáculos geométricos perfeitos e trabalho braçal escravo e colectivo – hoje todos se desvanecem perante o ecrã portátil de um PC, chame-se-lhe Magalhães ou Maçã. Hoje as formas são mais comuns pela falta de arrojo porque o arrojo é kitsch, blasé, prédio em forma de guitarra portuguesa com brilhos de madrepérola chinesa e sons de fado requentado no sonho rasteiro. É apenas endinheirado ou megalómano e faltando-lhe uma sustentação ritual humanamente convicta e anterior, como aquela que levou os homens a converter justamente o Sol em Deus. Pobres e pouco arrojadas certas partes das nossas cidades e mesmo as partes mais “sagradas” estão longe de praticar o arrojo a que esta arquitectura funerária chegou em diálogo com a morte e a eternidade – as excepções andarão por aí, poucas e austeras talvez.
Difícil será dizer que a tecnologia, hoje em dia, alcançou ou alcance o feito das pirâmides, tendo em conta a relativização das engenharias construtivas comparando épocas. Estamos de facto na era dos mercados, das fundações, dos banqueiros e das bolsas, e os poderes eleitos não têm na verdade projectos democráticos capazes de contrariar o princípio imposto da força dos interesses imediatos – os juros sobem e descem diariamente numa febre imposta a todos - a bloquear outros futuros. Não termos futuro fora dos juros da dívida é de um alcance não só reles como feito por vir, mas verdadeiramente rasteiro como destino. Os poderes de facto têm um défice de imaginação semelhante ao que equivale em imaginação o princípio reles da concorrência e do consumo (princípio da realidade dirá o outro voltando-se na tumba) ditados pela força massiva da convergência do desejo aquisitivo, construído pela vivência do simulacro de vida que as formas publicitárias engendram como auto-consciência possível – grande frase com raios, mas creio que justa!
E tudo mudou com a Praça Tahir, mesmo as pirâmides que o turismo já traíra pelo exercício até à náusea dessa doença fabril da foto de recordação ao serviço de uma nostalgia de pacote em previsão de culto mórbido, com ou sem netinhos. Mudou tudo a Praça Tahir. Praça que, como toda a Praça, é um lugar de libertação. As praças são lugares de memória, de acumulação de factos e feitos, de coragem, de atentados, de luta política e de encontro, de correrias e frentes a frentes, confronto. Quem não marca encontros numa Praça também, lugar absolutamente exposto, última probabilidade de uma conspiração e por isso apetecível? E procuro a nossa praça, a praça possível da nossa cólera convertida em actos e explosões colectivas, energias novas varrendo a mediocridade e a corrupção instaladas, capazes de ajudar a varrer os que da democracia fizeram a Casa Pia, a Dívida Pública, a face oculta, os negócios em horizonte curto e a democracia como instrumento. O Terreiro do Paço? O símbolo de séculos de centralismo exercido por todos os recém-chegados das Beiras altas e baixas e outros aparentados provincianos de costas para as suas origens, com desejo cego de Paço? Que outra Praça deitar por terra vivendo-a de outro modo, agora que a refizeram? Os Aliados? O Rossio, o pequenino rossio, sem tamanho para Revolução alguma e com aquele Teatro Nacional tacanho e coxo ao serviço de um pequeno meio também tecendo o atraso e o arcaico pós modernamente?
Quando os cravos tomaram conta de Lisboa, bem me lembro, por ter estado no Carmo e na Trindade, também no Rossio e no Terreiro do Paço, foi necessário ocupar a cidade, toda ela. Mas agora, sem os militares, mais corporativos do que nunca, o caminho é mesmo o Terreiro do Paço sem eles. Avancemos, comecemos a avançar, o primeiro passo atrairá os outros.