2016/03/24

O Holandês Voador


Vi-o tantas vezes jogar, que esqueci o número de partidas.
Lembro-me, isso sim, da primeira vez que o vi ao "vivo".
Eu tinha chegado a Amsterdão há pouco mais de dois anos e trabalhava numa companhia holandesa de seguros. Era Inverno e, além do frio, nevava copiosamente. Na semana anterior ao jogo, um dos colegas do escritório perguntou-me se eu não ia ver o Benfica, que tinha calhado em sorteio ao Ajax. Disse-lhe não ser essa a minha intenção, mas ele insistiu e comprou os bilhetes. Lá fomos, no dia 12 de Fevereiro de 1969, ao Estádio Olímpico de Amsterdão, lugar mítico para os portugueses, onde o Benfica tinha ganho a sua segunda taça de campeões europeus, em 1962. 
O Estádio Olímpico era, à época, descoberto e, nessa noite, a intempérie afastou muita gente do estádio. Recordo-me de estar duas horas de pé, ao frio e à neve, e de ficar completamente enregelado. Não me lembro dos pormenores do jogo, mas da exibição de dois jogadores naquela noite gelada: do Eusébio, já longe do seu período áureo, mas suficientemente perigoso para suscitar "ohs" de espanto de cada vez que pegava na bola; e do jovem Cruijff, em início de carreira, o grande ídolo do futebol holandês. Os portugueses ganharam (3-1), o que me valeu elogios de todos os colegas na manhã seguinte. Eu era o único estrangeiro da empresa, onde trabalhavam mais de cinquenta pessoas e, nesse dia, penso ter incarnado o "espírito" da pátria...
O deslumbramento duraria pouco. O Ajax ganharia em Lisboa a segunda-mão da eliminatória, pelo mesmo resultado, o que obrigou a um terceiro jogo em Paris. Com Cruijff em grande forma, a equipa holandesa derrotaria os "encarnados" por 3-0.
Nunca mais deixei de "seguir" o Johan que, a partir daí, passou a ser o meu ídolo local.
Os anos que seguiram, confirmaram o seu talento e o currículo está aí para prová-lo. Como jogador, como treinador e como pensador do futebol. No Ajax primeiro e no Barcelona mais tarde, não esquecendo a "laranja mecânica", a selecção holandesa que melhor praticou o "futebol total". Um génio do futebol, incomparável na sua forma de jogar e de influenciar o desporto que o tornaria famoso.
Partiu hoje, este holandês que "voou" acima dos seus pares, quem sabe na procura de voos mais largos.

2016/03/23

Double Standards


Os atentados de Bruxelas lembram-nos que o terror não abrandou, apesar dos sofisticados meios postos ao dispôr das polícias e serviços de informação internacionais. Uma realidade insofismável, à qual não podemos furtar-nos e que temos (todos) de enfrentar, única forma de manter a liberdade que alguns teimam em querer roubar-nos.
O método usado pelos terroristas não difere de outros atentados no passado em Madrid, Londres ou Paris, ainda que a sua autoria tenha sido reivindicada por organizações, aparentemente, diferentes (Al Qaeda e Daesh).
Em todos eles podemos reconhecer um padrão comum: a destabilização da vida quotidiana, através de actos de terror gratuitos, praticados indiscriminadamente contra cidadãos civis. Os locais são, por norma, frequentados por grande número de pessoas (transportes públicos, estações de caminhos de ferro, aeroportos) e em capitais de países directamente implicados nos conflitos militares do Médio-Oriente. Foi assim em Madrid e em Londres, nos atentados executados por células do Al Qaeda, como resposta à intervenção militar no Iraque (o que originou, posteriormente, a retirada das tropas espanholas do conflito); e foi, assim, de novo, em Paris e Bruxelas, nos atentados reivindicados por membros do Daesh, como resposta às intervenções europeias na Síria.
Ainda que o estafado argumento da "não-integração" de minorias estrangeiras estigmatizadas em Londres, Paris ou Bruxelas, não deva ser desprezado - como explicação para a adesão destes "desesperados" a uma causa fanática sem objectivos, onde a auto-imolação dos terroristas é, por norma, o desfecho frequente - a verdade é que o problema do terror (do "mal", como alguém lhe chamou) é bem mais complexo do que à primeira-vista poderá parecer.
Nas últimas vinte-e-quatro horas, temos assistimos a uma emissão "non-stop" de programas de televisão, onde os mais variados "experts" na matéria, dizem coisas tão banais como "enquanto for permitido entrar nos aeroportos sem sermos revistados, os terroristas não necessitam de passar o controlo de bagagem. Basta-lhes entrar com um carrinho de bagagem no hall de entrada...". O que é verdade, obviamente. E então? Passamos a controlar os passageiros na Grand-Place de Bruxelas?
A paranóia está instalada e este é o maior perigo. Destabilizar as sociedades ocidentais (uma vez que o terrorismo é, hoje, global) é o fim último destes grupos de "lobos" acossados, sem programa político, para além do ódio e da frustração.
Todos os "experts" disseram isto e disseram outra coisa ainda: a prevenção tem evitado males maiores, mas nunca evitará os atentados em si. Haverá sempre um momento de distracção (ou menos atenção) que pode ser fatal. Por outras palavras: é impossível tudo controlar, a menos que coloquemos um polícia ao lado de cada cidadão. Nem nos estados mais totalitários, isso é possível, como sabemos.
Ora, como não desejamos um estado totalitário (o desejo inconfessável dos fascistas de várias matizes), teremos de defender a liberdade conquistada, única forma de não permitir o aumento da repressão. No fundo, encontrar o equilíbrio entre segurança e a democracia, para que a primeira não nos faça perder a segunda.
Esta luta, que é de todos, passa, obviamente, por uma maior consciência dos interesses em jogo, que não acabam no bairro de Molenbeek. É necessário fazer rusgas e prender os suspeitos, chamem-se eles Hamid ou Van der Meulen. Os suspeitos existem ("o fascismo está em cada um de nós", dizia Deleuze), mas convém não isolar a árvore da floresta. Algures, numa cidade perto de si, os maiores "arautos da liberdade" clamam por mais uma guerra (formal), contra um exército de sombras. Na manhã de ontem, ouvimos, outra vez, François Hollande proclamar o seu "statement" favorito: "Estamos em guerra!". É verdade. Estamos em guerra. Não foi ele que vendeu os "Mirages" e continua a comprar petróleo aos "sheiks" da Arábia Saudita, o principal financiador do mesmo "Estado Islâmico" que pratica atentados em solo europeu?
Se querem combater eficazmente o terrorismo, comecem pelas suas fontes de financiamento. Deixem de vender armas às ditaduras árabes e impeçam a venda do petróleo controlado pelo Daesh, aos países que mais dele beneficiam (por exemplo, a Turquia). Não será a solução para todos os problemas, mas é, certamente, um passo na boa direcção.