De Donald Trump, tudo se espera.
O primeiro discurso, no Congresso, não foi, por isso, particularmente surpreendente.
Para quem tem acompanhado as primeiras semanas do seu mandato, as questões centrais, já anunciadas no dia da tomada de posse, voltaram a ser referidas, ainda que usando uma terminologia mais suave.
Relembremos as principais, que parecem constituir o cerne das políticas que pretende aplicar:
1) A guerra aos média. Para Trump, os jornalistas não são de confiar. Principalmente a CNN, o NYT ou o Washington Post. Já a Fox News, é de elogiar (por alguma razão é a estação televisiva preferida do presidente). O recente boicote aos principais orgãos de informação no "briefing" da Casa Branca foi apenas o culminar de uma guerra que dura há cinco semanas. Um clássico, usado por todos os aspirantes a ditadores e que, num país como os EUA, lhe pode sair caro.
2) O fim da ordem comercial liberal. Trump quer acabar com os tratados internacionais existentes (TTP) e reabrir a negociação da NAFTA, de forma a isolar países com quem os EUA têm acordos e um "deficit" na balança comercial. A ideia é relançar a economia americana a partir de dentro (America First), multando as multinacionais que operam no estrangeiro, com novas taxas alfandegárias e outras penalizações. Uma política proteccionista, que implica um maior investimento estatal, como não se via desde Roosevelt. Para um liberal, aplicar medidas Keynesianas, é uma novidade.
3) A crise com o México. O projecto da construção do muro mantém-se, assim como a perseguição aos ilegais (11 milhões) dos quais grande parte serão mexicanos que trabalham na agricultura, na restauração e nos serviços domiciliários. Sem esta mão-de-obra estrutural, que mantém as grandes propriedades e culturas agrícolas na Califórnia e estados do Sul, não se vê quem possa fazer os trabalhos que os americanos legais não querem fazer.
4) O fecho das fronteiras a muçulmanos. A ideia mantém-se, ainda que as primeiras medidas tenham causado caos nos aeroportos, críticas internas e externas e a sua primeira derrota judicial. Os refugiados serão as primeiras vítimas, mas não só: parte das empresas sediadas em Sillicon Valley, que dependem do "know-how" imigrante, já vieram protestar. Não vai ser fácil.
5) Os inimigos dentro do estado. Trump dispara contra tudo e todos: os tribunais, as secretas e os funcionários, acusando-os de o comprometerem perante a Russia. Os despedimentos prosseguem e dentro em pouco só restarão fiéis a Bannon. Já vimos este filme noutros países e latitudes, nomeadamente em ditaduras.
6) Diplomacia. Trump não pratica a diplomacia. Não sabe o que isso é. As gaffes sucedem-se e o "bullying" é constante. Com Merkel, com o primeiro-ministo australiano, com o primeiro-ministro japonês e inclusive com o Reino Unido, onde circula uma petição (2 milhões de assinaturas) para impedir a sua ida ao Parlamento inglês.
7) Conflito de interesses. Continuam por explicar as suas ligações ao império empresarial que controla e quem fica a dirigir as as suas empresas, agora que é presidente e não pode acumular funções. A família?
8) A conexão russa. A demissão de Michael Flynn, a primeira do seu gabinete, pode indiciar outro tipo de relações e eventuais chantagens sobre o seu governo por parte da Russia. As revelações podem ser comprometedoras.
9) O regresso ao discurso da campanha. É notória a sua dificuldade em lidar com a opinião pública. Mesmo entre os conservadores, como Bush Jr. e McCain, não parece haver consenso. Quem votou nele ainda o apoia, mas por quanto tempo?
10) A governação impulsiva. Tudo em Trump o torna pouco fiável. As suas ameaças, mais não representam do que reacções escapistas perante a realidade do poder. Não conquistou mais adeptos e arranjou mais inimigos. Resta saber, qual a próxima fuga.
No discurso de hoje, anunciou um aumento de 9% (54 mil milhões de dólares) no maior Orçamento de Estado para a Defesa da história dos Estados Unidos! Os cortes serão feitos na saúde (o Obamacare só dá "despesa"), no meio-ambiente e nos apoios internacionais. O regresso às cavernas. Só falta uma guerra para incrementar a industria militar.
Voltaram as mentiras e as meias-verdades: sobre o perigo do terrorismo trazido pelos refugiados (todos os atentados terroristas praticados nos Estados Unidos, desde o ano 2000, foram praticados por americanos ou residentes no país!); a proibição de imigrantes vindos de países que apoiam o terrorismo (Líbia, Sudão, Síria, Iraque, Irão, Iémen ou Somália) é selectiva e não abrange o Egipto e a Arábia Saudita (donde vieram todos os atacantes do 11/9 e com quem os EUA mantém negócios altamente lucrativos); O aumento da violência e dos assaltos nas cidades americanas (o que é uma meia-verdade, é derivada da crise de 2008 e já está a diminuir, o que Trump nunca refere); o desemprego nas industrias tradicionais (construção civil, siderurgias, indústria automóvel) é factual, mas não pelas causas apontadas (governo de Obama) e sim devido à automatização e a factores externos como a entrada da China na OMC, etc...
Enfim, a lista é longa e não faltarão oportunidades para aumentá-la. Trump confirmou tudo o que se conhecia dele antes de ser eleito. A mentira é, nele, compulsiva. Parafraseando John Stewart, numa breve e brilhante aparição televisiva esta semana: "never believe a man who after every sentence says: believe me!".