2019/03/14

Flamenco e Bandoleros em terras de Carmen (3)


Carmen Linares, de seu nome Carmen Pacheco Rodriguez (1951), dispensa apresentações. Artista de renome internacional, ela é a voz contemporânea do Flamenco. Precisamos de  recuar à legendária Niña de Los Peines (1890-1969), para encontrar tamanho talento. Nos anos setenta e oitenta, já cantava em Madrid com Camarón e Enrique Morente, onde era acompanhada por Juan e Pepe Habichuela. Participou na produção "El amor brujo" de Manuel Falla, dirigida pelo maestro Joseph Pons, tendo passado por palcos como o Lincoln Center de Nova-Iorque, a Opera Housa de Sidney ou o Albert Hall em Londres. Gravou inúmeros albuns de referência, como "Canções Populares de Lorca", "Antologia de la mujer el Cante" ou "Raíces e Alas". Cantou todos os grandes poetas espanhóis, de Lorca a Alberti, de Hernández a Machado. Alguns dos mais reputados prémios da sua carreira, incluem o Melhor Album da Academia Francesa (1991), a Medalha de Prata da Andaluzia (1998) o Prémio Musical de Espanha (2001), a Medalha de Ouro de Belas Artes (2001), o Prémio do Melhor Album de Flamenco (2008) e o Prémio da Academia de Música (2011). 
Sempre que posso, corro a vê-la, com a ansiedade que caracteriza a descoberta. É assim, desde 1998, quando a contratei pela primeira vez para uma digressão em Portugal, realizada em Outubro do mesmo ano. Do programa, constavam as "Canções Populares Antigas", compiladas por Garcia Lorca e popularizadas pela mítica La Argentinita, em 1931. Uma epifania.
No dia 8 de Março, descobri que ela cantava no centenário teatro Lope de Vega, a sala de visitas da cidade de Sevilha. Como resistir? Reservados os lugares, lá fomos, para assistir à apresentação do seu último e aclamado album "Verso a Verso", baseado em poemas de Miguel Hernández.
Hernández, um dos nomes maiores da geração de '27, da qual faziam parte Garcia Lorca e Rafael Alberti, teve uma vida dramática. De origem camponesa, foi pastor, após ter deixado os estudos para ajudar a família. Tornou-se auto-didacta, nunca deixando de estudar e escrever para diversas publicações da época. O seu primeiro livro, "Perito en Lunas" (1933), foi publicado em Madrid, onde entretanto conseguira um emprego. A Guerra Civil veio interromper um dos seus períodos mais criativos. Juntou-se ao 5ª Regimento, como voluntário, ao lado dos Republicanos. Datam dessa época, alguns dos seus mais conhecidos escritos: "Elegia a Ramón Sijé" (1934), "El Rayo que no Cesa" (1936), "Viento del Pueblo" (1937) e "El Hombre Acecha" (1939), que incluem poemas memoráveis como "Andaluces de Jaén", "El Niño Yuntero" e "El Herido". Após a guerra, conseguiu escapar, mas, ao regressar à sua terra natal (Orihuela), seria preso, libertado e preso de novo. Os dois anos que passou entre prisões, aproveitou para escrever os poemas que fazem parte do "Cancionero Y Romancero de Ausencias", obra-maior da sua produção. Desta compilação, fazem parte composições fundamentais como "Nanas de la Cebolla", "Llegó con tres heridas" e "El sol, la rosa y el niño". Após ter-lhe sido diagnosticada uma infecção pulmonar, morreria em 1942, com a idade de trinta e nove anos.
Foram os poemas, deste poeta maior da língua espanhola, que Carmen Linares apresentou em Sevilha, perante uma sala praticamente esgotada. Um concerto algo desigual, onde a cantora, após um início contido, na interpretação do lindíssimo poema "Para La Liberdad" (bulerias), avançaria para as canções mais dramáticas "Andaluces de Jaén" (peteneras y tarantas), "Compãnero" (cantes de Levante), "Canción de los Vendimiadores" (alegrias) e as versões musicais de "Casida del Ciedo" e ""llegó con tres heridas", os momentos altos do concerto, nos quais foi acompanhada pelo trio constituido por Josemi Garzón (contrabaixo) Karo Sampala (percussão) e Pablo Suárez (piano). O concerto, sempre a subir, não terminaria sem os habituais "encores", com a cantora a interpretar canções populares espanholas, entre as quais, os clássicos "Anda Jaleo" (buleria) e "Sevillanas del siglo XVIII" (Sevilhanas). Uma soirée para recordar.       
  






2019/03/13

Flamenco e Bandoleros em terras de Carmen (2)


Se há lugares mágicos, Ronda, a meio-caminho entre Sevilha e Málaga é, certamente, um deles. Já aconteceu a todos: chegamos a um sítio pela primeira vez e sentimos que podíamos lá viver. Ou morrer, para o caso tanto faz...
Foi essa sensação que sentimos, ao chegar pela primeira vez à praça principal da cidade, que desemboca na "puente nuevo" (construída no século XVIII) a ligação da parte moderna, vibrante de vida e comércio, à parte antiga, com os seus edifícios de origem românica e árabe. Ronda é também atravessada pelo rio Guadalevín, cujo caudal provocou uma fenda (El Tajo) com 120 metros de profundidade, o mais conhecido "ex-libris" da cidade. Olhando para baixo, é a vertigem. Olhando para o Sul, podemos avistar, no horizonte, a cordilheira que separa a planície da orla marítima. Marbella dista apenas 54km. Não é Xanadu, mas quase.  
Percebemos agora, melhor, a frase de Orson Welles, que passou longos períodos em Ronda e cujas cinzas permanecem, por seu desejo, na herdade do amigo e toureiro Ordoñez, situada a 6km da cidade: "A man does not belong to the place he was born in, but to the place he choose".
Welles não foi, no entanto, o único americano famoso a apaixonar-se por Ronda. Também Ernest Hemingway, que cobriu a guerra civil espanhola como "reporter", ao lado dos republicanos, voltava frequentemente a Espanha, para assistir às touradas, de que era aficcionado. Alguns dos seus mais famosos livros ("Por Quem os Sinos Dobram", "Death in the Afternoon", "The Dangerous Summer"), foram escritos em Ronda. A cidade não esqueceu a passagem destes dois ícones da cultura americana e retribuiu da melhor forma, honrando-os com bustos, que podem ser admirados no parque principal, ao lado da famosa praça de touros, uma das mais antigas e importantes de Espanha. Na praça, inaugurada em 1785, existe ainda um museu e uma escola de equitação, que recebe a visita de milhares de turistas diariamente. Todos os anos, em Setembro, realiza-se a famosa corrida "Goyesca" (única em Espanha) na qual os toureiros se apresentam vestidos com trajes de famosas pinturas de Goya. Foi aliás, nesta praça, que Francesco Rosi filmou as cenas finais de "Carmen" (1984), considerada uma das melhores adaptações cinematográficas da famosa ópera de Bizet. Por Ronda, se apaixonou o poeta austríaco Rainer Marie Rielke (1875-1926), que viveu na cidade entre 1912 e 1913. O hotel Reina Victoria, onde viveu, ainda existe, mas o quarto (208) foi completamente remodelado. Restam a secretária, a cadeira e um armário, que se encontram no "lobby" do hotel.
Na impossibilidade de tudo ver, em apenas dois dias, optámos pela Real Colegiata de Santa María Mayor, um imponente complexo, mandado construir pelos Reis Católicos, sobre as ruínas da antiga mesquita Mayor de La Medina, da qual ainda é possível admirar o Arco del Mirhab e parte do muro da mesma. Impressionante, é a nave central da igreja e os seus retábulos, para além de uma importante colecção de ícones ortodoxos, que podem ser admirados no primeiro andar. Subir ao telhado, através de uma íngreme escadaria em caracol, é um sacrifício compensador. Dele se avista toda a cidade e a planície em redor. Imperdível, o pôr-do-sol.
Imperdíveis são, ainda, os "baños árabes", em perfeito estado de conservação, que podem ser visitados diariamente. Trata-se de uma adaptação dos antigos banhos romanos, que constituem uma das heranças maiores da cultura muçulmana, quando Granada era o último reduto do Islão na Península Ibérica (Séc. XII-XV). Numa das salas, pode ser visto um filme sobre a técnica de construção dos banhos e o seu funcionamento.
Dada a sua localização, Ronda foi, durante um largo período da história (Séculos XVI-XIX), um refúgio para "bandoleros", assaltantes dos viajantes que ousavam atravessar as serras circundantes. Ainda que o fenómeno existisse noutras regiões de Espanha (e de Portugal), foi na Andaluzia que ele se manifestou com maior intensidade. Não é pois de admirar, que tivesse sido em Ronda, que abriu o primeiro, e único, museu espanhol dedicado à temática dos Bandoleros e Viajantes Românticos (uma espécie de "banditismo social", à imagem do nosso Zé do Telhado). Uma verdadeira "meca", para os estudiosos do tema, que dispõe de mais de 1400 objectos, entre livros, armas, vestuário, fotos e documentação original.
O Museu, dispõe de cinco salas, dedicadas a temas tão diversos como "Os Viajantes Românticos", "Viver o Banditismo", "Os Homens e os seus Nomes", "Aqueles que os perseguiam (Guardia Civil)" e "Armas e Testemunhos escritos", para além de uma sala onde são projectados filmes e uma loja de "souvenirs" e literatura especializada, já que o tema é estudado por académicos, que se reunem periodicamente em colóquios dedicados à matéria. Lá encontrámos os nomes e as relíquias dos mais famosos representantes do bandoleirismo: Los Niños de Écija, El Tempranillo, Diego Corrientes, Francisco Jiménez e Pazos Largos, o último "bandolero", falecido na prisão em 1934. Uma verdadeira preciosidade, este museu. 

2019/03/11

Flamenco e Bandoleros em terras de Carmen (1)



Antonio Canales, que tive o privilégio de ver dançar no CCB há meia dúzia de anos, é hoje considerado uma das grandes figuras masculinas do baile flamenco de sempre. Apesar de jovem (57), o seu nome já pertence ao panteão dos imortais "bailaores", ainda que os excessos e uma saúde precária o tenham forçado a abandonar a dança precocemente. Porque as homenagens se fazem em vida ("antes que lhe paguem uma miserável pensão de reforma", como escrevia por estes dias o "Diario de Andalucia") sucedem-se os espectáculos, um pouco por toda a Espanha. Foi assim, mais uma vez, no passado dia 28 de Fevereiro, no Teatro Municipal Enrique de La Quadra, em Utrera, uma das cidades-cadinho do Flamenco, situada a cerca de 30km de Sevilha.
Lá fomos, com a devida antecedência, uma vez que a sala é pequena e estava há muito esgotada. Apesar do inusitado da hora (6 da tarde) para este tipo de espectáculos, a azáfama nos arredores do teatro - um velho edifício do século passado, situado no casco histórico da cidade - era enorme. Famílias inteiras, onde não faltavam os carros de bébés e mulheres em trajes festivos que, em voz alta, como é timbre dos andaluzes, bebiam uma "caña", enquanto esperavam pela abertura das portas do teatro.
Não era caso para menos: do cartaz, entre dezenas de convidados, faziam parte nomes como Manuela Carpio, Eva la Yerbabuena, Família Farruco, Carmen Lozano (no "baile") e Remedios Amaya, Marina Heredia, Montse Cortes e Rafael Utrera (no "cante"). Um programa de luxo, reunido para uma ocasião especial. E esta era, certamente, uma ocasião especial.
Destaque para as intervenções de Carmen Lozano e da família Farruco (mãe e o filho), responsáveis pelos momentos mais altos na disciplina da dança, em especial "Farru", que em nada fica a dever ao patriarca da família, o grande El Farruco (desaparecido em 1997) e ao seu irmão mais velho (Farruquito), celebrados por Carlos Saura no filme "Flamenco". Electrizante, é o mínimo que se pode dizer da arte dos Farrucos, arrebatadora na sua técnica e dramaticidade.
O melhor "cante", ficaria guardado para duas intérpretes clássicas do género, respectivamente Remedios Amaya e Marina Heredia, que cumpriram com o profissionalismo que se lhes conhece. Uma nota ainda para "El Bomba", membro da associação que organizou a homenagem, inexcedível como "cantaor",  "bailaor", "palmero" e tudo que, com uma energia transbordante, não parou durante as três horas e meia que durou o espectáculo.
Resta falar do homenageado. Presente na sala, subiria ao palco, acompanhado da sua mãe, para agradecer a homenagem num longo discurso. A noite não terminaria, sem mais uma "buleria" cantada pela senhora Canales, na qual seria acompanhada por Antonio, em breves passos de dança...
Que mais poderíamos desejar?