2020/12/24

O novo normal


A esteva (Cistus ladanifer) é uma planta muito comum em Portugal. A época da floração decorre entre Março e Junho. Nessa altura, os campos e os caminhos ficam marcados por extensas zonas cobertas pela sua flor branca e algumas pessoas referem-se-lha até como a “neve,” porque, de facto, faz lembrar um nevão tardio. São lindíssimos os campos cobertos de flor de esteva. Pessoa muito querida, todos os anos me manifestava um singelo e comovente, mas muito poético espanto perante o espectáculo, sempre igual mas sempre renovado, desta neve-esteva. 

A foto que acompanha este escrito foi tirada hoje, dia 24 de Dezembro de 2020. 
São as primeiras flores de esteva. 
Estamos em Dezembro....
Este é o ano da covid19, do vírus que era e que não era, dos estados de emergência on-off, das flores de esteva prematuras, dos crimes ambientais impunes, da miséria, das desigualdades e injustiças geradas por um sistema de que tantos beneficiam para prejuízo de tantos mais. O ano das escolhas, entre a injustiça escancarada, à vista de todos, e, perante ela, do quase generalizado assobiarismo--para-o-lado, a que também podemos chamar, talvez com mais propriedade, de cobardia criminosa. 
Este é também o ano em que tanta gente vestiu, agora sem qualquer sombra de vergonha de a exibir, uns, a roupa da estupidez sem limites e, outros, do oportunismo mais miserável, sem quaisquer escrúpulos. 
Ficará como sendo o ano do perdão a gente que devia ter sido encerrada em manicómio de alta segurança, imobilizada em câmara de dessensiblização, metida em colete de forças bem apertado e altamente sedada para não causar mais dano. 
Gente parida na “normalidade,” que já vinha de trás, uma “normalidade” que tantos ainda desejam retornar.
Por tudo isto, desejo uma excelente quadra natalícia e um ano novo profundamente anormal...

2020/12/13

Da cultura de violência e da irresponsabilidade em Portugal

Nove meses após o bárbaro assassinato do cidadão ucraniano Ihor Homenyuk, às mãos de agentes de "segurança" do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) no aeroporto de Lisboa, já muito foi escrito e dissecado. Sabem-se os pormenores, mas desconhecem-se as razões de tal procedimento. Porquê torturar e deixar morrer um homem, portador de um passaporte válido que, aparentemente, só queria tentar a sorte no nosso país? Não sabemos.  

Conhecemos a história oficial: Ihor chegou ao aeroporto de Lisboa no dia 10 de Março último, onde lhe foi barrada a entrada por, alegadamente, querer trabalhar em Portugal e não possuir um visto, exigido a cidadãos que não pertencem ao "Espaço Schengen". Seguiu-se o interrogatório habitual e a detenção do cidadão, com vista à sua deportação para Istambul, onde tinha embarcado. Dado que Ihor só falava ucraniano, foi pedida uma intérprete, que confirmou a intenção de Ihor desejar trabalhar em Portugal. Até aqui, tudo normal. Aparentemente, Ihor terá recusado regressar à Turquia, o que conduziu à sua prisão numa sala especial, onde os passageiros em trânsito são mantidos em isolamento. O que aconteceu nos três dias em que esteve detido, foi mantido em segredo até ao dia 17, quando o médico-legista chamado para confirmar o óbito, reconheceu e denunciou sinais de tortura no corpo de Ihor, que apresentava escoriações várias, sinais nas pernas de fita isoladora e lesões graves no tórax, que acabariam por impedi-lo de respirar e causar a sua morte. Esteve 15 horas atado e virado de cabeça para baixo, após ter sido torturado por 3 agentes, com o silêncio cúmplice de 9 outros agentes, que sabiam da situação e encobriram o crime. Um crime, cometido por agentes do Estado português, num país da União Europeia. Imperdoável.

A história só viria a público em finais de Março, tendo havido reacções (tímidas) dos principais partidos e organismos como a Amnistia Internacional, a exigirem um inquérito rigoroso e a suspensão dos agentes em questão. Nove meses depois (até à passada semana) o governo manteve a directora do SEF em funções, não tinha contactado a viúva de Ihor (que teve de pagar do seu bolso a transladação das cinzas) e nunca apresentou condolências. Dado que ainda não houve julgamento (os 3 agentes acusados foram suspensos de funções e aguardam em casa pelo processo) está por atribuir uma verba de indemnização, normal em casos semelhantes. 

Há muito que Portugal é criticado nas relatórios da Amnistia Internacional. Devido a torturas, mas também por falta de condições dos detidos (prisões sobrelotadas e sem condições de salubridade), penas indiscriminadamente aplicadas, violência doméstica, etc... Um país, onde a justiça está ao nível de países do "3º Mundo". Lembremos que, ainda há bem poucos anos, apareceu um cadáver decapitado (pela polícia) numa esquadra de Sacavém. Outros casos, mais recentes, confirmam estas práticas (espancamento de residentes nos bairros da Jamaica e na esquadra de Alfragide, disparos mortais contra automobilistas em fuga e, ainda esta semana, espancamento numa esquadra de Vila do Conde, que custou dois dentes a outro cidadão ucraniano...). Isto, para não falar das recentes mortes de comandos recrutas, durante exercícios de treino, como é sabido. Todos estes episódios (e não sabemos tudo), denunciam uma cultura repressiva e de punição, praticada por indivíduos (instituições) que deviam zelar pelo bem-estar das pessoas (nacionais e estrangeiros) num país onde o estado de direito é suposto funcionar. 

Muitos destes funcionários são pessoas com pouca preparação e distúrbios mentais (psicopatas) que, provavelmente, foram recusados para outras funções e acabaram por ir parar às agências de segurança (aeroportos e não só), onde podem dar livre curso à violência reprimida. Tivemos 50 anos de fascismo e uma guerra colonial (que estropiou milhares de jovens) e muita gente foi educada nesta cultura de violência. Muitos ainda andam por aí (basta ler os seus comentários nas redes sociais) e não hesitariam em praticar idênticos crimes, se tivessem oportunidade para isso.  

Tudo isto tem de ser avaliado, revisto e renovado, sob pena de instituições como o SEF continuarem em "roda livre", tornando-se um "estado dentro do estado". Para isso, são necessários gestores da coisa pública (políticos, magistrados, directores de serviço) com coragem, uma coisa que não abunda na classe dirigente do país, onde "toda a gente é amiga de toda a gente" e tem medo de tomar decisões impopulares para "não ferir susceptibilidades". Todos eles têm "telhados de vidro" e, por isso, António Costa mantém Eduardo Cabrita -  um "yes man", burocrata e medíocre - como ministro da tutela. Os amigos são para as ocasiões. 

2020/12/07

Monólogos da Vacina

XI JINPING, presidente "ad eternum" (China):

"Fomos o primeiro país a descobrir o vírus. Também fomos o que vendeu mais máscaras. Já temos a vacina, que foi testada no Brasil".

VLADIMIR PUTIN, presidente e secretário-geral, em alternância (Rússia):

"Fomos os primeiros a produzir uma vacina, sem passar todas as fases exigidas. Os primeiros a recebê-la, serão os funcionários do estado. Até a minha filha, já tomou".

FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS (Rússia):

"Toma tu, primeiro!". 

DONALD TRUMP, presidente derrotado (EUA):

"Já encomendei as vacinas. Enquanto não chegarem, continuem a tomar lixívia. Não confio na ciência. Vejam o que fizeram com as eleições na Georgia!".

JAIR BOLSONARO, fascista grunho (Brasil)

"A Pandemia, não passa de uma gripezinha. Haverá sempre mortos. Todos temos de morrer, porra! Já encomendei a vacina chinesa. Podem tomar, se quiserem. Eu cá, não tomo porra nenhuma!".

BORIS JOHNSON, premier inglês (UK)

"Fomos os primeiros a sair da União Europeia e seremos os primeiros a vacinar os nossos cidadãos. Já falei com o Luís (enfermeiro português) que me tratou quando estive internado e será ele a dar-me a injecção".

MARCELO REBELO de SOUSA, presidente da república (Portugal):

"Não perco uma vacina. Lá estarei, no dia marcado, em "prime-time". Só falta combinar com o médico, se será em tronco nu ou na nádega".

BILL CLINTON, GEORGE BUSH Jr. e OBAMA, ex-presidentes (EUA)

"Combinámos tomar a vacina em público, para dar o exemplo. Será em tronco nu, como fez o Marcelo. Uma ideia genial". 

ANA GOMES, candidata à presidência (Portugal):

"Claro que vou tomar a vacina. Se não houver na minha farmácia, compro-a em França. É de confiança e não tenho de esperar no Centro de Saúde". 

MARQUES MENDES, PAULO PORTAS, especialistas em "picos" e "achatamentos" (Portugal):

"Explicamos tudo o que deve saber sobre vacinas. Desde a sua fabricação, até ao congelamento, redes de frio e distribuição. Também fazemos "take away". Não hesite em contactar-nos".

2020/11/24

Trump de saída: algo é algo

Só hoje, três semanas após as eleições, Trump parece ter dado os primeiros sinais de aceitação da vitória de Joe Biden, ao autorizar a passagem do testemunho (leia-se "dossiers") ao novo presidente que será empossado no próximo dia 20 de Janeiro. Ainda não foi o reconhecimento formal, normalmente expresso pelo presidente cessante ao vencedor das eleições através das felicitações habituais, mas anda lá perto. Trump nunca admitiu a derrota e, mesmo depois de repetidas as contagens nalguns estados, continuou a lançar suspeitas sobre o voto por correspondência, alegando manipulação dos boletins chegados após o dia das eleições. Os democratas tiveram uma vitória indiscutível, tanto em número de representantes no colégio eleitoral, como em número de deputados no Congresso. Também na votação global, a vitória dos democratas é clara (75 milhões de votos contra 72 milhões dos republicanos). Os protestos de Trump e dos seus acólitos, tornaram-se tão patéticos que, a determinada altura, algumas figuras do partido republicano, como o ex-presidente W. Bush Jr. e o ex-candidato à presidência M. Romney, viram-se na necessidade de vir a público reconhecer a vitória de Biden. Só os mais fiéis permaneceram ao lado do chefe, entre os quais Giuliani, cuja última aparição televisiva mais parecia a de um personagem da série "Os Sopranos", tanta era a tinta do cabelo que escorria pela sua cara. Se tivesse que escolher uma imagem destes quatro anos do consulado devastador de Trump, a conferência de imprensa do antigo "mayor" de Nova-York a suar (e a "derreter-se" literalmente) perante as câmaras, seria uma boa metáfora.

Sobre Trump já tudo foi dito. Um narcisista patológico, rico por herança e treinado a competir no mundo de negócios, que lhe deu fama e proveito: primeiro através da construção e do imobiliário, depois através da televisão, que o ajudaria a construir o nome e a "marca" que o celebrizou.  Empresário milionário, mas sem qualquer preparação política ou cultural, o "The New York Times" averiguou que Donald Trump só tinha pago impostos em sete dos últimos 18 anos, que gastava 70.000 dólares no cabeleireiro e que a sua filha mimada, Ivanka Trump, apesar de ser empregada da Organização Trump, recebia elevados honorários de consultoria....para o pai. Desde a sua chegada à Casa Branca, começou a despedir colaboradores a um ritmo nunca visto na história dos Estados Unidos. Agravou as relações com os seus aliados, que combateram ao lado da América na 2ª guerra mundial, pressionando-os para que "aumentassem os seus gastos de defesa" com o argumento de que a NATO não podia viver apenas da contribuição americana. Ao mesmo tempo, declarava que o chefe de estado que mais admirava era Vladimir Putin, com quem sempre manteve contactos suspeitos, devido aos seus investimentos na Rússia. Tudo isto, afectou as relações entre os EUA e a Europa Ocidental, a um ponto que não conhece precedentes. Porventura pior, foi a dureza dos ataques contra as migrações nos Estados Unidos, um país cuja grandeza se deve aos emigrantes vindos de todo o Mundo. Muitos são da América Latina, nomeadamente do México. Na memória de todo o Mundo, estão as palavras do presidente Trump sobre os mexicanos: "Não nos mandam gente boa, apenas ladrões, traficantes, bandidos e violadores". A sua obsessão pela construção de um muro electrificado, na fronteira entre os dois países, que devia ser pago pelos próprios mexicanos, foi outra irrealidade que nunca deixou de querer concretizar, apesar das críticas feitas dentro e fora do partido republicano. Os ataques aos emigrantes mexicanos e do resto do Mundo, são apenas um dos aspectos da sua campanha racista, que endureceu enormemente as tensões entre brancos, negros e mestiços, na maioria dos estados do país. Foi durante o seu mandato que voltaram a aparecer cartazes com a frase "Somos um país de brancos", conhecida dos velhos tempos do Klu-Klux-Klan, de quem recebeu apoio explícito através de milícias armadas que frequentavam os seus comícios. As frequentes mortes de negros às mãos da polícia, daria origem ao movimento "Black Lives Matter", que pôs o país a ferro e fogo, durante o último ano. As suas atitudes machistas e misóginas eram conhecidas e foram denunciadas por movimentos feministas americanos. Num Mundo globalizado, prometeu o regresso a uma América mítica (Make America Great Again) apelando aos residentes da "rust belt" (as industrias do carvão e do automóvel) e às populações rurais e conservadoras do "midwest", que constituem a maior parte dos seus eleitores. Tornou-se proteccionista na América e isolacionista no Mundo. No intervalo, "comprou" uma guerra com a Coreia do Norte e outra com o Irão, para além da guerra comercial com a China, a maior ameaça ao império americano.

Apesar deste percurso errático e criticável, ainda era o candidato favorito há um ano atrás. Não fora o COVID, por ele negado e subestimado (hoje, completamente fora de controlo), para além das consequências económicas e sociais decorrentes do vírus (desemprego, pobreza crescente em largos estratos da população, violência...) e Trump, contra tudo e contra todos, poderia ter ganho as eleições. Não imaginamos o que seriam mais quatro anos deste pesadelo. Com o seu afastamento definitivo (ainda faltam dois meses!) uma nova era parece abrir-se. Desde logo, no controlo da pandemia, a primeira prioridade de Biden, que acredita na ciência e não deixará de trazer para o seu lado os especialistas mais reputados do país. Depois, no relançamento da economia, a sua segunda prioridade, já que os últimos meses foram um desastre total para milhões de americanos, que perderam tudo de um dia para o outro. Outras áreas, às quais o novo presidente dará certamente atenção, serão as relações internacionais (ONU, OMS, NATO, Acordos de Paris sobre o Clima, Irão e, obviamente, a China) que, nalguns casos, são praticamente inexistentes.

Com Trump, desaparece igualmente o principal émulo e símbolo dos populistas de direita que, nos últimos anos, vêm ganhando influência em países ocidentais (Bolsonaro, Abascal, Marine Le Pen, Salvini, Farage, Wilders, Orbán, Erdogan, etc.). Se o seu desaparecimento político contribuirá para um refluxo dos populismos, ainda é cedo para afirmar, já que as consequências da Pandemia só no próximo ano serão sentidas internacionalmente e, nessa altura, os conflitos sociais podem agudizar-se. Uma coisa parece certa: sem Trump, o ar fica menos poluído. Algo é algo.

2020/11/18

Confinamento "Suave"

Dia 7.11.2020

Combóio: Trajecto Lisboa-Faro

Lugares ocupados: 10.  Máscara obrigatória. Para dormir, destapo o nariz. 

Minutos mais tarde, um ligeiro toque no ombro. 

- "Máscara para cima, sff." (era o revisor)

- Com certeza. Tem toda a razão.

-"Não volto a avisar!" 

- Como?

- "Já disse, não volto a avisar!"

- Deve estar a gozar comigo. Não estamos na tropa. E se fizesse o seu trabalho, em vez de pregar moral? 

Dia 8.11.2020

Autocarro: Trajecto Faro-Sevilha

Lugares ocupados: cerca de 1/3. Máscara obrigatória.

Motorista (em castelhano): "A máscara é obrigatória, durante toda a viagem. Estou a ver os passageiros pelo retrovisor. Quem não tiver a máscara posta, rua!" (olha para mim e pisca-me o olho...) 

Dia 9.11.2020

Entrada em vigor do 2º período de confinamento em toda a Andaluzia. Cancelamento de transportes públicos terrestres para Portugal.

Dia 13.11.2020

Tento marcar uma viagem aérea Sevilha-Lisboa. Há lugares. Após a reserva, a TAP exige-me o preenchimento de um formulário de "Responsabilidade COVID". Pedem-me, para além dos dados pessoais, o contacto de uma pessoa (nome completo e telefone), para o caso de estar infectado. 

Dia 15.11.2020

Avião: Trajecto Sevilha-Lisboa

Lugares ocupados: 12. Máscara obrigatória.

Aeroporto de Sevilha. Para além do controlo de bagagem, não há qualquer controlo sanitário. 

Aeroporto de Lisboa. Não há qualquer controlo sanitário, para quem chega de países europeus. 

P.S.: Leio, entretanto, que o governo aconselha não sairmos de casa até ao próximo dia 23 de Novembro (fim do 2º período de confinamento). Só quem for trabalhar, o pode fazer. Um vírus selectivo, portanto: só ataca turistas, não ataca quem trabalha... 

2020/11/02

Eleições Americanas: the winner takes it all




Sempre que há eleições nos Estados Unidos, o Mundo "divide-se" no apoio aos candidatos em presença.

Há quem afirme, inclusive, que os europeus deviam poder votar nas eleições americanas, tal a importância do seu resultado para as relações com a Europa. 

Se já era assim no passado, as eleições deste ano ganharam um interesse acrescido, dadas as características dos candidatos concorrentes. 

A pouco mais de 24horas da votação final, Joe Biden (democrata) segue destacado à frente de Trump (republicano), uma tendência constante desde Março último, quando a actual pandemia atingiu os EUA. Um pormenor não despiciendo, dadas as consequências económicas e sociais, que esta crise provocou em todo o território americano.

No entanto, em 2016, Hillary Clinton também chegou ao dia das eleições com 3% de vantagem na popularidade nacional (acabaria por ganhar com 3 milhões de votos de diferença), mas perdeu para Trump no Colégio Eleitoral. Antes dela, Al Gore tinha perdido as eleições para Bush em 2000, ainda que tivesse ganho em votos. Dois resultados recentes, que os Democratas não esqueceram. 

Desde Março deste ano, que Biden está à frente em todas as sondagens de popularidade. Seria, no entanto, um erro pensar que ele vai ganhar. As sondagens de popularidade dizem algo sobre qual o candidato que vai ganhar mais votos, mas não necessariamente as eleições. Isto, porque nos EUA não é válido o princípio do número nacional de votos, mas o princípio "The winner takes it all". O candidato que receber mais de 50% dos votos de um estado, fica com os votos todos desse estado. 

Em finais de Outubro, Biden tinha cerca de 54% das intenções de voto, contra 46% de Trump. Os votos dos Democratas oscilavam entre 6 e 10%, à frente do voto dos Republicanos. 

Os debates, realizados em Setembro e Outubro, não parecem ter influenciado a tendência de voto, manifestada ao longo do ano. Isto, porque 90% dos votantes já fizeram a sua escolha e não foram influenciados pelos argumentos esgrimidos nesses frente-a-frente. Em 2011, Trump tinha 4,6% de votos atrás de Clinton e ganhou. Desta vez, Trump tem menos 8,4%. A diferença, é que Trump e Clinton alternaram nas sondagens, enquanto a diferença para Biden é constante. Os analistas, consideram que, mesmo que Biden venha a perder parte deste avanço, poderá ganhar com uma diferença de 3 a 4%, o suficiente para ficar dentro da "margem de erro". 

Resumindo, o que é importante, não é o número total de votos, mas onde é que esses votos são ganhos. Se um candidato ganhar num estado muito populoso, tem mais hipóteses de ser presidente. Ou seja, as Sondagens Eleitorais dizem mais sobre as hipóteses de um candidato, do que as Sondagens de Popularidade. No dia das eleições, o presidente não é eleito directamente, o que só acontece através do colégio eleitoral. Este colégio é composto por 538 votantes. Um candidato necessita de 270 votos deste colégio para ganhar as eleições.   

Nesta contabilidade, importa reter algumas tendências importantes: os EUA têm 50 estados. Em 15 destes estados (os estados "azuis"), ganham os democratas. A manter-se a tendência, isso corresponde a cerca de 200 representantes no colégio eleitoral. Em 20 destes estados (os estados "vermelhos") ganham os republicanos. Isto, corresponde a cerca de 125 representantes no colégio eleitoral. Restam os chamados "estados oscilantes" (swing states) onde os candidatos surgem empatados e com margens de diferença muito pequenas. São eles, a Florida, North Carolina, Arizona e os estados da chamada "cintura de ferrugem" (rust belt): Pennsylvania, Ohio, Michigan, Wisconsin. O Texas é, tradicionalmente, um feudo republicano, mas este ano pode mudar, pelo que também é considerado um "swing state". Neste universo, e tendo em conta as populações de cada estado, pode dizer-se que quem ganhar a Pennsylvania e a Florida, quase de certeza ganhará as eleições. 

Finalmente: as projecções do passado fim de semana (31/10) confirmam a vantagem de Biden, tanto a nível da popularidade nacional, como a nível do colégio eleitoral. A combinação destes dois factores, é a mais importante. Em 3 dos "swing states" (Michigan, Pennsylvania e Wisconsin) Biden tem uma vantagem de 5% sobre Trump. Isto significa que, a confirmarem-se estas projecções, Biden poderá contar com 343 votos no Colégio Eleitoral, mais do que suficiente para ser proclamado presidente. 

A história, no entanto, pode não terminar aqui. A pandemia actual, que atingiu números impensáveis há alguns meses, já atirou para o desemprego mais de 11 milhões de americanos, muitos dos quais dificilmente voltarão a conseguir emprego. Os desempregados, dependem de um sistema social e de um sistema de saúde, debilitados pelas políticas economicistas, agravadas nos anos de Trump. O actual presidente negou o perigo do coronavirus, rejeitando, inclusive, a opinião de cientistas reputados, entre os quais Fauchi, o principal assessor da casa Branca para a saúde. Ainda há dias, o ridicularizou, após uma entrevista do médico ao "Washington Post", onde este criticava as medidas de Trump para combater o vírus. Junte-se a isto, a queda do PIB norte-americano, em mais de 10%, e a crise social que já atinge mais de 30 milhões de cidadãos daquele país e percebe-se melhor a dimensão desta tragédia, provocada pelas políticas negacionistas do pior presidente da História dos EUA do último século. Não por acaso, mais de metade dos americanos criticam a abordagem de Trump durante a crise do Coronavírus. Biden pode, aqui, ganhar pontos.  

Acontece que, perante a eminência de uma derrota, Trump desvaloriza a contagem dos votos por correspondência e já ameaçou recorrer para os tribunais, caso os resultados não lhe sejam favoráveis. Vale tudo nesta corrida e o "bulling" republicano é constante. Ontem, uma caravana do candidato democrata, foi impedida por apoiantes de Trump de atravessar o Texas. Um dos manifestantes era o filho do próprio presidente (!?). Enquanto tudo isto acontece, a extrema-direita organizada em milícias armadas de "supremacistas brancos", desafia a lei e exibe-se nas ruas das principais cidades, sem que ninguém os impeça. Sem que déssemos por isso, a sociedade norte-americana, caminha a passos largos para o fascismo. 

Também por isso, a derrota de Trump é importante. Biden não será o candidato ideal (que raio, os democratas não arranjavam ninguém melhor?), mas é a única escolha possível. Para os norte-americanos, não há alternativa. Para os europeus, maioritariamente democratas, ele também é o menos mau. Eu, se fosse americano, para que Trump abandonasse a Casa Branca, até no Rato Mickey votava... 


2020/10/25

Cultura, pandemia, gangrena e drinks de fim da tarde



Haverá dúvidas de que a “cultura” é mansa? 

Mesmo depois de tantas “flight cases” plantadas no Terreiro do Paço e na CM do Porto, projecções coloridas em edifícios, e outros protestos murchos, a "cultura" continua em processo de gangrena. As restrições às actividades culturais trazem consequências dramáticas, mas em Portimão parece que estamos noutro planeta. Que diferença para as salas fechadas ou a meia haste que por aí vamos vendo.



Não pretendo aqui fazer uma análise do sector da cultura em Portugal nem estou habilitado para o fazer. Pretendo apenas chamar a atenção para umas tantas incoerências e, sobretudo, para a passividade inacreditável com que o sector da cultura, certamente inebriado pelos drinks de fim de tarde, assiste à crise que se instalou. Com olhar bovino, como o de quem aguarda a vez para entrar no matadouro. 

O sector cultural, face ao valor previsto para a cultura, limita-se a largar, com ar enfadado, uns bitaites e umas queixinhas avulsas nas redes sociais e em entrevistas mais ou menos folclóricas. Não há qualquer organização, não se ouviu uma palavra  dos agentes culturais quanto a um projecto de recuperação deste sector, nem uma ideia para aplicações dos fundos estruturais que aí vêm. Nada. Os portugueses, por seu lado — povo que saca também, sem perceber o que está a fazer, o revólver quando ouve falar em cultura —  aceitam, sem problema de maior, que fechem salas de espectáculo, acabem festivais, produtoras, editoras, que continuem a sair dezenas e dezenas de jovens das escolas de artes, músicos, actores, técnicos, sem que exista perspectiva de trabalho no imediato e sem que existam possibilidades de exercerem as profissões que escolheram no futuro. Não há maneira de os acolher e, no futuro, vai ser pior. Mas eles continuam a sair das escolas. Imagino que, por este andar, os únicos locais onde poderão encontrar trabalho daqui a uns tempos seja nas igrejas... 

É que, aposto, os portugueses serão sensíveis a um outro tipo de reivindicações e o nível da gestão pública que temos não dá para mais. Há dias, a propósito da "crise" em Fátima, o líder parlamentar do PSD, um deputado chamado Adão Silva, e os deputados "sociais-democratas" eleitos por Santarém, vieram reivindicar "apoios sociais e fiscais," chamando a atenção para o facto de a região ter sido atingida pelas consequências económicas da pandemia e exigindo medidas “no âmbito dos impostos, nos apoios vários às empresas e do ponto de vista social”. Em causa está o OE 2021 e mesmo os fundos estruturais. O que os deputados em questão estão a reivindicar é um subsídio a uma crença religiosa, pago, directa ou indirectamente, por todos os contribuintes, acreditem ou não nessa crença. E estamos com sorte por não terem sugerido a obrigação de cada português ir passar o fim de semana a um hotel em Fátima. O que está em causa aqui não é a reivindicação em si. Fazem pela vida. O que aqui parece bizarro é que os deputados se sintam legitimados a fazê-la, enquanto outros sectores, de importância vital e muito mais abrangente para o país o não façam. Como o sector da cultura, por exemplo.

O que se vai vendo no que respeita a este sector é um escândalo. Sem resposta. Os milhões chovem só para um lado, sem que ninguém se indigne com o assunto. As televisões, por exemplo, receberam balúrdios à pala da pandemia. Deveriam ter sido obrigadas a reprogramar as suas grelhas com música, teatro, dança, circo, etc., português. Mas que raio de ideia de cultura tem o Governo? O que é que o PM e o PR vêem para além do namoro aos "artistas" que lhe trazem votos? Conseguirão ter uma ideia de cultura para além do barulho das luzes e dos vapores dos drinks? Se têm, não se vê.

No que diz respeito à cultura, estamos em plena era da pedra lascada. Agora disfarçada com eventos e entretenimento. Anda tudo a dormir. Estou em crer que é a própria “cultura“ que não se leva a sério e não acredita em si. Venham mais umas corridinhas de carrinhos e motinhas!!

2020/10/22

Baile de Máscaras


"Paira um espectro sobre a Europa" e, desta vez, não é o Comunismo, anunciado por Karl Marx e Friedrich Engels, na famosa primeira frase do "Manifesto", publicado em 1847. 

Quando, no início deste ano, fomos alertados para o aparecimento de um vírus na China e, posteriormente, na Europa (Itália), a maior parte de nós imaginou uma "coisa" só possível de acontecer noutros países e, no limite, que seria passageira... Uns comprimidos anti-virais e distanciamento social q.b. para afastar o "bicho" e não teríamos nada a temer. 

Como sabemos hoje, a realidade rapidamente ultrapassou a ficção e bastaram poucas semanas para que a maioria dos países (na Europa e não só) adoptasse medidas restritivas de circulação dos seus cidadãos. Uns chamaram-lhe "estado de emergência", outros "estado de calamidade", outros "intelligent lock-down", outros "imunidade de rebanho" e outros, ainda, optaram por ignorar a pandemia, comparando-a a uma "gripezinha"...

Também já nessa altura (inícios de Março) a China e os países asiáticos circundantes, os primeiros a serem atingidos pelo vírus, alertaram para o perigo do alastramento da pandemia a outros continentes e para uma 2ª vaga de  contaminações, que poderia surgir no Inverno e iria ser bem mais mortífera do que a primeira. Isto, enquanto não for descoberta a "milagrosa" vacina - que não curará ninguém, como é óbvio, mas contribuirá para aumentar a imunidade e, dessa forma, diminuir os contágios. 

Pois bem: a vacina ainda não existe, o Inverno está à porta e a 2ª vaga do Coronavírus já começou. 

Estamos a 22 de Outubro e o "site" da "Worldmeter" (OMS) registra 41 652 322 infectados (1 138 678 mortes) em todo o Mundo. Metade destes números diz respeito a 3 países apenas: EUA, Índia e Brasil. 

Seguem-se países europeus, como a Rússia (1 463 306 infectados/25 242 mortes), Espanha (1 046 641/ 34 366) e, mais atrás, países médios como a Holanda (262 405/6919) ou a Bélgica (253 386/10 539). Portugal está, nesta lista, em 43º lugar, com 109 541 infectados e 2245 mortes, respectivamente.      

Entretanto, a OMS já veio alertar para uma provável duplicação destes números, daqui até ao fim do Inverno, ou seja, após um ano de epidemia global. 

Que fazer? Este é o dilema da maioria dos países democráticos onde grassa uma epidemia sem paralelo (a última grande epidemia - a gripe espanhola - data do século passado) confrontados com a difícil equação entre "confinamento" e "circulação", já que a "economia não pode parar". 

Portugal atingiu, hoje, um recorde absoluto de infectados num só dia (3270), mais do dobro desde o mês de Abril, no "pico" da 1ª vaga. Estes números fizeram soar as "campainhas de alarme" do governo e a adopção de novas medidas sanitárias, ainda que a palavra "confinamento" continue a ser evitada. Desde logo, impondo um "cordão sanitário" a 3 freguesias do Norte, onde se verificou um novo surto e, depois, a proibição de circulação, entre todos os concelhos do país, no período compreendido entre 30/10 e 3/11 próximos. Uma medida extrema, que não acontecia desde a última Páscoa.

Segue-se, amanhã, uma discussão na AR sobre outras medidas urgentes a tomar, que incluem uma proposta do PSD (obrigatoriedade de máscara na via pública) a qual terá uma aceitação pacífica. Menos aceitável, foi a proposta de um "app" obrigatório, por sugestão do primeiro-ministro, liminarmente rejeitada por todos os partidos e pela opinião pública em geral. Compreende-se a preocupação de Costa: limitar danos económicos e sociais (na 1ª vaga perderam-se mais de 100 000 postos de trabalho), mas "apps" obrigatórios, só na China, que é uma ditadura e o "controlo digital" é aceite e está institucionalizado. 

Enquanto isto, continua a discussão do Orçamento de Estado que, à partida, será "chumbado" por toda a oposição de direita, mas está longe de ser aceite pelos partidos de esquerda. Estes exigem mais meios para a saúde, para apoios sociais e para investimentos públicos. Caso votem contra (o que não é expectável) o governo poderia cair e haveria eleições antecipadas em 2021. Até lá, o país poderia ser governado em "duodécimos", um modelo que ninguém deseja em tempo de pandemia. Para já, continuam as conversações e o "esticar da corda", entre o governo e o BE e o PCP, mas ninguém  acredita que este Orçamento de Estado não passe. Em ultima análise, a abstenção dos partidos de esquerda permitirá  a aprovação do OE e a sua discussão na especialidade. Em S. Bento, o baile de máscaras, continua.

2020/10/20

Bienal de Sevilha: Flamenco em tempos de pandemia (2)

 


Andrés Marín (Sevilha, 1969) é hoje um dos "bailaores" mais singulares do chamado flamenco experimental. Juntamente com Israel Galván, que tivemos o privilégio de ver na Bienal de 2018, Marín é um "bailaor" que não teme a inovação, ciente de que esta é a única forma de continuar a tradição. Nem todos os ortodoxos apreciarão o seu estilo, mas os amantes das coreografias ousadas esgotam os seus espectáculos e a crítica não poupa nos elogios. Imperdível, o espectáculo de Marín, que apresentava em estreia o seu último projecto, intitulado "A Vigília Perfeita".   

Lá fomos, pois, para um dos últimos espectáculos desta Bienal atípica, que teve lugar ao longo de seis semanas em salas e anfiteatros ao ar livre. Só era permitida a entrada depois da nossa temperatura ser medida por diligentes arrumadoras, que não poupavam no álcool-gel, nem nas recomendações habituais: máscara na cara durante todo o espectáculo e distância social de 2 metros, no mínimo. As cadeiras (de plástico), estavam agrupadas aos pares, o que facilitava a conversa, mas o frio cortante que fazia na Cartuja (local mítico da Expo Mundial de 1992) não animava a noite, que se previa longa.

"La Vígilia Perfecta", uma maratona de baile, foi dançada entre as 6h. da madrugada e as 9h. da noite e decorreu no Centro Andaluz de Arte Contemporânea (La Antigua Cartuja Santa Maria de las Cuevas de Sevilla) que, no passado, acolheu monges e hoje acolhe obras de arte. Desde as seis da manhã, foram encenados e dançados a solo, pequenos quadros de 8 a 10 minutos, representando as diferentes liturgias da ordem religiosa que por ali passou. Estes pequenos "sets" não tiveram a presença do público que, no entanto, podia segui-los "online". À noite, já com público presente, o "bailaor", acompanhado de 4 instrumentistas e um "cantaor", dançaria todos os quadros cronologicamente, num espectáculo que durou cerca de 75 minutos. 

Que dizer de um dos mais brilhantes dançarinos flamencos da actualidade e de um espectáculo, a todos os títulos, brilhante? Uma epifania, a confirmar tudo o que lemos e ouvimos sobre Andrés Marín, aqui excelentemente acompanhado por Alfonso Padilla (saxofone alto), Daniel Suárez (percussão) Curro Escalante (marimbas e percussão), Francisco López (sonoridades) e Cristian de Moret (cantaor) que estiveram à altura do "mestre". Um espectáculo hipnótico, recriado junto das antigas chaminés do Convento, desta vez envoltas em nevoeiro cénico, ao som do "taconear" e dos movimentos geométricos de Marín, um príncipe da dança actual. 

Ao fechar do pano, uma notícia da última hora, que só poderá encher de alegria os "aficionados" da Arte "Jonda". No decorrer do mês de Outubro, abrirá as suas portas o "Museu Camarón de La Isla" (S. Fernando de Cádiz), uma das grandes figuras do "cante" de todos os tempos. O Museu, que não substituirá a "Casa de Camarón" (esta pode continuar a ser visitada), é um investimento de vários milhões de euros, que sairão de Fundos Europeus, da Junta de Andaluzia e do "ayuntamiento" de S. Fernando, sua cidade natal. Finalmente, o nome maior da renovação do Cante Flamenco, irá ter a "casa" que merece. A Andaluzia, está de parabéns. Mais um lugar de visita obrigatória. Lá iremos.  

        

    


2020/09/24

Bienal de Sevilha: Flamenco em tempos de pandemia

Quando, em finais de Junho, foi anunciada a XXI Bienal de Flamenco, provavelmente a mais representativa Mostra do "estado da arte" no Mundo, muita gente duvidou da sua realização. A Espanha acabava de sair de uma grave crise sanitária e os traumas (provocados por longos meses de confinamento) continuavam presentes na memória de todos que, directa ou indirectamente, foram atingidos pela pandemia. 

Apesar das dúvidas e (justificados) receios, resolvemos arriscar. Consultado o programa, avançámos para a compra dos espectáculos que, à partida, mais garantias davam de uma qualidade testada em anteriores actuações. Acontece que, a pandemia, veio exigir regras mais apertadas, entre as quais a redução dos lugares disponíveis nas salas programadas. Rapidamente, os concertos mais badalados esgotaram e, quando tentámos reservar, era tarde. Perdemos, assim, a oportunidade de tornar a ver a "cantaora" Estrella Morente (filha do grande Enrique), o "bailaor" Israel Gálvan (provavelmente o melhor dançarino da actual geração) e "El Farruquito", neto do mítico Farruco, hoje um um nome maior do "baile". Mas, todos eles vão andar por aí, pelo que não faltarão oportunidades para rever a sua arte. 

Porque a escolha é imensa e a qualidade uma garantia da Bienal, optámos por outros nomes conhecidos de anteriores actuações. Estão, neste caso, a excelente "bailaora" La Choni, cujo percurso acompanhamos desde 2008 e Antonio Canales, um dos maiores ícones do baile flamenco tradicional, que tivemos o privilégio de ver no CCB de Lisboa. Outras escolhas, foram os concertos de Berk Gurman, cantor de origem turca, residente em  Córdoba e do "bailaor" Andrés Marin, outro nome consagrado da dança Flamenca, este programado para o próximo dia 3 de Outubro.

Algumas notas, necessariamente impressionistas, sobre os espectáculos já presenciados:

O concerto "Flamenco, tres culturas: da Anatólia a Andalucía", tinha um título promissor, pese embora o relativo desconhecimento do intérprete, um cantor e guitarrista turco que, há 20 anos, trocou Istambul por Córdoba onde, desde então, prossegue uma carreira artística dividida entre a aprendizagem da guitarra clássica espanhola, actuações ao vivo e gravações regulares do seu repertório, cujo "core", é constituido por textos de poetas turcos e música tradicional da Anatólia. A actuação de Gurman, que se acompanhou à guitarra, decorreu no pátio do pavilhão de Marrocos, oferecido a Sevilha, após a Expo'92.  Ambiente de "mil e uma noites",  onde não faltou a lua mediterrânica a iluminar um palco ao ar livre. Concerto algo estranho, já que a tentativa de fusão entre o tradicional "lamento" oriental e o "duende" flamenco, nem sempre funcionou, pese embora a excelente voz e o dramatismo inerente à tradição turca que, de tão belo, não necessita de tradução para comunicar. Ciente da importância da "mensagem", Gurman - um bom comunicador - teve o cuidado de resumir cada canção e, nesse sentido, não podia ter feito melhor. Já a parte musical, ainda que esforçada, nos pareceu algo repetitiva, quiçás devido à técnica que o cantor/instrumentista utiliza na guitarra flamenca, a lembrar o toque de instrumentos de tradição oriental como "oud"  e o "bouzouki", menos melódicos e de toque mais rasgado que a guitarra espanhola. 

Asunción Pérez, do seu nome artístico "La Choni", é hoje um nome estabelecido no exigente circuito flamenco de Sevilha, onde reside. Acompanhamos o seu percurso, desde 2008, quando a vimos dançar pela primeira vez no clube "Los Gallos", um das mais emblemáticos "tablaos" de Sevilha, onde era "bailaora" residente. Desde então, de Copenhaga (Womex 2009) a Sevilha (Casa da La Memoria, 2011), passando por uma memorável actuação num teatro da provincia andaluza, onde apresentava a "peça" teatral dançada, "Gloria de Mi Madre" (galardoada com inúmeros prémios, entre os quais o "Melhor Espectáculo Dançado" de 2010 e o "Compás de Espera" de 2015), "La Choni" não parou de coleccionar distinções e merecidos elogios. Para a Bienal deste ano, que esteve em risco até ao Verão, criou "Cuero / Cuerpo", uma aposta arriscada, algures entre a dança flamenca clássica, a dança moderna e o teatro, sua imagem de marca. Dividido em quatro "quadros" distintos, a peça procura ser um libelo pela emancipação artística e feminina da intérprete principal (La Choni). Uma peça feminista, no sentido literal do termo, onde a mensagem (por vezes, demasiada explícita) é sublinhada pelos excelentes acompanhantes masculinos da companhia: Manuel Cañadas (Professor da Tradição),Victor Bravo (Mefisto) e Raul Cantizano (Ambientes Musicais). Após um início, algo lento e titubeante, a peça ganha fôlego com a entrada de Cañadas (um príncipe da dança) no papel de professor exigente e castrador, contra o qual a "bailaora-aprendiz" se liberta ao conhecer "Mefisto", que a inicia na dança moderna ("Charleston" e "Swing", no 3ª quadro) e ganhar consciência da sua condição como mulher. O 4ª e último quadro, mostra-nos os três intérpretes em despique e luta, após o que a "bailaora"/mulher se liberta, seguindo o seu caminho, numa (re)interpretação final da tradição, agora inovada. Os ambientes musicais, criados por Raul Cantizano, pareceram-nos aqui e ali algo "deslocados" (uma estridente guitarra electrificada, por exemplo), assim como uma simbologia demasiado explícita (a "mensagem" podia ser mais "distanciada"). Trata-se, no entanto, de um bom espectáculo, onde a soma dos quatro intérpretes (todos magnifícos)  parecem valer mais do que a (história da) peça, a necessitar de alguns afinações, que a rotina de actuações futuras, certamente, trará. 

Finalmente, Antonio Canales, um "monstro" da dança flamenca, que não necessita de apresentações. Vimo-lo num espectáculo memorável, no CCB de Lisboa, vai para dez anos, à época ainda no apogeu da sua arte. Voltámos a revê-lo, numa homenagem prestada em Utrera, em 2019, onde se limitou a dançar uma "seguiriya", acompanhado pela mãe, no fim do espectáculo. Muito pouco para tanta arte. Sabíamos que dificilmente voltaríamos a vê-lo dançar e foi com surpresa que vimos o seu nome anunciado no programa da Bienal deste ano. O espectáculo, intitulado "Canales: Torero & Sevilla a Compás", afinal, eram "dois"...Uma primeira parte, onde um excelente corpo de "baile", acompanhados por "tocadores" e "palmeros", recriou o maior êxito de Canales, "Torero" (1994), num cenário de uma praça de touros; e uma segunda parte, onde o "maestro" foi a figura principal, dançando e citando o poeta Antonio Machado, fio-condutor da história sevilhana que Canales recriou. "Torero", dançada magnificamente por Pol Vaquero (no papel que celebrizou Canales) e por Mónica Fernandez (no papel de "touro"), é uma representação cronológica do ritual da tourada (desde a "extrema-unção" do "matador" nas catacumbas, até à lide na arena, terminando com o apoteótico "corte de orelha" e a saída em ombros do toureiro). O baile seria aclamado pelo público presente na sala do Lope de Vega, com "olés" significativos. Ficámos na dúvida se eram dirigidos ao bailarino ou ao toureiro...Em tempo de "politicamente correcto", um tema claramente datado, ainda que a Andaluzia seja, por definição, a região da "arte" do espeto. Resumindo: grandes dançarinos (solistas e corpo de baile), que honraram o nome de Canales, o "mestre" que, na segunda-parte, tomou conta do palco e, entre passos de dança e poemas de Machado, teve direito aos holofotes que continuam a iluminar uma carreira sem par. 

Sim, o Flamenco está vivo e recomenda-se. Olé!    


 

 

         

 

    

  

2020/09/13

Cucú...

Há várias palavras que me vêm à mente quando penso no recente episódio do apoio do Primeiro Ministro António Costa à candidatura do presidente de um clube de futebol. Nenhuma delas é simpática. Fiquemos por três das mais benignas: vergonha, irresponsabilidade e traição. 
Quando António Costa se candidatou ao cargo de Secretário Geral do seu partido fui um dos que passou por todo aquele processo de inscrição no PS para poder votar nas eleições abertas que o conduziram a esse cargo. Não sou dessa área política e nunca estive militantemente envolvido nela. Tenho, aliás, as mais sérias reservas em relação ao PS. Mas o trauma causado pelo Coelho et al era imenso e numa perspectiva democrática e de esquerda, o PS parece ser um partido que tem um papel importante a desempenhar. Entendi então — eu e, pelo que sei, muita gente como eu — que a unidade de esquerda é um valor absolutamente vital e que, nesse contexto, Costa parecia a pessoa indicada para a promover. Aquele primeiro mandato correu inegavelmente bem. A fasquia também não estava muito alta, é certo, tal foi o descalabro do governo anterior. Mas mesmo com a fasquia baixa haveria sempre a possibilidade de passar por baixo, o que não foi o caso. Este segundo mandato começou mal. A pandemia veio pôr a capacidade do governo e da oposição à prova. Se é certo que a oposição foi igual a si própria, ie, um desastre, do PS esperar-se-ia muito mais. A oportunidade oferecida pela crise para criar condições de reequilíbrio e retoma foi vergonhosamente desperdiçada. Nem a pseudo indignação perante as atitudes criminosas dos dirigentes de alguns países europeus nem a bravata da "bazuca" podem esconder a falta de golpe de asa, a submissão aos grandes interesses e a condescendência para com as forças que teimam em conduzir o mundo para o cataclismo final. O governo PS tem sido um desastre que se tem, a pouco e pouco, aproximado daquele partido que nos habituámos a ver envolvido com a direita, no regabofe a que eufemisticamente se chamou de "arco da governação." A reaproximação de algumas figuras particularmente sinistras do PS, a que ultimamente temos assistido e as públicas provas de dissensão interna vêm provar que a deriva era real e não uma fantasia. Não era, afinal, fruto de uma qualquer teoria da conspiração mal enjorcada. A provocação insuportável feita agora aos partidos da coligação informal de esquerda, que foi feita a propósito do OE, não é uma tentativa de estabelecer um compromisso realista, é uma chantagem miserável, mais um episódio naquele processo de meter o socialismo na gaveta, que infelizmente parece ter dado novamente à Costa... Passámos da terceira via para a via Vieira. Uma vergonha tudo isto, portanto, em nome do chuto na bola... 

Mais do que o exercício de um direito que assistiria a Costa, como cidadão, não fosse ele Primeiro Ministro, esta inclusão na "comissão de honra" de um candidato à direcção de uma agremiação do chuto na bola cava um fosso brutal na sociedade portuguesa. A "futebolização" do processo político é um erro trágico. O futebol tem peso, é certo, mas terá efeitos em todas as direcções. Afasta os adeptos dos outros clubes e não é sequer unânime dentro do seu clube. Tudo isto seria mau em qualquer altura, porque a responsabilidade sagrada de um dirigente político é construir a unidade do povo que serve e contribuir para a preservar. Mas num momento como este, essa responsabilidade é ainda maior, porque o que ele está a pedir repetidamente aos portugueses é que não se esqueçam disso. Só juntos vamos conseguir ultrapassar a "crise," ouvimos dizê-lo até à exaustão. Perdeu agora toda a autoridade para o fazer e colocou com isso o povo que serve numa situação de risco. Ele é o chefe de um executivo que tem responsabilidades na condução de uma política que por mais bem gizada que estivesse tecnicamente (e aí também há inúmeras razões de queixa,) necessitaria sempre de uma coesão total do país para ter sucesso. Imagine-se o que é um tipo qualquer de outro clube se recusar a usar máscara ou, infectado, a obedecer a uma imposição de quarentena porque o Costa é "lampião"... O pior que nos poderia acontecer era entramos em autogestão. Mas as portas estão escancaradas para que isso aconteça. Uma irresponsabilidade, portanto, em nome do chuto na bola... 

Quando fomos fazer aquela inscrição no PS para conduzir António Costa ao cargo de Primeiro Ministro, fizemo-lo em prol da ideia de Democracia e numa perspectiva de esquerda. Democracia e esquerda! O contrato era este: preservar os princípios da Democracia numa perspectiva de esquerda, assente em ideais de esquerda, humanistas e de solidariedade social. Esta atitude do Primeiro Ministro põe em causa este combate e fere o nosso contrato. O futebol é um campo de divisão. Enfraquece, estupidamente, o combate ao criar condições para afastar dele os cidadãos, em vez de os congregar. E começa logo por afastar gente de outros clubes e, até muita gente dentro do seu clube, que não se identifica com o candidato que ele apoia. As consequências de tudo isto vão certamente ser desastrosas para o regime democrático, na perspectiva de um pensamento de esquerda. Não foi isto que nos levou a apoiá-lo. Trata-se, portanto, de um traição aquilo para que António Costa arrastou aqueles que atraiu em 2015. Em nome do chuto na bola... 

Tudo isto é tão bazaroco que a única explicação possível que encontro é esta: António Costa está cansado, farto do cargo, deve ter arranjado já um tacho qualquer numa dessas instituições internacionais, onde todos eles acabam, quer provocar eleições e pôr-se ao fresco. Poderá também estar a precipitar uma crise no próprio PS. Porque se é certo que o PS é necessário à Democracia, também é verdade que o PS é necessário... ao PS. Uma coisa é garantido: vai à vida dele. Outra coisa garantida: com o meu voto e o meu empenho, os Costas deste mundo não vão de certeza voltar ao poleiro.

2020/09/01

Silly Season: "Olhe, vá ao "site"!

Para quem, vindo da Andaluzia, entra de carro no Algarve, a travessia fez-se pela ponte do Guadiana, junto a Castro Marim. Uma vez passada a fronteira, são três as direcções possíveis: sair pela direita em direcção a Alcoutim; sair pela esquerda, em direcção a Vila Real de Santo António; continuar em frente pela A22 (mais conhecida por Via do Infante). A última opção, implica pagar portagens, uma modalidade criada em 2003, quando a Via do Infante, pensada inicialmente como via rápida (IP), passou a auto-estrada e foi concessionada por um período de 30 anos.

O que, na maioria das auto-estradas portuguesas pode ser feito através do pagamento a um funcionário ou, na ausência deste, através de uma máquina que aceita cartões de crédito, torna-se mais difícil, na A22, onde a operação é ligeiramente mais sofisticada. Se o carro tiver o sistema de "via verde", não há problema. Se o carro tiver matrícula estrangeira (e se fôr alugado) a coisa complica-se.

Um exemplo, vivido em meados da Agosto: 

Uma vez passada a ponte do Guadiana, deparamo-nos com um grande cartaz azul com estrelinhas da UE, onde os estrangeiros são alertados (em duas línguas) para o pagamento de peagem, através de uma máquina instalada no posto fronteiriço do lado português. Encontrada a máquina, tentámos activar o cartão de crédito com vista a pagar automaticamente as peagens seguintes. Debalde. A máquina não reconhecia o cartão. Explicámos o problema a um funcionário presente que, solicito, nos indicou a estação de gasolina mais próxima (saída de Olhão!) onde poderíamos comprar um cartão de crédito (5 ou mais euros), que permitia pagar peagens até ao montante "carregado" no cartão.

Lá fomos, em direcção à saída de Olhão, a mais de 30km de distância. Aí chegados, e depois de explicada a ocorrência, o empregado da estação vendeu-nos o cartão e um código, que teria de ser activado nas primeiras 24h. através de um SMS, para não termos de pagar peagens.

No dia seguinte, ao tentar activar o código fornecido, fomos informados por SMS, de que tal não era possível. O sistema não reconhecia o código (!?). 

Após várias tentativas frustradas, tentámos o número de telefone de apoio ao cliente, indicado no cartão. A mensagem do operador do "call-center", indicava que o número de telefone não era válido (!?). 

Em desespero de causa, e porque o cartão fornecido, para além do "logo" das Estradas de Portugal, indicava uma parceria com os CTT, dirigimo-nos a uma estação de correios de Tavira. Podia ser que lá pudéssemos activar o cartão e pagar as portagens. Porque já passava das 13h., também a estação dos CTT estava encerrada para almoço. Uma hora de espera e nova tentativa. A funcionária, foi curta e grossa: "aqui só tratamos de matrículas portuguesas. Para matrículas estrangeiras, deve dirigir-se aos correios, no centro da cidade". 

Nova tentativa, agora nos correios centrais de Tavira. Longa fila de espera, ao sol, dado o "distanciamento social" imposto pelo Covid. Uma vez entrados, tirámos uma senha com o "número de atendimento". A máquina estava avariada, imprimia metade da senha,  mas não imprimia os números. Restava-nos perguntar quem era o último da fila e esperar...

Atendidos por uma funcionária, esta mira o cartão e repete a resposta dada no outro posto dos CTT:  "aqui só tratamos de matrículas portuguesas". 

Como? Mas, lá disseram-nos que aqui podíamos activar o cartão e fazer o pagamento...

"Pois, mas a pessoa que lhes disse isso, informou-os mal"...

Sim, mas no cartão está o vosso logotipo, logo os CTT têm uma parceria com a estradas de Portugal. 

"Pois, temos, mas não podemos aceitar pagamentos, só podemos vender os cartões"...

Mas, afinal o que é que funciona bem no Algarve, se nem sequer os estrangeiros podem pagar as portagens que lhe são exigidas? Nós só queremos pagar...

"Não podemos fazer nada...a culpa não é nossa, mas de quem emite os cartões"...

Claro, mas se nada funciona, e ninguém é responsável, de quem é a culpa? Das Estradas de Portugal? Da concessionária? Dos CTT? Explique lá, para nós percebermos...

"Olhe, aconselho-vos a irem ao "site" das "Estradas de Portugal" e tentar a "Via Livre", que é a concessionária da auto-estrada. Lá devem ter um número de contacto e podem explicar a situação"...

Consultar o "site"? E se eu não estiver ligado à NET? E se eu fôr info-excluído e não tiver computador ou sequer telemóvel? Sabia que metade da população não tem computador e 40% é analfabeta funcional? 

"Não tenho nada a ver com isso e não podemos fazer nada"...

Consultado o "site" e encontrado o contacto, explicamos pela enésima vez o sucedido. Só queremos pagar as portagens e não ficar sujeitos a multas por ultrapassar a data prevista. O funcionário, depois de ouvir-nos, pergunta: "já tentaram a "Via Verde"? 

A "Via Verde"? Porquê? O que é que eles têm a ver com isto? 

"Tente a "Via Verde" e, se eles não ajudarem, volte a telefonar-nos". 

Tentámos a "Via Verde". O funcionário, que atendeu, ri-se e diz qualquer coisa como "se calhar venderam-vos um cartão falso... mas, vou ver no computador". Uma vez confirmada a matrícula, diz que este carro já passou várias vezes a fronteira e tem dívidas de 2019 (!?). 

Dívidas de 2019? Sinto-me numa novela de Kafka. Mas, nós, só ontem entrámos em Portugal...

"Pois, mas se o carro é alugado, pode ir e vir cá, várias vezes. Estejam descansados, que não tenho aqui registrada qualquer entrada de ontem. Enquanto não entrarem dados, não mandamos as contas para Espanha e não têm de pagar nada..."

Regressados a casa, decidimos escrever um Mail às "Estradas de Portugal" a explicar a situação e exigindo só pagar os percursos feitos naquele dia. Pelo sim, pelo não, pedimos a anulação do cartão de 5euros e carregámos um novo de 10euros. Simultaneamente, telefonámos para a agência espanhola onde o carro foi alugado. Descansaram-nos: se as portagens em dívida, forem inferiores a uma determinada quantia, eles não se preocupam em cobrá-las.

P.S.: No dia 31 de Agosto, chegou uma resposta das Estradas de Portugal: o cartão de 5euros não cobre as portagens feitas no Algarve, que foram de 8,50euros, pelo que ainda devemos 3,50euros...  

2020/08/02

Silly Season: para quem acha que a CP não funciona...



Resposta a uma reclamação de 13 de Abril de 2019 
(ver "post" d.d. 16.04.19)   


Exmo(a). Senhor(a) Rui Mota,
Apresentando as nossas desculpas pelo tempo decorrido, acusamos a receção da comunicação de V. Exª, merecedora da nossa melhor atenção.
Lamentando os transtornos causados, informamos que a situação anómala verificada com o comboio Intercidades n.º 594, do dia 13 de abril/19, foi devido a avaria do material circulante, facto pelo qual apresentamos as nossas desculpas.
Informamos que, de acordo com as disposições comerciais em vigor, as condições de compensação por motivo de atraso dos comboios Alfa Pendular, Intercidades, InterRegional e Regional, se o motivo for imputável à CP e se o atraso for igual, ou superior a 60 minutos, são, para títulos de transporte adquiridos antes de conhecido o atraso, reembolso total do valor da viagem. Não há pagamento de qualquer indemnização quando o valor a pagar seja igual ou inferior a €4.
Face ao exposto, informamos que vai ser efetuada transferência bancária no montante total do valor do bilhete, ou seja 08,50€. Para tal, solicitamos que nos envie o comprovativo do IBAN para o seguinte endereço de email: xxxx@cp.pt. Deve mencionar a referência xxxx-2019-xxxx-amr.
Lamentando o sucedido e reiterando o nosso pedido de desculpas, informamos que é nosso objetivo continuar a trabalhar para garantir a melhoria da qualidade do serviço prestado.
De acordo com a legislação em vigor, nesta data será enviada cópia desta comunicação à Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (AMT).
Apresentamos os nossos cumprimentos.

          

          DIREÇÃO DE OPERAÇÕES E COMERCIAL           
          Gestão de Reclamações

2020/07/30

Nem para embrulhar peixe


Existe um debate desde tempos imemoriais sobre o nome e a coisa. Certamente com medo que o vento leve as palavras, como refere o ditado, para uns o nome deve ser a essência da coisa. Para outros, a coisa é a coisa, o nome é apenas uma convenção que denota essa coisa. 
Vem isto a propósito de uma coisa cujo nome me recuso a escrever, mas cujas acções, porém, me suscitam alguma reflexão. Esta coisa é, supostamente, o presidente do país, auto-proclamado, mais poderoso do mundo. 
Os factos contam-se rapidamente. 

Uma mulher chamada Stella Immanuel, médica em Houston, numa clínica chamada Rehoboth Medical Center e fundadora de uma igreja chamada Fire Power Ministries, fez afirmações durante o seu "apostolado" do género de a pratica sexo com "espíritos atormentados é a causa de problemas do foro ginecológico, aborto e impotência," ou que "as mulheres são vítimas de sexo astral (sic!) regularmente. O sexo astral consiste na capacidade de projectar o espírito do homem no corpo de uma vítima e ter relações com ela." Segundo a CNN, Immanuel terá ainda dito que os médicos produzem medicamentos a partir do DNA de alienígenas e que estão a tentar criar uma vacina para nos imunizar contra a religião.
Mais recentemente, a autora destas brilhantes descobertas científicas disse que as máscaras não servem para nada e que existe uma cura para a Covid19, a tal hidroxicloroquina, entre outros, apesar de todos os estudos indicarem o contrário.
O assunto não mereceria qualquer atenção, não fora o facto de a coisa ter partilhado, através da sua conta no Twitter, o video onde a distinta esculápia fez estas últimas afirmações
Numa conferência de imprensa, ontem na Casa Branca, uma jornalista da CNN chamou a atenção para a falta de credibilidade de senhora e para o facto de a coisa lhe estar a dar cobertura, reproduzindo as suas afirmações. Ao que a coisa respondeu que "não sei de que país vem, mas ela diz que tem tido um sucesso tremendo com centenas de doentes e eu pensei que a sua voz era um voz importante, mas não sei nada sobre ela." Instada pela jornalista a precisar melhor o que queria dizer, a coisa abandonou a sala, com ar irritado. Se quiser ler o que se passou veja aqui.
É este o nível a que desceu a política na Casa Branca.
Mais uma vez, o assunto não teria importância, não fora, mais tarde, eu ter visto um outro jornalista da CNN, Anderson Cooper, em comentário a toda esta caldeirada e perante a situação de total degradação política a que as coisas chegaram no seu país, se ter posto a imitar o amuo da coisa, fazendo caras e produzindo comentários jocosos. Confesso que fiquei boquiaberto.
Lembrei-me da coisa a macaquear um repórter do NYT com uma deficiência física, que a própria CNN na altura criticou (ver aqui.) 

A coisa ditou um estilo na política que, qual monção, ameaça arrastar tudo e todos, incluindo a imprensa, que deveria ser capaz de resistir e impor um travão a tudo isto, ajudando a recolocar as coisas na sua escala correcta. 
Não admira, pois, que perante o ataque brutal de que a imprensa livre está a ser vítima, o lento assassinato de que Julius Assange está a ser vítima, perante o olhar de todos, não mereça sequer uma careta e um comentário jocoso. Foi o nível a que tudo isto desceu.

2020/07/27

A morte de Bruno Candé Marques


António Silva - Lusa
foto António Silva - Lusa

Infelizmente, Marcelo, oportunista, calou-se em relação a este caso. Teve mais que tempo para se demarcar claramente. Mas não, preferiu o silêncio. 
No capítulo da necrofilia, nestes últimos dias, o PR visitou o túmulo de Amália Rodrigues, lamentou, e bem, a morte de um bombeiro, lamentou, e bem,  a morte de Luís Filipe Costa. Mas calou esta morte. E, contudo, politicamente, esta a mais significativa.
Não interessa quantos filhos o Bruno tinha ou se o alegado assassino tinha 70 ou 80 anos. É um crime sem classificação, seja qual for a sua motivação ou causas. Uma perturbação da ordem pública com consequências perigosíssimas. Depois daquela reacção dos fascistas, devia ter respondido de imediato. 
Também lamento que António Costa se tenha limitado a mandar um segunda linha "repudiar" o acto.
Não consigo encontrar justificação para estas meias tintas. Andam todos a fintar os acontecimentos e os acontecimentos, assim, vão acabar por os fintar a eles e, por arrasto, a todos nós.
Lembro-me da reacção imediata e corajosa de condenação, inequívoca, sem dó nem piedade, de Jacinda Arden, na N. Zelândia, quando aquele assassino cometeu aquela loucura com transmissão directa, via FB. 
Resultou, aliás, disso uma tomada de medidas políticas enérgicas na hora! 
Dir-me-ão: é diferente. Pergunto: é?  Repito: é?!
Não há justificação para este silêncio. Nesta nossa sociedade não podemos tolerar coisas destas, seja qual for o motivo que lhes está na origem. 
O beijoqueiro do Marcelo esqueceu-se disso... Tudo o resto é colaboração.

2020/07/21

Dezasseis semanas noutra cidade: Balanço, Quarentena e Programa Europeu de Ajuda


Após quatro meses de "exílio forçado" em solo espanhol, eis-me de volta à pátria, agora que a fronteiras ibéricas foram abertas, com pompa e circunstância, pelos mais altos dignitários de ambas as nações. Restam duas semanas de quarentena, obrigatórias por lei, que poucas pessoas praticam, já que o controlo parece mais remoto do que de um aparelho de televisão. Sim, as indicações sobre o comportamento individual e colectivo (leia-se "distanciamento social") existem e há quem as respeite. Mas nem todos o fazem e, o que é pior, não é fácil respeitá-las. Desde logo, porque a economia não pode parar e, sem o "mercado a funcionar", não haverá dinheiro para comprar melões, mas também vacinas, que ainda não existem e não sabemos quando existirão... Depois, porque a saúde, sendo a componente mais importante, é cada vez mais cara e as prioridades nem sempre são as pessoas. Dito de outro modo: só quando a economia fôr para as pessoas, e não as pessoas para a economia, poderemos encontrar o equilíbrio necessário ao tal "crescimento sustentável" de que toda a gente fala, mas tão pouca gente pratica.  
Este é hoje o dilema da maioria dos países confrontados com a pandemia que, nalguns casos, atingiu números impensáveis há uns meses atrás e que continua a progredir, agora com maior incidência em países como os EUA, o Brasil, ou a Índia, sem que tenha desaparecido da Europa e da Ásia, como as frequentes recidivas o comprovam.
Portugal, um país com graves problemas económicos e um estado social fraco, conseguiu numa primeira fase (estado de emergência) limitar os danos, a ponto de ter sido considerado uma excepção no panorama europeu, que lhe valeu os maiores encómios na imprensa internacional. A relativa prontidão na reacção à crise (encerramento de fronteiras, escolas, recintos desportivos, etc.), aliada à situação periférica do país e ao fraco fluxo turístico naquela época do ano, ajudam a explicar o sucesso sanitário, mas sabia-se que, mais tarde ou mais cedo, a situação iria alterar-se. Desde logo, porque, para atender os infectados com Covid e proceder aos testes necessários para a sua detecção, foi necessário mobilizar hospitais e pessoal médico para este tipo de patologia, para a qual muitos deles não estavam preparados; depois, porque, ao dar prioridade ao combate à pandemia, foram descurados outros serviços (operações, consultas, etc.) que não eram prioritários. É verdade que o sistema hospitalar não implodiu e esse objectivo foi conseguido, o que não deve deixar de ser assinalado, mas nem tudo são rosas...
Com o desconfinamento progressivo, propício ao relaxamento dos costumes, os contactos sociais aumentaram (nem outra coisa seria de esperar) e, com eles, o aumento do número de infectados. Agora, não são apenas os chamados "grupos de risco" (idosos com patologias específicas), mas jovens e pessoas de meia-idade que, por força das suas funções diárias, estão em contacto permanente nos seus locais de trabalho e em transportes públicos, onde não são cumpridos os mínimos desejáveis em tempo de contágio. Tudo isto é conhecido e não há meio de evitá-lo. Enquanto não houver uma vacina, que normalize a progressão da epidemia, esta conhecerá uma expansão, provavelmente com altos e baixos (mas sempre com mais mortes), independentemente do modelo ser o da "imunidade do rebanho" ou do "confinamento obrigatório", como estes seis primeiros meses o comprovaram. Esta é, de resto, a grande contradição de um sistema que, querendo combater o vírus, incentiva a economia aberta, como forma de evitar o colapso social e económico que se adivinha, independentemente dos avanços da epidemia.
Perante tal cenário e quando três das quatro maiores economias europeias (Itália, Espanha e França) estão já confrontadas com as maiores crises sociais do pós-guerra, a União Europeia parece ter acordado da sua longa letargia e reuniu os 27 países membros em Bruxelas, para aprovar o programa de recuperação económica, calculado em 750 000 milhões de euros, para os países mais afectados. 
Como se esperava, e apesar dos encontros bilaterais que antecederam a cimeira (entre Costa, Sanchéz, Conte, Rutte e Orbán) com vista a desbloquear as posições dos grupo dos "frugais" e do grupo de "Visegrado", o antagonismo entre as diferentes visões manteve-se durante os cinco dias que durou a reunião que só hoje, pela madrugada, terminaria.
Contas feitas, todas as partes cederam, naquele que já é considerado um acordo histórico, seja pelo montante das verbas envolvido, seja pelas discussões geradas ao longo desta maratona.
Resumindo: mantém-se o montante global de 750 000 milhões de euros, proposto inicialmente pela presidente da comissão, mas agora com uma nova divisão de verbas. Serão 390 000 milhões (em vez de 500 000 milhões) em forma de doações (a fundo perdido) e os restantes 360 000 milhões, em forma de empréstimos. Uma cedência de 110 000 milhões de euros às posições da Holanda e dos restantes países nórdicos, que sempre preferiram a fórmula "empréstimos" a "doações, que não poderiam controlar. Já as pretensões holandesas, que exigiam condicionar os empréstimos e doações à liberalização das leis laborais e à reformulação das pensões nos países do Sul, não foram satisfeitas, muito por intervenção de Merkel e de Macron (que apoiariam as posições de Itália, Espanha e Portugal).
Para Portugal, o balanço não parece ter sido negativo. Apesar de uma redução de 9000 milhões na verba inicialmente prevista (que era de 26 000 milhões), receberá 15 000 milhões do "fundo de recuperação" (a fundo perdido), podendo recorrer à restante verba, em forma de empréstimo. Junte-se a este "envelope" (para combater a crise pandémica), os 30.000 milhões do quadro do programa plurianual europeu para o período 2021-2027, e teremos um total de 45.000 milhões, que o país vai receber ao longo de 7 anos. Uma "pipa de massa", na opinião dos comentadores de serviço.
Na realidade, dinheiro europeu foi coisa que nunca faltou, ao longo dos últimos 35 anos. O que sempre faltou foi uma estratégia para o desenvolvimento do país. Por isso, estamos onde estamos. Será que é desta?

2020/07/19

Um Rio poluído


O dr. Rui Rio parecia ser um tipo um pouco menos bronco do que os seus predecessores. Sobretudo pela reacção que teve no início do problema da pandemia. De repente, certamente por causa do calor, perdeu o sentido de Estado, esqueceu as exigências da Democracia e aparece a dizer isto que se pode ouvir aqui
A questão principal nestas declarações é esta: sem uma ideia sequer para o seu País, sem uma única sugestão sobre o modo como aplicar convenientemente os fundos, que ele exige justamente que seja vigiado, é preciso que eles não faltem, nem que se tenha para isso de dobrar a espinha a esses senhoritos do norte, que tresandam a mediocridade, mas tentam disfarçá-la armando-se em grandes senhores. Mas vigiar o quê ó dr. Rio? O que é o que o senhor propõe?
Ah, how I long for yesterday... And I love the smell of troika in the morning!
Mas a verdade é que Rui Rio reconhece, ipso facto, enquanto membro de um importante partido político PORTUGUÊS, candidato à governação do país, não ter uma ideia na cabeça, ao mesmo tempo que demonstra não ter capacidade para corrigir os problemas que aponta. Nestas circunstâncias, prefere abdicar das suas prerrogativas enquanto membro de um partido candidato ao poder a favor de um bárbaro qualquer do norte.
Rio prefere esperar, subserviente, pelo subsídio da Europa. Mas para dar ar sério à opção, que seja com a supervisão dos outros países, não vá a coisa descambar e a malta perder a massa, que tanta falta faz para podermos continuar neste caldo de indigência nacional em que os políticos como Rio e partidos como o PSD gostam de se ir mantendo confinados.
Como iria, é justo perguntar, o País gastar esses fundos, se fosse o PSD a geri-los?
Faz lembrar aqueles que, no futebol, para não perderem as receitas da televisão, mas sem ideia sobre o jogo, sem chispa nem talento e jogando mal, culpam o árbitro pelas derrotas das suas equipas e vêm gritar depois, indignados, a pedir que se usem árbitros estrangeiros.
Um verdadeiro patriota, este Rio. Isto também diz bem do que é o PSD hoje. E abrindo o zoom, ficamos a perceber o que é, à direita, a oposição ao governo com que hoje podemos contar: vendilhões, boçais, amadores, criancinhas insolentes e fascistas. Um rico ramalhete.
Eu cá também acho que o PSD devia ser substituído por um partido da oposição de um país qualquer do norte...

2020/06/30

Quinze semanas noutra cidade: É a pobreza, estúpido!


Escrevo em vésperas do encontro transfronteiriço, entre os chefes de estado de Portugal e Espanha, marcado para o próximo dia 1 de Julho, em Badajoz. A cerimónia assinala a reabertura da fronteira terrestre entre os dois países, encerrada desde o passado 16 de Março devido ao Coronavírus.
Se tudo correr bem, a partir de amanhã, será possível voltar a atravessar a fronteira rodoviária, já que a linha ferroviária, entre Évora e Badajoz (80km), continua por construir. Um pequeno passo para a Humanidade, mas (aparentemente) um grande passo para Portugal que, apesar dos inúmeros programas de financiamento europeu, nunca considerou prioritário terminar uma linha ferroviária que ligasse o Alentejo à Extremadura espanhola. Só muito recentemente, foi dada "luz verde" à construção de uma linha de mercadorias entre Sines e Badajoz (via Évora) que - pasme-se! - quando estiver concluída, não passará por Caia, que já dispõe de uma estação (desactivada) de passageiros. Tudo indica que a linha será apenas para mercadorias. Será que receiam o vírus espanhol?
Entretanto, indiferente às fronteiras, o vírus continua a propagar-se pelo Mundo, agora a uma velocidade estonteante. Tedros Adhanom Ghebreyesus, secretário-geral da Organização Mundial da saúde (OMS) vem dizendo, há dias, que os países não podem confiar nas notícias da diminuição dos contágios. "Estamos numa fase nova e perigosa", repete. Quase metade dos novos casos, são oriundos do continente americano, mas os números do Sul da Ásia e do Médio-Oriente, não são menos preocupantes. Mais de dois terços, dos falecimentos recentes, ocorreram na América. Os EUA já ultrapassaram os 129.000 mortos, o Brasil 59.000, o México 22.000, o Perú 9.500 e o Chile 5.700.
A OMS alertou para o avanço imparável do vírus, na passada semana, quando se atingiu os 150.000 casos diários, pela primeira vez. Desde então, a situação continuou a piorar. No domingo passado, atingiu 183.000, a cifra mais alta desde o início da pandemia. Para ilustrar o ritmo, que está a atingir o Coronavírus, o director da OMS empregou uma comparação bastante gráfica: foram registados em todo o Mundo mais de 10 milhões de casos. Chegou-se ao primeiro milhão, depois de 3 meses de epidemia. O último milhão foi contabilizado apenas em oito dias. "Parece que todos os dias, chegamos a um novo e sombrio record", avisa Ghebreyesus. Muitos destes estados, já sofreram uma primeira onda de contágios e conseguiram controlá-los após alguns meses de confinamento. O epidemiologista Antoni Trilla não crê que possamos falar de uma "segunda vaga", em quase nenhum país e menos ainda em estados europeus como a Alemanha ou Portugal, considerados países-modelo há poucas semanas atrás. Trilla considera que ainda não saímos da primeira vaga de contágios. As recidivas que estão a acontecer, um pouco por todo o Mundo (China, Coreia do Sul, Taiwan, Alemanha, Islândia, Portugal) obrigaram países, como a Alemanha, a isolar um bairro inteiro (640. 000 pessoas) devido a um foco de contágio que atingiu 1.500 trabalhadores numa fábrica de carne. Não porque os alemães tivesse lidado mal com a pandemia, mas porque, apesar de terem feito tudo bem, não puderam evitar que houvesse uma recidiva. Já a situação nos Estados Unidos e na América Latina, é de uma gravidade extrema, assegura Trilla, não só porque estão a aparecer dezenas de milhares de casos todos os dias, como dentro em pouco terá início o inverno austral, uma "receita perfeita", com mais vírus circulando, mais frio, mais pessoas que permanecem em casa e menos possibilidade de haver condições de temperatura, de humidade e sol, que ajudam a desacelerar a transmissão do vírus.
Em Portugal, país considerado modelo, pela forma como conseguiu controlar a chegada da pandemia, também parecem estar agora mais preocupados com o ritmo de novos contágios. O governo impôs novas restrições (reuniões limitadas a dez pessoas) encerramento do comércio às 20h. e multas nos casos de incumprimento. Aparentemente, o alarme teria disparado depois de uma festa particular que infectou dezenas de jovens em Lagos e, posteriormente, uma "beach party" de mil jovens em Carcavelos, muitos dos quais apresentaram sinais de contágio nos dias seguintes.
Como é habitual nestas ocasiões, não faltaram as críticas dos moralistas de serviço, que logo associaram a "inconsciência" dos jovens festivaleiros ao surgimento dos novos focos de contágio detectados. É bem possível que alguns (muitos) desses jovens tenham contraído o vírus e sejam agora potenciais portadores do Covid. Acontece que, depois dos eventos relatados e amplamente difundidos e comentados pela Comunicação Social, os casos de contágio na Grande Lisboa e na margem Sul, aumentaram exponencialmente, ao ponto do diário espanhol "El País", ter feito uma notícia de primeira página, onde se podia ler que "3 milhões de portugueses da grande Lisboa, tinham voltado ao confinamento". Um exagero, claro, logo desmentido pelo governo português, já que notícias destas poderão afectar o turismo de Verão, agora que grande parte dos turistas nórdicos hesitam em passar férias no mediterrâneo e Portugal voltou a ser notícia por más razões.
Acontece que a "Grande Lisboa", de que fala o artigo de "El País", não é uma realidade uniforme, sendo constituída por diversas cidades-dormitório e bairros periféricos, onde habitam a maior parte das pessoas que trabalham na capital. Muitas delas, a maior parte, desloca-se diariamente para a grande cidade, em transportes suburbanos apinhados (comboios, autocarros, metropolitanos); e outros, em menor número, em carros privados. Também muitos destes trabalhadores, vivem em bairros degradados e desempenham funções de maior contágio (restauração, construção civil, limpezas em lares e hospitais); enquanto outros, durante o confinamento, não necessitaram sequer de sair de casa para desempenharem as suas funções (teletrabalho). Uns, a maior parte, têm os filhos em escolas publicas, onde muitas vezes não existem condições de salubridade e onde não há aquecimento; e outros, em menor número, têm filhos (em colégios privados) que transportam em carros privados. Um Mundo de diferenças.
É pois, natural, que a maior parte dos novos casos de infectados com o vírus, sejam da Grande Lisboa, onde vive um 1/3 da população do país. Como também é natural, serem os mais desfavorecidos (social e economicamente) os primeiros infectados. Dito de outro modo: haverá sempre mais casos de Coronavírus na Amadora, em Loures ou nas "Jamaicas" deste país, do que no Restelo, Telheiras ou Cascais.
Parece pois, óbvio, que, mais do que a inconsciência dos jovens e as festas da praia, o vírus que urge mesmo combater, é o vírus da pobreza (e da desigualdade), a maior das epidemias portuguesas. Combatam-se ambas com determinação e medidas adequadas e a imunidade dos portugueses melhorará de forma significativa. Prevenir, sempre foi melhor do que remediar.