2018/06/15

O populismo, pai do hooliganismo

Decorreu um mês sobre o incidente de Alcochete. Nesse dia (15 de Maio), cerca de meia centena de "alegados apoiantes", de um clube da capital, invadiram as instalações de treino da equipa principal de futebol e espancaram selvaticamente os seus jogadores e treinador, tendo ainda, durante a fuga, destruído parte do balneário e outras instalações. Algo nunca visto neste país e que, até hoje, associávamos a outros países e latitudes, normalmente fora da Europa.
Um mês decorrido, sobre este lamentável episódio, que balanço pode ser feito?
Foram detidos cerca de trinta indivíduos, que participaram nesta acção, faltando ainda apurar quem são e onde se encontram os vinte restantes; não são conhecidos formalmente os cabecilhas da acção, apesar da maioria das denuncias apontarem na mesma direcção (os líderes de uma das claques e, por extensão, a direcção do clube em causa, que autorizou e incentivou tais formas organizadas dentro das suas instalações). Finalmente, a ligação dos membros desta claque, ao tráfego de drogas, extorsão e associação criminosa, com extensões a movimentos de extrema-direita, como a própria polícia reconhece e vem a alertar há anos a esta parte.
Entretanto, no clube em causa, as recriminações sucedem-se: parte dos orgãos sociais já se demitiu, metade do plantel rescindiu unilateralmente os seus contratos e o próprio treinador (também ele, um dos agredidos) rumou a outras paragens. Os prejuízos, materiais e não só, são agora difíceis de calcular, mas irão afectar gravemente, não só o clube, mas todo o futebol português por extensão, já que o que se passou na Academia de Alcochete, podia ter-se passado noutro clube, onde a maioria dos "hooligans" (que compõem as claques) são apoiados pelas próprias agremiações e incentivados a comportamentos que extravasam o simples meio desportivo. Quando é o responsável máximo de um clube a criticar os seus jogadores e a incentivar os sócios contra a própria equipa, não nos devemos admirar dos efeitos destes discursos demagógicos e populistas nas claques apoiantes, muitas delas ligadas a práticas violentas e com cadastro criminal conhecido das autoridades. É o caso do "skinhead" Mário Machado, líder e fundador do Partido neo-nazi português (entretanto proibido) acusado e preso por diversos crimes, entre os quais o da morte do cabo-verdiano Alcindo Monteiro, no dia 10 de Junho de 1995, sobre cuja morte passou esta semana mais um aniversário (ver artigo de Rui Tavares in "Público" de 13 de Junho de 2018).
Monteiro, que passeava com outros amigos em Lisboa, foi barbaramente espancado por um grupo de "cabeças rapadas", sem motivo aparente, apenas por ser negro. O caso, muito badalado à época, terminou com a acusação e prisão dos 15 implicados nestas agressões, entre os quais Manuel Machado, condenado a dez anos de prisão, dos quais cumpriu apenas seis. Encontra-se actualmente em liberdade, tendo há poucos meses sido visto (e entrevistado por uma estação de televisão!) à saída de um restaurante, onde acabara de participar numa refrega, contra outro grupo da extrema-direita, por alegadas disputas sobre territórios de tráfego de droga. Ora, foi este mesmo Manuel Machado que - após a prisão do ex-líder da claque, que invadiu a Academia de Alcochete - anunciou, em comunicado, querer candidatar-se a líder dessa mesma claque (!?). Lemos e não acreditamos.
Os acontecimentos de Alcochete deixaram marcas e, porque um dos seus principais culpados morais  se encontra ainda em funções (deu ontem mais uma conferência de imprensa, transmitida em horário nobre pelos principais canais de televisão) é de admitir que, daqui a um mês, ainda estejamos a ouvir falar das consequências desta situação verdadeiramente aberrante, a que toda a comunicação social continua a dar cobertura, contribuindo para incendiar paixões, que há muito extravasaram o simples clubismo. O futebol profissional (não só em Portugal, de resto) deixou de ser apenas um desporto, para se tornar uma industria, que gera milhões e encobre negócios ilícitos (tráfego de influências, corrupção, fugas ao fisco, lavagem de dinheiro de drogas, etc.), como é conhecido de toda a gente.
Ora, o que fazem os governantes portugueses, perante factos e provas irredutíveis desta criminalidade organizada (dirigentes, bancos, máfias, neo-nazis), que gira à volta do futebol profissional português há décadas? Recusam falar sobre tal matéria, remetendo as questões polémicas para a justiça, para não ferir susceptibilidades, não vá o poderoso mundo do futebol (um estado dentro do estado) insurgir-se contra as críticas. Só esta semana, quatro dos principais governantes portugueses portugueses (o presidente da república, o primeiro-ministro, o ministro da educação/desporto e o presidente da Assembleia da República) irão à Russia "apoiar" a selecção nacional e, implicitamente, bajular Putin, um ditador sem escrúpulos, que é hoje o grande vencedor desta competição que se chama campeonato mundial de futebol. A promiscuidade entre o futebol e a política é total e não pode ser ignorada. Assim, não vamos lá.