2008/10/02

Kadaverdiscipline

Por mais que o porta-voz do Partido Socialista se esforce, a disciplina de voto imposta aos membros da bancada parlamentar (na questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo) não consegue apaziguar alguns dos deputados mais inconformados. A descer nas intenções de voto de há seis meses a esta parte, o PS sabe, que, numa conjuntura desfavorável, não pode arriscar uma guerra com a sua ala mais conservadora.
Paradoxalmente, é um partido de direita e teoricamente mais conservador em questões de costumes, o PSD, que dá liberdade de voto aos seus deputados.
Algo não bate certo nesta lógica de calculismo político seguida pelo maior partido do parlamento. A justificação dada por Alberto Martins, sobre a oportunidade da votação, é uma declaração acabada da hipocrisia que domina o voto socialista.
Longe vão os tempos em que o PS criticava os partidos estalinistas pelas suas práticas de centralismo democrático. O argumento, segundo o qual o PS seria um partido de opiniões livres, deixa assim de fazer sentido. Na antiga Europa de Leste, chamava-se a este método "kadaverdiscipline": disciplina de ferro. Deputados assim, não são de ferro, são "mortos vivos".

2008/09/28

A ARTE PÚBLICA É UMA PRERROGATIVA DOS CIDADÃOS!

A petição "Reposição dos painéis de azulejos de Maria Keil pelo Metropolitano de Lisboa"  vai ser retirada logo que isso seja tecnicamente possivel. Como promotor desta iniciativa, queria desde já pedir a todos os que se envolveram nesta Petição, publicitando-a ou assinando-a, que fizessem o favor de divulgar agora este post

A retirada da Petição tem propósitos claros. É para mostrar esta transparência de propósitos, para que se saiba o que verdadeiramente me move nesta tomada de decisão, que escrevo estas linhas.

1- Retirar a petição não significa capitulação. 

Quando, reagindo à leitura dos blogs que estiveram na origem deste movimento, criei a Petição, estavam por trás desta minha decisão muitos anos do exercício, sempre difícil, de ser Português. Sou, somos todos, testemunhas de muitos casos de livre arbítrio, de desrespeito, de incúria, de injustiça e de desleixo neste País. Temos um capital de experiência que nos imuniza contra a surpresa perante este tipo de acontecimentos. Só por ingenuidade poderíamos pensar que não é possível acontecer algo semelhante em Portugal. "Painéis de Maria Keil" destruídos há-os por todo o reino e para vários os gostos. Assistimos todos a muitos casos de destruição de património. Presenciámos inúmeros atropelos às prerrogativas dos cidadãos (a arte pública é também uma prerrogativa dos cidadãos). Observámos o fingido respeito que é votado aos artistas, verdadeiros cidadãos de terceira categoria na hierarquia social do País. Assistimos a inúmeras perdas irreparáveis dos testemunhos culturais, materiais e imateriais, da história da nossa vida colectiva. Tomámos conhecimento dos múltiplos saques e pilhagens de património, com a complacência e mesmo, por vezes, com o beneplácito das autoridades. Somos testemunhas permanentes do desleixo e da boçalidade que imperam na nossa vida colectiva em tantos domínios. É assim o "sistema".

A experiência mostra que, em Portugal, qualquer desvio a este padrão ocorre apenas perante um cerrado escrutínio dos cidadãos. Quando entregue a si próprio, o "sistema" puxa imediatamente da pistola.

Não foi, pois, com surpresa, nem com incredulidade, que recebemos um alerta dando-nos conta da utilização da inovadora técnica da picareta na preservação dos painéis de azulejos de autoria de Maria Keil pelo Metropolitano de Lisboa. Apenas com revolta. 

2- Retirar a petição não significa que os seus signatários tenham sancionado a criação de uma qualquer mentira.

Nem significa que tenham legitimado, com a sua participação, um qualquer acontecimento fantasma. Não! Os painéis da Maria Keil foram efectivamente destruídos! Como a própria empresa Metropolitano de Lisboa admitiu, quando foi sobre isso questionada por apoiantes da Petição (os factos estão aliás descritos com detalhe no seu site) e o filho de Maria Keil veio também depois confirmar publicamente. Ninguém inventou o problema.

3- Retirar a petição não significa que os motivos últimos, mais íntimos e profundos, que me levaram a criá-la, tenham sido ultrapassados. 

O problema levantado está longe de ter ficado totalmente clarificado. O Metropolitano de Lisboa deve-nos uma explicação, que continuaremos a aguardar. Mais ainda: a questão dos painéis levantou até, curiosamente, problemas novos que não deixaremos passar sem análise cuidada. As minhas dúvidas em relação a todo o processo que se seguiu à destruição dos painéis são agora maiores. 

4- Retirar a Petição não significa que concorde com o princípio de que o processo dos painéis de Maria Keil tem "prazo de validade". 

Somos acusados de um pecado original neste movimento que ajudámos a criar. Os factos terão ocorrido há dez anos, mais coisa menos coisa. Num artigo recente da revista Atlantic intitulado "Is Google Making us Stupid?", Nicholas Carr escreve: 

A concepção do mundo que resultou do uso generalizado de instrumentos de medição do tempo constitui [como diz Joseph Weizenbaum no seu livro "Computer Power and Human Reason: From Judgment to Calculation" (1976)] 'uma versão exaurida da concepção antiga, porque se baseia na rejeição da experiência directa em que assentava, ou melhor, que era a própria substância da realidade anterior.' Quando decidimos a hora de comer, de trabalhar, de dormir e de acordar, deixamos de escutar os nossos sentidos e passamos a obedecer ao relógio.

Falando dos painéis de Maria Keil, o sentimento genuíno de revolta que escutámos dentro de nós, gerado por esta acção do Metro, esta reacção imediata dos sentidos, não parece impressionar os críticos da Petição. Para eles o calendário lavou a evidência do crime. Não interessa que sintamos que ao crime tem de corresponder julgamento e condenação. Não interessa que ao não ser sancionado este crime -- tenha ele ocorrido há dez anos ou há dez minutos-- esteja aberto o caminho para a sua mais que provável repetição. Há bem pouco tempo a RTP mostrou um outro problema grave, envolvendo novamente o Metro e um artista plástico português. Quem nos garante que a origem remota deste novo incidente não reside na condescendência, na irresponsabilidade e na leviandade com que o caso de Maria Keil foi e continua a ser encarado? Aceitar que o "prazo de validade" deste processo expirou é o mesmo que aceitar que, desde que se jogue bem com o tempo, o crime já pode compensar. 

5- Razões que me levam a retirar a Petição.

Não posso de todo aceitar a teoria do "prazo de validade". Mas, tenho de admitir que ela pode ter algum eco na opinião pública. Receio que o argumento tenha sobre essa opinião pública efeitos perversos, antes mesmo de serem criadas oportunidades para uma reflexão mais aprofundada sobre este tema. 

A par do argumento do "prazo de validade", ouvimos um outro --malévolo ou míope-- de que tudo isto teria perturbado a própria Maria Keil. Qualquer pessoa medianamente inteligente perceberá que uma iniciativa que pedia a reparação de um mal que lhe foi efectivamente causado (mas de que somos todos, nós e ela, vítimas), não pretende magoá-la. Porém, eu não quero que sobre essa matéria subsista qualquer dúvida. Se 4.000 pessoas expressam de forma espontânea e exuberante o seu carinho e o seu apreço por Maria Keil e pela sua obra, e esse seu acto pode, mesmo assim, ser interpretado como hostil, que não restem dúvidas: não era essa (penso que posso falar por todos) a nossa intenção... 

Temo que o eco do argumento do "prazo de validade" possa, nesta era de memória curta e causas efémeras, afastar a generalidade da opinão pública da reflexão aprofundada e necessária sobre esta matéria. Pressinto que a argumentação mesquinha que a iniciativa também gerou tenha acabado por suscitar reservas e dúvidas que conduziram ao afastamento de muitos que estão próximos dos nossos pontos de vista e que interessa que estejam junto de nós neste debate. E não quero que os milhares de signatários da Petição sintam o seu apoio a esta causa traído porque os nossos objectivos foram desfocados por "controvérsias" ridículas e protagonismos frustrados, que conduzem a discussão para territórios indesejados e originam a perda de eficácia desta ferramenta. Por isso (e só por isso!) a retiro. 

Mas, a luta por um papel activo da arte no desenvolvimento da consciência cívica dos portugueses irá prosseguir. Outros iniciativas irão ser postas em marcha e outros instrumentos serão encontrados para tratar esta questão que nos uniu e nos une a todos.

Até breve.