2016/12/28

Taxi Driver (12)



Já o tinha visto...estava ali há muito tempo?
- Há uns minutos. Para a António Augusto Aguiar, sff.
Vamos lá ver como está o trânsito, que estes dias tem sido uma loucura...
- Pois, isto com Natal e com férias pelo meio, é mais difícil.
Pelo menos não está a chover. É pena estar tanto frio, mas está um dia lindo.
- Pois está. Mas, quando o céu está mais azul, faz mais frio...
Mesmo assim temos um clima formidável. O pessoal do Norte da Europa, quando cá vem, até se "passa".
- É verdade, sim. Eu vivi dezenas de anos na Holanda e sei o que é o frio. Quando os portugueses se queixam do clima, digo-lhes sempre que deviam passar lá uns anitos, para saberem como é. Temos um dos melhores climas da Europa. O pior são as casas. Passamos mais frio dentro de casa do que fora...
É verdade. É o país que temos...As casas são todas mal construídas e não há garantias. Ninguém vem fiscalizar se estão bem isoladas ou não. Querem é vendê-las rapidamente. Ninguém nos pergunta se gostamos das casas ou não. Mas, também quem trata das casas, são sempre as mulheres. Elas é que põem e dispõem: onde é que fica o sofá, onde é que fica a mesa, os armários, a televisão...
- Quando se vive com alguém, é assim...
Não acredita? Eu já montei duas casas e foram sempre as mulheres que tiveram a palavra final. Onde é que queriam morar, que tipo de casa, que mobiliário, o que devíamos comprar, tudo, tudo! Eu não me meti em nada. E com a actual mulher é a mesma coisa. Veja lá, que até criei dois escritórios, um para mim e outro para ela. O meu está todo desarrumado, mas ela passa lá o tempo todo e está sempre a dizer-me como é que hei-de decorar o espaço. Elas é que mandam, agora. Não sei se já reparou, mas a sociedade está a mudar muito...
- Não sei se elas mandam mais agora, mas é natural que tenham mais direitos. Isso tem a ver com a chegada ao mercado de trabalho, que as tornou mais independentes economicamente e com a pílula, que as tornou mais emancipadas sexualmente, pois já não dependem de um parceiro para terem relações.
Eu sei lá...há coisas que dizem respeito às mulheres e outras aos homens. Eu, por exemplo tenho um grupo de amigos, onde as mulheres não entram. A minha bem me pergunta o que fazemos no grupo, mas eu digo-lhe sempre que também não me meto nos grupos das amigas dela. Mas, elas agora estão em todo o lado. Até já caçam. Às vezes, quando ando a caçar com os meus amigos, aparecem lá mulheres também. Andam lá, no meio da lama, todas sujas, com um camuflado vestido.
- Essa da caça, não sabia...pensava que era um "desporto" de homens. 
Era, era...o senhor já viu os rapazes de agora? Até parece que já não há homens como antigamente. Eu até nem me considero machista, mas estes gajos parecem uns bonecos. Andam no ginásio, todos depilados, meio amaricados, sem pêlos, nem nada...Já não há homens com cabelos no peito. Os gajos são todos uns "nonhas" e fazem tudo o que elas querem... Já viu a vida de um casal, hoje em dia? Trabalham os dois, mas, depois chegam a casa e ele tem de fazer tudo. Se quiser uma camisa passada, tem de ser ele a passá-la; se quiser comer, tem de ser ele a cozinhar; é ele que leva o filho à escola. Então, e a vida a dois? Foi para isto que me casei? Se é pela carne, vou ali ao talho, avio-me e venho-me embora...não é preciso estar casado...
- É a tendência actual e, provavelmente, os casais do futuro, serão cada vez mais independentes. Cada um faz a sua vida, ainda que tenham uma vida em comum...As estatísticas dizem-nos que 1/3 dos casamentos acaba em divórcio nos primeiros cinco anos. Estamos na média europeia...
Sim, nos países nórdicos já é assim. Estive na Holanda e acho que a Holanda é dos países mais livres do Mundo. Estão sempre à frente, em tudo.
- Nos costumes, sim. A maior parte dos jovens torna-se independente muito cedo. Normalmente, aos 18 ou 19 anos, quando acabam o liceu, vão viver em quartos ou em apartamentos de estudantes. Isso também lhes dá uma certa autonomia. Mas, claro, a sociedade está organizada nesse sentido. 
Aí é que está. A minha mulher trabalha na Universidade, onde não ganha mal, eu ando aqui entretido com o táxi, mas os putos têm de viver connosco. Como é que podíamos pagar-lhes uma casa?
- Isto está tudo ligado. Também por isso, em Portugal, os filhos ficam mais tempo em casa dos pais.
Coitados, eles não sabem fazer nada. O senhor já reparou bem nos rapazes de agora? Estão completamente ultrapassados. Eu, quando vou à universidade onde estão os meus filhos, só há mulheres. Elas ganham a maior parte dos concursos para os empregos, têm as melhores notas na universidade, são as mais bem preparadas. Eu não sei onde é que isto vai parar. Os gajos não mandam nada e não sabem fazer nada...
- Ainda por cima não fizeram a tropa...Antigamente, dizia-se que tinhamos de ir para a tropa, para nos fazermos homens...
Claro, pelo menos sempre se aprendia alguma coisa. A ter disciplina, higiene, a cuidar de nós, enfim a ser independentes. É o que eu digo aos meus filhos. É pá vê lá se ganhas juízo, que eu não estou sempre aqui. E o gajo, ri-se. O que é que ele há-de fazer?...
- Bom, já chegámos. Fico por aqui.
Boa tarde e boas festas, para o senhor.
- Boas festas.    

2016/12/23

L'Air du Temps


Que o Mundo era um lugar perigoso, já sabíamos há muito tempo.
Se dúvidas houvesse, esta semana estava aí para comprová-lo.
Em menos de oito dias, foram cometidos três atentados: em Ankara (contra o embaixador russo), em Zurique (contra uma mesquita local) e em Berlim (num mercado de Natal). Total: 15 mortos e mais de 50 feridos. Ainda na mesma semana, mais um morto e um ferido (Milão) e um avião desviado (Malta), este último, aparentemente, sem vítimas.
De mais longe, ainda que diariamente nos écrans televisivos, chegam-nos notícias do Iraque (Mossul), da Síria (Alepo) e do Yémen. Também nestes países, os mortos, de tantos, passaram à categoria de milhares. 12 mortos em Berlim, são um drama; 300.000 em Alepo, são uma estatística.
Ouço os "tudólogos" de serviço, nos canais generalistas e pasmo com a sua eloquência. Todos, apesar das "nuances", parecem dizer as mesmas coisas: que o Daesh está a ser derrotado (onde, em Mossul, em Alepo, na Líbia, no Mali, na Nigéria?), ainda que tenha grande parte dos territórios iraquianos e sírios, sob controle (!?). Dizem ainda os "experts", que a vaga de atentados na Europa é um sinal da fraqueza dos fundamentalistas: os terroristas (quem, o Daesh, o Al Qaeda, outros grupos?) estão "acossados" e, por isso, atacam na Europa para mostrar a sua força. Dessa forma, não só ajudariam a criar um clima de terror, como contribuiriam para a psicose do medo, o que permitiria aos governos instaurar mais medidas de segurança e, aos partidos de extrema-direita, subir nas sondagens.
No limite, a chegada ao poder de partidos xenófobos e autoritários, contribuiria para uma maior repressão por parte do estado e criaria maiores divisões entre a população local e estrangeiros.
Nesse dia, estariam reunidas as condições subjectivas e objectivas (presume-se) para alcançar o fim último - o famigerado estado islâmico - que propõem os fundamentalistas.
Como tese, não está mal pensado.
No entanto, há coisas que não se compreendem. Sabendo tudo isto, o que leva os governos das grandes potências ocidentais (EUA, França, Bélgica, Inglaterra, Alemanha, etc.), a venderem armamento a países como a Arábia Saudita, o Qatar ou o Kwait, apontados como sendo co-financiadores de movimentos como o Daesh? O mesmo Daesh que reivindica os atentados de Paris, Bruxelas, Nice e Berlim?
Outra distinção, assaz curiosa, é a denominação usada: em Mossul (cercada pelas tropas iraquianas, pelos curdos e pelos EUA) são "terroristas"; em Alepo (bombardeada pelas tropas de Assad e pela Russia) são "rebeldes". Então, não são todos do Daesh?... 
Também não se compreende que, após os atentados, as polícias venham dizer que os seus autores estavam há muito identificados como suspeitos. Alguns deles, até já tinham estado presos (!?).
Mais grave ainda, parece ser a pouca e deficiente cooperação entre as polícias de diversos estados, como aconteceu este ano entre a polícia belga e a polícia francesa. 
Difícil mesmo de perceber, é este afã dos terroristas em deixarem "esquecidos" nos veículos, que usaram para praticar os atentados, os seus documentos de identificação (!?). Terão medo que a História os esqueça?
Uma coisa parece certa. De acordo com as estatísticas, houve muito mais atentados terroristas nos anos sessenta e setenta do século passado do que agora. Na altura, o terrorismo foi atribuido a movimentos da extrema-esquerda. Actualmente, é atribuido a fundamentalistas religiosos. Não sabemos lá muito bem, se estes são de "esquerda" ou de "direita", mas isso também não interessa nada. O que é preciso é fazer negócio, que a vida são dois dias e ainda há muita gente para matar. Boas Festas.

2016/12/15

O Mundo Fantástico da Sardinha Portuguesa



Cumprindo o ritual mensal, dirigi-me no passado mês de Setembro à minha barbearia dos últimos vinte anos, a "Barbeiros Reunidos", situada ao fim da Calçada do Carmo, perto da Praça do Rossio. Uma barbearia antiga, algo decrépita, onde três diligentes barbeiros e duas "manicures", em idade de pré-reforma, atendiam com cumplicidade os habituais clientes. Ainda conheci a equipa original, constituida por cinco barbeiros que, nos "dias de brasa" do PREC, decidiram criar uma cooperativa. A cooperativa seria, entretanto, desfeita, mas o nome ficou.
Dos sócios originais, só o Sr. Alfredo ainda trabalhava. Era também o melhor profissional, ainda que raramente me cortasse o cabelo, pois estava sempre ocupado. Para não ter de esperar, optava pela primeira cadeira livre, o que me poupava bastante tempo. Em menos de meia-hora, estava despachado. Barba e cabelo por um preço, inalterado há mais de uma década, de 18euros.
Pouco passava das 17h. quando entrei na barbearia, vazia àquela hora. Literalmente. Nem clientes, nem "manicures", nem móveis. Nada. Apenas 5 cadeiras, outros tantos espelhos e 3 barbeiros, a conversarem entre si.
Perguntei se iam fazer obras e responderam-me que iam fechar.
- Vão de férias?
Não, vamos mesmo fechar. Definitivamente. O senhor vai ser o nosso último cliente. Pode escolher a cadeira...
- O quê? O negócio, vai assim tão mal?
Não, mas fizeram uma proposta ao Alfredo e ele aceitou o negócio...
- Mas, então, o que é que vão fazer?
Ele deve ir para o Algarve, onde tem uma casa. Eu ainda não sei, mas tenho uma irmã em Portimão, que ficou toda contente por eu deixar este trabalho (já o faço há 60 anos, sempre no Rossio) e o rapaz (apontando o elemento mais recente da equipa) não vai ter problemas, pois arranja sempre trabalho em qualquer lado...
- Nem quero acreditar. E os restantes inquilinos do prédio? Também se vão embora?
Não há mais inquilinos. O prédio está vazio e é património municipal. Para além de nós, só há aqui uma loja de telemóveis, que também terá de sair...
- Estou a perceber. Mais um hotel, com certeza, já há poucos na "baixa"...
Não, disseram-nos que vão fazer aqui o Museu da Conserva...
- O Museu da Conserva? Essa é boa...no Rossio?
Pois, é de um gajo da Murtosa, o mesmo que tem a "Loja das Enguias". Também já tem o "Museu da Cerveja" no Terreiro de Paço e aquela loja do "Pastel de Bacalhau com Queijo da Serra", na Rua Augusta...
- Inacreditável. Nem sei o que diga. 
Eu ainda não quero acreditar. Pensar que, amanhã, já não venho trabalhar...Há mais de 30 que trabalho com o Alfredo e há 60 que trabalho no Rossio. Só tenho vontade de chorar...
- Mas, então que idade tem?
Tenho 80, mas gosto do que faço e não sei fazer mais nada...e agora?
- Isso deve ser terrível, de facto, mas tem de ver o lado positivo das coisas. Vai receber uma indemnização e poderá gozar a reforma no Algarve...
É o que me diz a minha irmã: "vens para cá e podes ir à pesca"...
- Claro, parar é morrer. Já cumpriu a sua parte. Eu é que tenho de arranjar um novo barbeiro...
Cortado o cabelo, despeço-me dos três, enquanto recebo do Sr. Alfredo uma palavra de agradecimento: "obrigado por nos ter dado a preferência". Saio da barbearia, meio abananado pela notícia. 
Esta semana, amigas espanholas de longa data, que frequentemente visitam Lisboa, chamavam-me a atenção para as iluminações natalícias. Estavam muito impressionadas com a "profusão de luzes"...
No Rossio, parámos para os inevitáveis "selfies". À esquina da praça com a Calçada do Carmo, uma "loja" distinguia-se das demais. Em rigor, não é uma loja. É uma "barraca de feira", com muitas cores, carrosséis, música e uma roda gigante em miniatura. Lá dentro, de cartola e fardado de vermelho, um empregado convidava-nos a entrar para apreciar a colecção de latas de sardinhas do último século. Milhares de latas, ordenadas por décadas e agrupadas em cores garridas, que podem ser apreciadas e compradas a 5euros, cada. Há latas de sardinhas, de enxovas, de atum, de lulas e de cavala. Tudo em azeite virgem, claro. A "minha" barbearia tinha dado lugar ao "Mundo Fantástico da Sardinha Portuguesa".
       

2016/11/29

Taxi Driver (11)


- Boa noite.
Boa noite, para onde?
- Para a Buraca, se faz favor...
Se eu quisesse, não podia levar aí esse saco...
- Como assim?
Os táxis são para transportar passageiros.
- Claro. E bagagens. Além disso, nem se trata de uma bagagem. É um saco de compras.
Seja um saco de compras ou não, se eu quisesse não levava esse saco aí. O senhor entrou e pôs o saco cá dentro para não ter de pagar bagagem...
- Faço este trajecto dezenas de vezes ao ano e os seus colegas nunca puseram objecção. Além disso, é um trajecto curto e não vale a pena pôr o saco de compras lá atrás. 
Isso é porque os meus colegas são gajos porreiros. A gente "fecha os olhos", mas as bagagens são para ir na mala do carro.
- Depende. A lei (está afixada na janela traseira do táxi) é bem explícita: só volumes acima de uma determinada medida devem ir para a mala. Ora, este saco tem menos do que os 50cm proibidos por lei...
Já lhe disse, se eu quisesse, não podia levar esse saco aí...
- Bem, mas afinal, posso ou não levar aqui o saco de compras? Se não posso, porque é que não me impede de transportá-lo? Eu sou cumpridor da lei e, se a lei o obrigar, não tenho qualquer problema.
Eu não posso impedi-lo de levar aí o saco...
- Não estou a perceber: não posso levar o saco aqui e o senhor não pode impedir-me de levá-lo?
Não posso impedi-lo, mas todas as bagagens devem ir na mala. A parte interior é só para passageiros.
- Se é assim, porque não arranjam uma lei explícita e utilizam um só critério: tudo o que for bagagem (independentemente do tamanho) tem de ir no porta-bagagem do carro.
Não sou eu que faço a lei, mas a lei diz que o interior do carro é apenas para passageiros, só que a gente "fecha os olhos"...
- Desculpe lá, mas esta conversa não faz sentido nenhum: se não posso levar aqui este saco, posso pô-lo na mala do carro. Se posso levá-lo aqui, não vejo qual é o problema!
O problema é que cada condutor tem os seus critérios, mas a lei é explícita: só podem ir passageiros no táxi. As bagagens vão na mala.
- Se vocês não têm um critério uniforme, como é que os passageiro hão-de saber?
Está escrito na porta. Mas, eu não vou impedi-lo de levar aí o saco...se quiser pode fazer queixa de mim, mas esta é a lei.
- Eu não quero fazer queixa de ninguém, não estou é a perceber porque é que não posso levar aqui este saco (quando sempre o fiz) e se lhe digo para pôr o saco lá atrás, diz-me que não pode impedir-me de levar aqui o saco...isto parece uma conversa de doidos.
A bagagem é para ir atrás. Esta é a norma, mas eu não quero falar mais disto.
- Desculpe lá, mas quem começou a conversa foi o senhor. Se quer pôr o saco lá atrás, não tenho problema nenhum com isso, apesar de nunca me terem obrigado a tal. Se não quer lá pôr o saco, não vejo razão para levantar esta questão.
Já lhe disse: a gente "fecha os olhos", porque alguns colegas querem ser uns gajos porreiros e não se importam, para não incomodar o cliente. Mas, o que a lei diz é que o interior do carro é para passageiros apenas. Como vivemos num país onde ninguém respeita a lei, não vale a pena eu obrigá-lo a pôr o saco lá atrás.
- Óptimo, já percebi o seu ponto: há uma lei, mas como ninguém a respeita, o senhor também não a cumpre. Mas, se quisesse, podia impedir-me de levar aqui o saco, certo?
Certo. Mas eu não vou impedir nada. O senhor leva aí o saco, mas não devia. Os sacos e toda a bagagem devem ir na mala.
- Muito bem. Nesse caso, sugiro que na próxima assembleia de taxistas, discutam este assunto entre vocês e proponham ao governo uma lei explícita que diga o que pode e não pode ir dentro do táxi.
A lei que existe é a que está afixada na porta. Só que ninguém lê o que lá está...
- Bem, já vi que não nos entendemos. Também não faz mal, já chegámos.
Boa noite.
- Boa noite...

2016/11/22

Aftermath (2)

Quinze dias passados sobre "a noite que abalou o Mundo", as notícias continuam pouco animadoras. Para quem pensava que a prática de Trump seria diferente da retórica eleitoral, as primeiras medidas anunciadas, prenunciam o pior. Nada que deva espantar. Só os incrédulos ou desatentos poderiam esperar um comportamento diferente deste representante do "establishment" americano que, através de um discurso básico e emocional (onde a explicação racional deu lugar à linguagem dos efeitos) procurou incutir no espírito dos americanos - desiludidos com o sistema - que a culpa desta situação era das "elites" que governavam o país. Como se Trump, o multimilionário que se orgulha de não cumprir a lei e de não pagar impostos, não fizesse, ele mesmo, parte do sistema que gera as "elites" que o beneficiam. Um demagogo, portanto.
Não por acaso, estados como Indiana, Montana, Ohio, Pensilvânia e Virgínia (o chamado "cinto da ferrugem") onde outrora existiram grandes indústrias, nomeadamente do aço e do carvão, votaram maioritariamente em Trump. Bastou o candidato acenar com a recuperação das siderurgias e das minas do carvão, para obter o voto de uma classe operária maioritariamente desempregada e desiludida com os efeitos da crise da globalização que a atingiu em cheio. Se esta promessa vai concretizar-se, já é mais duvidoso. O mesmo, relativamente aos grandes grupos de construção civil, muitos deles fazendo parte do seu próprio empório, a quem acenou com chorudos contratos para, segundo as suas próprias palavras, renovar as rodovias, as pontes e os caminhos de ferro decadentes. Um plano "Keynesiano", aparentemente ao arrepio de toda a lógica neoliberal, mas que rendeu apoios e votos das corporações interessadas. Que os impostos vão descer (resta saber, para quem?) já toda a gente percebeu: se ele não pagou impostos, por ser "esperto", algum benefício deve ter tido...Como o dinheiro não dá para tudo (sem impostos, ainda dá para menos), terá de haver cortes nalgum lado. O sistema de saúde pública, vulgo "Obamacare", será o primeiro a sentir os efeitos desta austeridade para os mais pobres. Depois, haverá o famigerado "muro" na fronteira mexicana, que Trump confirmou querer construir (ele é "bom nisso" disse à entrevistadora da CBS). Querer limitar a entrada de muçulmanos e não querer refugiados sírios, são outros pontos do seu programa. Os islamofóbicos agradecem e, por isso, deram-lhe o voto. Finalmente, a questão rácica, que lhe rendeu os votos dos brancos anglo-saxónicos e protestantes (WASP), muitos deles pertencentes à mesma "elite" que critica, e que são filiados em grupos tão obscuros com o Ku Klux Klan de má memória. As suas nomeações para o governo, vão desde um racista assumido para a pasta de secretário-geral dos assuntos de estado (na prática, o seu braço direito), até a um membro do Tea Party, a agremiação mais à direita do espectro político americano, para dirigir a CIA. O mesmo relativamente ao Juiz do Supremo Tribunal, um conservador da ala mais à direita do partido. As minorias vão enfrentar dias difíceis e 11 milhões de emigrantes ilegais (estimativa) podem ser, agora, alvo de perseguição e expulsão imediata. Na primeira conferência de imprensa alargada (cerca de 40 jornalistas convidados para um "briefing" informal) Trump criticou tudo e todos de forma violenta, em especial o representante da CNN, a quem acusou de manipular as notícias sobre a sua pessoa. Enfim, a lista é extensa e o homem ainda nem começou a governar. Imaginem, a partir de Janeiro...
Como chegámos aqui?
Muitas e variadas têm sido as opiniões sobre este resultado eleitoral, aparentemente imprevisível, mas não de todo improvável. Entre as análises lidas e escutadas por estes dias, escolhemos a do filósofo francês Alain Badiou que, no dia a seguir às eleições americanas, deu uma palestra na UCLA (Los Angeles) onde se encontrava como convidado. Badiou destaca quatro razões fundamentais para explicar a vitória de Trump e do populismo crescente nos EUA e na Europa. "1) A violência e  brutalidade do actual capitalismo desregulado, que aumentou as diferenças laborais e a exclusão social na maior parte dos países. 2) A decomposição das oligarquias políticas clássicas (partidos, sindicatos, organizações estatais) que deixaram de constituir referências para grande parte da população. 3) A frustração popular, causada por sentimentos de não-pertença a uma sociedade da qual foi descartada. 4) A ausência de estratégias alternativas, seja a nível ideológico-partidário, seja a nível de movimentos apartidários, que possam constituir modelos de referência para o futuro". Ou seja, estavam reunidos os elementos necessários para a chamada "tempestade perfeita".   
As ideias populistas (de direita) há muito que vêm ganhando terreno na Europa e a América não ficou imune a este fenómeno. O "brexit", no qual poucos britânicos acreditavam, foi apenas o primeiro aviso de que algo estava "podre" no Reino Unido. O surgimento do partido independentista, liderado por outro demagogo (Farage) acabaria por dividir os conservadores e contribuir para a vitória do "não". Também no Reino Unido, a elite ligada à finança, a maioria dos colarinhos azuis e dos rurais conservadores, votariam no "exit". Razões principais: recusa ao centralismo de Bruxelas, medo do futuro e xenofobia em relação aos estrangeiros que "ameaçam" os seus postos de trabalho. Paradoxalmente, a maioria dos votos "não", foi nas regiões rurais, onde a presença de emigrantes é minoritária (!?). Ao contrário, foi nas grandes cidades (Londres, Manchester, Liverpool, Birmingham), onde a multiculturalidade é maior, que o voto "sim" ganhou. Exactamente como nos EUA, onde os votos pró-Hillary, foram obtidos na Costa Leste (Nova Iorque, Washington, Boston, Filadélfia...) e na Costa Oeste (Los Angeles, S. Francisco, etc.) os estados com maior educação e os mais desenvolvidos. Ao contrário, os votos de Trump seriam obtidos, na chamada "América profunda", onde dominam os "red necks", os protestantes evangélicos, o KKK e os trabalhadores proletarizados da cintura industrial, ainda que muitos dos seus apoiantes sejam originários da classe média urbana.
Porque, em ambos os países, a eleição foi democrática, devemos concluir que a maioria (relativa, é certo) do eleitorado, votou nos representantes que defenderam um maior isolacionismo e uma maior exclusão social e política dos grupos minoritários - emigrantes, muçulmanos, grupos de género e negros (no caso dos EUA). Por outras palavras, ganharam os candidatos cujos discursos defenderam os valores mais conservadores e nacionalistas e um modelo de democracia menos aberta e tolerante, portanto, mais autoritária. O populismo de direita, ou o (novo) fascismo, em ascensão.
Seguem-se, agora,  quatro eleições, não menos importantes: Itália (já este ano), Holanda, França e Alemanha (em 2017). Dos seus resultados, muito pode depender o futuro da Europa e da própria ideia da União, como projecto político e social. Guardadas as devidas distâncias, a situação actual começa a apresentar preocupantes semelhanças com o período dos anos 20 e 30 do século passado. Depois de uma guerra devastadora (1914-18) e de uma crise económica e financeira (1929) cujos efeitos perdurariam até às vésperas da 2ª guerra mundial, a Europa assistiu ao aparecimento de movimentos e líderes populistas, que souberam interpretar esta frustração popular e que, através da "linguagem dos efeitos" e da criação de imaginários inimigos internos e externos (os judeus foram apenas os "bodes expiatórios"), alimentaram nas massas, acríticas e desmoralizadas, a ideia que um "novo mundo" era possível. Bastava acreditar e obedecer. Conhecemos os resultados.
Aparentemente, as forças progressistas em geral, e a esquerda em particular, não aprenderam a lição. É necessário identificar as razões desta regressão e perceber onde é que o sistema  - e os seus representantes - falhou nas respostas adequadas. Para os interessados na comunicação de Badiou,  deixamos aqui o vídeo e o texto da sua intervenção, que contém suficiente matéria para reflexão.

2016/11/14

Aftermath

Uma semana após a vitória - inquestionável - de Trump, começam a tornar-se claras as suas ideias.
Para quem não percebeu, não está em discussão a sua vitória, mas as ideias que defende.
Ter à frente do país mais poderoso do Mundo um proto-fascista, que defende a supremacia branca WASP, é apoiado pelas forças mais retógradas da nação (evangélicos, "rednecks", "tea party", "kluklux-klan"), é contra a legalização do aborto, defende o "lobby" das armas, defende o escrutínio de todos os muçulmanos que entram no país, quer construir um muro para evitar a entrada de mexicanos, deseja expulsar 3 milhões de "ilegais", quer a anulação do "Obamacare" e do tratado comercial da NAFTA, recusa assinar o Tratado sobre as alterações climáticas, que estendeu a mão a ditadores como Putin e Erdogan e convidou xenófobos como Marine Le Pen e Nigel Farage a visitá-lo, (apostando, claramente, na divisão da Europa para, dessa forma, aumentar o poderio americano a regressar ao nacionalismo mais retógrado) não é de esperar uma boa governação.
Dirão os mais "inocentes", que a sua eleição foi democrática, na medida em que o sistema eleitoral americano funcionou e a quantidade proporcional dos votos não ser o factor decisivo, mas sim o número de  congressistas indicados pelo colégio eleitoral. Os estados determinam a quantidade de congressistas, segundo a fórmula "the winner takes it all". Podemos não gostar do método, mas este é o sistema americano e a América tem tido bons presidentes.
A questão é ser Trump (ele mesmo um representante do "establishment" americano) uma aberração em termos políticos. É inculto, é chauvinista, é xenófobo, é misógino, é sexista, tem vários processos judiciais contra si e vangloria-se de não pagar impostos, sendo apoiado pelas metade mais retógrada da nação,  aqueles que desconfiam das elites que os governaram e se sentem ignorados pelo "sistema", nomeadamente depois da crise financeira que atingiu largos sectores da sociedade americana.
Se dúvidas houvesse sobre as suas intenções, ouça-se com atenção a 1ª entrevista, dada ao programa "60 minutes" (CBS) e veja-se os nomes indicados para o seu gabinete. Para todos aqueles que pensavam ser o discurso da campanha eleitoral, diferente do discurso de presidente, é bom lembrar que os actos eleitorais não são garantia de democracia e que nem sempre o que parece é. Ora Trump não parece. Já é. Da mesma forma que Hitler ou Mussolini, em tempos não muito recuados, chegaram ao poder através de eleições livres, também o actual presidente americano é o produto do "pior sistema político, à excepção de todos os outros". Este é o preço que temos de pagar, já que a democracia não é um dado adquirido e deve ser melhorada todos os dias. Para evitar mais Trumps.

2016/11/08

America America...

... É um dos mais famosos filmes do realizador norte-americano Elia Kazan, baseado no romance homónimo, igualmente da sua autoria, publicado em 1962. O filme é inspirado na vida do seu tio, nascido numa aldeia turca da Anatólia, que sonha emigrar para a "terra de todas as oportunidades", simbolicamente mostrada através da Estátua da Liberdade, quando o personagem principal chega a Nova-Iorque, numa das derradeiras e mais belas imagens do filme. Lembrei-me desta história, ao ver as reportagens televisivas em New-Jersey, com a nova torre em fundo, onde parte significativa da comunidade portuguesa apoia Trump e as suas medidas anti-imigração (!?). Um Mundo ao contrário, ainda que este fenómeno seja conhecido de outros países europeus, onde muitos estrangeiros (portugueses inclusive) descontentes com os governantes locais, são os maiores apoiantes das ideias xenófobas e populistas de Le Pen, Wilders ou Farage.  Independentemente do resultado destas eleições, uma coisa parece certa: nada ficará como dantes na América (e no resto do Mundo, por extensão) seja qual for o candidato escolhido.
Os dados estão, agora, lançados. Ainda que as projecções apontem para uma vitória de Hillary Clinton, as surpresas de última hora, nos chamados "estados oscilantes", podem voltar a acontecer (lembramos que Al Gore perdeu as eleições contra Bush, apesar deste ter recebido menos votos).  Depois de uma das mais "sujas" campanhas eleitorais de sempre, os americanos parecem ter, agora, dificuldade em escolher e o caso não é para menos. Entre um candidato populista, narciso, boçal, xenófobo, misógino e perigoso, que não hesita em estender a mão a ditadores como Putin e a elogiar personalidades como Farage; e uma candidata, ligada a escândalos vários, apoiada por Wall Street, pelas corporações, pela industria de armamento (e que nunca escondeu o seu belicismo durante o tempo em que foi secretária de estado) a escolha só pode ser a de um mal menor...
Descartado Bernie Sanders, o único candidato com um discurso político coerente, que nas suas intervenções sempre procurou elevar a discussão, trazendo para o debate os temas que realmente interessam, como o mercado global, o desarmamento, o emprego, as desigualdades sociais e os problemas climatéricos, nada de relevante parece ter restar dos candidaturas em presença. Por alguma razão, uma parte significativa da juventude americana apoiou a candidatura deste social-democrata a cheirar a socialismo, levada quase até ao fim da campanha, o que pode indiciar uma nova corrente dentro do partido democrata, caso este ganhe, como é (im)previsível.
Para os europeus, que não podem votar, resta assistir ao "big circus" americano sem muitas esperanças que as coisas melhorem. Ainda vamos ter saudades de Obama. E de Michelle, já agora.    
  

2016/10/31

Taxi Driver (10)

Para onde vamos?
- Para a Culturgest. Estava a ver que não saía daqui hoje...
Esteve à espera de táxi muito tempo?
- Meia-hora, pelo menos...explique-me lá uma coisa: porque é que os seus colegas, que têm a luz verde acesa, não páram quando lhes faço sinal?...
Isso é impossível. Têm de parar.
- É possível, sim, porque passaram 5 ou 6 táxis "livres" na última meia-hora e nenhum parou...
Provavelmente, iam distraídos. Ou receberam uma chamada e não podiam transportar passageiros...
- Isso não faz sentido nenhum. Se foram chamados, têm de mudar o sinal para amarelo, para indicar que estão em serviço...
Nem sempre o que parece é. Sabe, isto é uma profissão muito desgastante e nós andamos aqui numa "lufa-lufa". Vamos a consultar o telemóvel e, às vezes, nem nos apercebemos de que nos estão a fazer sinal para parar...
- Sim, isso pode acontecer, uma ou outra vez, mas não seis vezes! Depois, não se admirem que as pessoas prefiram a Uber...
Ó meu caro senhor...se tem queixas dos taxistas, é muito simples: Tira o número do táxi e a matrícula e escreve para o organismo que supervisa o "negócio". Também pode telefonar e fazer queixa. É o que eu aconselho a toda a gente que se queixa do mau serviço dos taxistas.
- Também posso fazer isso, claro, mas queria primeiro perceber o que se passa e se podem negar-se a transportar um passageiro, só porque lhes apetece...
Já lhe disse: em vez de queixar-se, tira o número do carro que não parou e telefona para a central! É muito simples e vai ver que o atendem logo. Nós também cometemos erros e nem toda a gente, que anda com um táxi na mão, sabe comportar-se, mas há regras e toda a gente tem de cumprir. Se levavam a luz verde e não pararam, têm de explicar porque é que o fizeram...
- Pois, pois, mas se há leis é para serem cumpridas, certo?
Olhe, o senhor estava em frente à "casa" (Parlamento) onde são feitas as leis...metade daquela gente que lá está, não presta para nada. Só lá andam para dar "lustro às calças". Se falassem menos e fizessem melhores leis, isto podia andar melhor...
- Não me diga que a culpa é dos deputados?...
Não só. O Almeida da Antral também controla uma parte do negócio e interessa-lhe que isto esteja assim...
- Claro, há interesses em todo o lado e os taxistas também são uma corporação...
E se eu lhe disser que há aqui gente no "meio" que anda a estragar o "negócio" e nem sequer tem licença para conduzir um táxi? Mas nós temos de cumprir a lei e somos obrigados a inspecções periódicas. Sabe quanto é que o meu patrão paga só em licenças para este carro? 1200euros por ano! E o carro tem de estar em boas condições mecânicas, tem de estar limpo, eu tenho de andar bem vestido, não posso usar calções e tenho de ter seguro contra terceiros. Há quem pense que isto e um negócio de milhões, mas é um negócio de tostões...se eu tiver o azar de "bater" e o meu patrão tiver de pagar o arranjo, já sei que vou andar aqui um ano a "penar", pois o lucro é para pagar o arranjo do carro...está a perceber? As pessoas não sabem do que falam e depois os táxistas é que são os maus da fita...
- Claro, nem todos os taxistas são maus, por isso o aparecimento da Uber pode ser benéfico, desde que controlada, claro.
Falou da Uber...e se eu lhe disser que há muitos chauffers da Uber que são taxistas? Anda aqui muita "poeira no ar" e as pessoas não estão a ver o que se passa de facto. Eu não tenho nada contra a Uber. Eles que venham. Mas, sem precariedade no trabalho e a pagar impostos, como nós. Assim é que é bonito. Todos iguais, perante a lei.
- De acordo. A concorrência é boa, desde que regulada.
Claro, estas coisas têm de ser regulamentadas. Agora vou-lhe propôr um caminho alternativo. Não estranhe se eu andar por ruas paralelas, mas não se pode andar na Avenida da República. Isto está um caos e por aqui não chegamos lá...
- OK. Passei aqui há uns dias e estive mais de uma hora parado no Campo Pequeno...
Uns parvalhões, estes gajos da Câmara. Agora é que se lembraram de fazer obras. Tudo ao mesmo tempo! E ainda não começou o Inverno...
- Quando chegar à esquina, pode deixar-me lá que eu faço o resto do caminho, a pé.
Qual quê? Vamos já aqui pela transversal e deixo-o mesmo à porta da Culturgest. Está de acordo?
- Parece-me bem. Já estou atrasado.
É o que eu lhe digo. Isto está mau, mas os culpados não são só os taxistas.
- Acredito, até porque só há uns 3000 taxistas...
Há mais. São cerca de 3500. Isto é calculado em função dos habitantes de cada zona. Só Ubers devem haver para aí uns 1000 e Lisboa cada vez tem menos habitantes. Por exemplo, no Seixal, foram autorizados mais 9 carros. Porquê? Porque os habitantes de Lisboa vão todos morar para os arredores e cada vez há mais habitantes no Seixal. Por isso, devem recalcular as licenças de táxis, senão andamos a comer-nos uns aos outros. Isto não chega para todos. É o que eu digo a toda a gente: isto não é um negócio de milhões, é um negócio de tostões. Já cá estamos, está a ver...

 

 


2016/10/26

O A(s)salto da Memória


Entre 1961 e 1974, dezenas de milhares de jovens portugueses sairam do país por recusarem participar na guerra colonial levada a cabo pelo governo fascista de Salazar e Caetano.
Muitos eram "desertores" (os que já se encontravam no exército), a maior parte eram "refractários" (os que, já depois de apurados, não se apresentaram à incorporação) e os restantes, "compelidos" (aqueles que não tinham atingido a idade da inspecção militar).
Com o 25 de Abril, muitos destes jovens regressaram a Portugal. Uns foram incorporados, outros foram amnestiados e, muitos deles,  permaneceram no estrangeiro, onde continuam a viver.
Durante muitos anos, a situação dos desertores e o seu papel na denúncia da guerra, raramente foi abordada e, quando o foi, sempre era negligenciada.
Compreende-se porquê. Num país, onde a ignorância, o medo e a censura, controlaram o pensamento dos seus cidadãos ao longo de 50 anos, é difícil separar a questão da "pátria" (e a sua defesa) da deserção como um acto positivo numa guerra condenável.
Acresce que, os militares que fizeram a guerra, foram os mesmos que derrubaram o regime ditactorial e devolveram a liberdade e a democracia ao povo português.  
É provavelmente esta contradição (o papel dúbio dos militares portugueses em África) que explica o porquê do "tabú", ainda hoje existente na sociedade portuguesa sobre esta matéria. Por um lado, aqueles que recusaram a guerra contribuiram para o seu fim e, por outro, aqueles que nela colaboraram, contribuiram para fim do regime que impôs a guerra.
Como conciliar tais posições? Não é fácil, para mais num país onde o "medo de existir" sempre foi uma constante (como bem explicou Gil) e que, 40 anos depois, continua a dominar a mentalidade da corporação militar.
As poucas obras, entretanto surgidas em livro ou em filme, continuam a ser largamente ignoradas e foram necessários mais de 40 anos para que o problema voltasse a ser discutido, agora a nível académico, a partir de um grupo de investigadores que se dedicam à matéria.
Dizem-nos os estudos sobre a memória, serem necessárias três gerações para fazer a catarse das experiências traumáticas porque passámos. Foi assim com muitos dos sobreviventes do Holocausto, com os veteranos da Guerra do Vietnam ou, entre nós, com as vítimas do fascismo e os ex-combatentes da guerra colonial. Os (ex)desertores não são excepção.
É bom que, na próxima quinta-feira, durante o colóquio organizado pela Universidade Nova de Lisboa, a Faculdade de Ciências Sociais de Coimbra e a Associação de Exilados Portugueses na Europa, esta matéria seja abordada por aqueles que, através de novos dados, possam contribuir para lançar luz sobre um tema que continua tabu. Para que, desta forma, a Memória não se apague.   

2016/10/22

Outono em Amsterdão (4)


Criada em 1984, a Associação Portuguesa de Amsterdão (vulgo APA), surgiu após um longo processo de unificação de duas associações de emigrados portugueses na Holanda: a Casa Portuguesa de Amsterdão (CPA), fundada nos anos sessenta e a Associação Resistência e Trabalho (ART), surgida em 1970. Dos anos sessenta, data igualmente o Clube Desportivo "Os Lusitanos", ainda em actividade, que não participou no movimento unificador das associações na década de oitenta.
Instalada recentemente num parque da zona oeste da cidade, a APA mantém as  principais actividades de origem, ainda que reduzida no espaço físico e no número dos membros activos que dão vida diária à associação. Não se vêem por aqui muitas caras novas e são ainda os emigrantes da primeira e segunda gerações que, à volta da mesa de cartas ou em frente ao écran gigante onde assistem aos jogos de futebol da liga portuguesa em directo, continuam a animar o convívio.
Paralelamente, outros frequentadores e organizações, usam o espaço da associação para organizarem sessões e tertúlias menos lúdicas, normalmente dedicadas à literatura ou à poesia, onde a componente gastronómica é parte obrigatória do programa. É o caso do grupo "Tertúlia" que, mensalmente, escolhe um tema à volta do qual são organizadas as sessões com convidados exteriores.
A "Tertúlia" deste mês, foi integrada no Festival "Seis Continentes" (evento multicultural organizado simultaneamente em vários países) e incluíu no seu programa a apresentação do livro "Exílios", uma obra colectiva na qual participámos. Trata-se de um livro de testemunhos e memórias de ex-exilados políticos (desertores e refractários) que recusaram a guerra colonial portuguesa e viveram os anos de exílio em diversos países europeus. As honras da casa foram feitas por Teresa Pinto (do festival "Seis Continentes") enquanto a apresentação do livro esteve a cargo de Fernando Venâncio, professor jubilado da Universidade de Amsterdão (ele próprio um ex-desertor e exilado na Holanda). Ao escriba destas linhas coube a explicação da génese do projecto que, mais do que reunir histórias de vida, pretendeu fixar testemunhos de uma geração que discordou da guerra (sobre a qual poucos ousam falar) para que, desta forma, a memória não se apague. Seguiu-se animada conversa com a assistência luso-holandesa presente, tendo a sessão terminado com os habituais registos para a posteridade. A visita a Amsterdão terminava, assim, da melhor forma.
   

2016/10/21

Outono em Amsterdão (3)


No início dos anos quarenta, viviam na Holanda cerca de 140.000 judeus. 
Durante a ocupação alemã, foram presos e transportados para os campos de concentração, mais de 120.000 judeus. Destes, 104.000 morreram.
Em Amsterdão, a comunidade judaica habitava um quarteirão no centro, cujo perímetro era limitado a Oeste pelo rio Amstel (que atravessa diagonalmente a cidade) e a Nordeste pelo Jardim Zoológico (vulgo Artis), um frondoso parque onde podem ser vistos animais e plantas exóticas.
Após a guerra, o "quarteirão judeu" foi parcialmente destruído e as velhas casas substituídas por novos edifícios, onde funcionam os serviços administrativos da câmara municipal, a ópera, museus, e diversos hotéis e restaurantes.
No espaço, anteriormente ocupado pelo bairro, foram entretanto surgindo museus e memoriais ligados à história da comunidade judaica na cidade e na diáspora. Este quarteirão cultural judeu, inclui, para além da "Sinagoga Portuguesa" (construída em 1675), o "Museu da História Judaica", o "Memorial Nacional do Holocausto" e o "Museu Nacional do Holocausto", que podem ser visitados comprando um bilhete único pelo módico preço de 15euros.
Dispensámos a Sinagoga, que já conhecíamos de anteriores visitas, e iniciámos a visita pelo "Museu da História Judaica", a peça de resistência deste périplo, onde pode ser vista a exposição "The Power of Pictures - Fotografias e Filmes da antiga União-Soviética". Fotografias, filmes e "affiches" das décadas vinte e trinta do século passado, quando o movimento avantgardista russo atingia o seu auge. Admiráveis trabalhos fotográficos de Rodchenko, Schaikhet, Shudakov, Petrusov, Zelma, Penson, Nappelbaum, Ignatovich e filmes clássicos de Eisenstein, Barnet, Kuleshov, Pudovkin, Turin, Kalatozov, Vertov (que podem ser visionados em projecções diárias), para além da excelente colecção de "affiches" revolucionários que, um século mais tarde, permanecem verdadeiros ícons da arte.
Seguimos para o "Memorial do Holocausto", situado no Hollandsche Schouwburg, a antiga sala de espectáculos da cidade, construída em 1892. Entre Julho de 1942 e Novembro de 1943,  o Schouwburg foi utilizado como lugar de deportação. Os judeus de Amsterdão e arredores, tinham de apresentar-se no teatro, para serem deportados, ou eram levados à força. Ali aguardavam dias, às vezes semanas, pelo transporte para os campos de Westerbok e de Vught, perto da fronteira alemã. Daí, eram metidos em combóios que os transportavam para os campos de extermínio. Depois da guerra, o edifício deixou de ser utilizado e acabaria por ser parcialmente demolido. Já em 1962, a Câmara de Amsterdão decidiu erigir um monumento em honra das vítimas, situado num pátio interior do edifício. Recentemente, outro presidente da câmara, o judeu Ed van Thijn (ele mesmo uma vítima da guerra) inaugurou um novo memorial, constituido por placas de vidro nas paredes, onde podem ser lidos os nomes das 6700 famílias dos 104.000 judeus mortos.
Em frente ao teatro, do outro lado da rua, está situado o "Museu do Holocausto", no lugar onde existia uma creche e eram recolhidos os filhos das famílias deportadas. Muitas dessas crianças acabariam por ser levadas clandestinamente, por membros da resistência holandesa, que os entregavam a famílias adoptivas no Sul da Holanda, onde ficaram até ao fim da guerra.
O Museu, inaugurado em Maio este ano, dispõe apenas de três salas. Na primeira, pudemos assistir a um filme sobre o pintor (e actor) Jeroen Krabbé, cujo avô foi levado e morto em Sobibor. No documentário (50') Krabbé explica os motivos e o processo de trabalho seguidos, que o levaram a mergulhar na história da família e na tragédia do seu avó Abraham. Depois, passámos à sala da exposição propriamente dita, sobre a vida, a prisão, o transporte e a morte de Abraham, intitulada "O declínio de Abraham Reiss". Nove "tableaus" de 3x2metros de altura, belos e horríveis na sua crueldade, onde a técnica mista de óleo, desenho e colagem, serve o propósito dramático do autor.
A última sala, seria a mais surpreendente. Num espaço vazio, onde estão instaladas duas mesas com terminais de computadores, os visitantes podem inserir dados sobre familiares mortos ou desaparecidos na Holanda. Os dados são imediatamente projectados numa das paredes da sala, transformada num écran gigante de computador, que envia a informação para todo o Mundo em simultâneo. Assim se preserva a memória.           

2016/10/20

Outono em Amsterdão (2)



Nem só pelos canais é conhecida a cidade de Amsterdão. Uma das áreas onde mais se investiu, nos últimos anos, foram as zonas verdes (parques e bosques) que ocupam grande parte do tecido urbano. Um dos parques mais agradáveis da cidade é, actualmente, o Westerpark, situado num antigo bairro operário com o mesmo nome. O parque, criado no século XIX, serve os habitantes do bairro e alberga a antiga fábrica de gás da cidade (construida em 1888), um complexo de edifícios em tijoleira vermelha, a lembrar o estilo britânico da era da industrialização. Está situado ao longo da Haarlemmerweg, uma via rápida que liga Amsterdão à cidade de Haarlem.
Nos anos sessenta, com a descoberta de gás no mar do Norte, a fábrica tornou-se absoleta e foi encerrada. Os seus edifícios seriam mais tarde ocupados por "krakers" (movimento de ocupação de casas) que transformaram o espaço em "ateliers" e serviços comunitários diversos. A fábrica foi preservada pelo município e classificada como "arqueologia industrial". Depois de alguns anos encerrado, o Westpark reabriu ao público em 2003, agora dividido em duas zonas distintas, Norte e Sul, separadas pelo antigo complexo industrial, totalmente recuperado e onde funcionam "ateliers", "galerias de arte, "start-ups", dois restaurantes, o café "loja do pão" (que fabrica e vende diariamente pão fresco), para além de um auditório ao ar livre, o "North Sea Jazz Club" e um cinema de arte "Het Ketelhuis", que exibe filmes clássicos. Devido à temperatura convidativa, o parque estava cheio de famílias e turistas que enchiam os multiplos recantos desta Amsterdão ainda relativamente desconhecida.
Outro "must" a visitar, é o edifício "Eye", que alberga a cinemateca de Amsterdão. Inaugurada em 2012, esta construção modernista, a lembrar um avião supersónico, está situada na margem norte do Ij (o canal que divide o Norte do centro da cidade). No "Eye" podem ser vistos filmes clássicos e em estreia (8 salas de projecção), para além de exposições temporárias, sempre surpreendentes. Depois das grandes exposições dedicadas a Kubrick, Fellini, Kronenberg e Antonioni, que tinhamos admirado em anos anteriores, foi a vez de apreciar "Celluloid", uma instalação colectiva de artistas fascinados pelo material filmico e por máquinas de projecção de 16mm e 35mm. Uma agradável surpresa onde, entre nomes mais consagrados, como Rosa Barba, Tacine Dine, Sandra Gibson e Luis Recoder, podem ser vistos trabalhos dos portugueses João Maria Gusmão e Pedro Paiva, no caso as curtas "Onça Geométrica" (2013) e "Glossolalia" (2014). A visita, à loja da cinemateca, é imperdível, assim como a vista panorâmica do "skyline" da cidade,  a partir da esplanada do "Eye".
Dali, seguiriamos para a FOAM, uma galeria especializada em fotografia, que neste momento alberga quatro exposições, todas elas interessantes: "Dinastia Marubi" (diversos "portraits"de uma colecção de 150.000 negativos, feitas num dos primeiros estúdios albaneses); "Made in China", de Olya Oleine, uma pequena e representativa exposição a preto e branco, sobre a China actual; "Night Soil" de Melanie Bonajo, composta de pequenas curtas metragens sobre movimentos feministas norte-americanos e "Safe Passage", com trabalhos do conhecido dissidente chinês Ai Weiwei, sobre os refugiados da guerra que dão à costa grega. Weiwei, actualmente a viver em Berlim (após a sua libertação em 2015), fotografou e filmou dezenas de famílias de refugiados nos campos de acolhimento montados na ilha de Lesbos. Centenas de polaróides, que cobrem literalmente as paredes de um dos andares do edifício, numa avalanche de informação que nos interroga sobre o drama existencial de milhares de vítimas da guerra. Numa sala separada, fotos tiradas pelo artista em cativeiro, algumas verdadeiramente hilariantes, onde podem ser vistos diversos agentes chineses à paisana, que Weiwei (impedido de sair de casa) ia fotografando da sua janela. As fotos tiradas, com pequenos intervalos de tempo, são acompanhadas de legendas irónicas sobre o trabalho de observação e controlo levados a cabo pela polícia chinesa. Uma dor de cabeça para as autoridades, o activista Ai Weiwei, certamente um dos artistas mais criativos da actualidade. A não perder, para quem se desloque à cidade antes de Janeiro. 

2016/10/19

Outono em Amsterdão

Sair de Lisboa e chegar a Amsterdão com 24 graus de temperatura positiva é coisa que, raramente, nos lembramos de ter experimentado. E, no entanto, foi isso que aconteceu há umas semanas atrás, aquando da nossa última visita àquela cidade holandesa, onde se fazia sentir um Outono, digno do melhor "indian summer". Doze dias de Verão meridional, a lembrar que o "aquecimento global" não é uma palavra vã. Mais uns anitos e teremos vinhas plantadas nas margens do Amstel...
Para quem se queixa da gentrificação em Lisboa, a capital holandesa oferece um bom exemplo do que nos está reservado. Não que o fenómeno seja novo (afinal, a cidade sempre foi uma das mais visitadas da Europa), mas a dimensão do "estrago" começa a ser de tal ordem que, passear e viver no centro daquela que foi uma das mais pacatas urbes europeias, é o mesmo que desembarcar numa grande Disneyland enxameada de turistas, lojas de conveniência e "fastfood" em todas as ruas. Algo que um famoso escritor holandês, do século passado, apelidou de "patat cultuur" (a cultura da "batata frita"), ao escrever sobre as transformações sofridas num dos bairros mais sofisticados da cidade. Dirão que não há nada a fazer e o turismo é predador. É verdade. O turismo de massas descaracteriza as cidades, principalmente quando os habitantes locais são literalmente "expulsos" das habitações - onde sempre viveram e pagavam rendas razoáveis - para darem lugar a novos moradores (com poder de compra) e a novos prédios, transformados em AirB&bs, uma tendência das grandes urbes na era dos voos "low-cost". Foi assim em Veneza, como em Barcelona ou Berlim, cuja municipalidade se viu obrigada a impôr restrições à proliferação de hóteis baratos, única forma de preservar prédios para habitação social. Amsterdão não é excepção (recebe 15 milhões de turistas ao ano!) e muitas das habitações sociais, quando vagam, deixam de pertencer ao sector de arrendamento e passam a ser vendidas no mercado livre. Manter uma casa no centro histórico é um privilégio, só ao alcance daqueles que lá moram há gerações ou novos proprietários endinheirados. Pelo meio, as lojas de conveniência, restaurantes "fastfood" e "hostels", continuam a proliferar. 
Porque a cidade é relativamente pequena (700.000 habitantes) fácil é percorrê-la nos eléctricos e autocarros, que nos levam a qualquer bairro periférico. Foi o que fizemos, logo na primeira noite. Alertados pela programação do Teatro Munganga, uma companhia brasileira local a comemorar o seu 20º aniversário, lá fomos ouvir o grande Rogério (Bicudo de seu apelido), um tocador de violão de 5 quilates, velho amigo das músicas e não só. O concerto, intitulado "As Américas", foi uma excelente forma de conhecer e rever autores tão díspares como John Coltrane, Wayne Shorter (USA), Eric Calmes (Curaçao), Leo Brouwer (Cuba), Agustin Barrios (Paraguay), Villa-Lobos, Garoto, Nelso Cavaquinho ou Baden Powell (Brasil). Uma "performance" inesquecível, de um virtuoso guitarrista que, às vezes, passa por Lisboa. No final, tempo para uma "caipirinha" e troca de impressões sobre a actual situação brasileira, que a comunidade "brasuca" vê com apreensão. Há por aqui mais apoiantes do "Fora Temer", do que eu suspeitava. A estadia não podia ter começado melhor...    

foto Editie NL / Agnes de Goede

 

2016/10/06

Inequívoca



...A eleição de António Guterres para secretário-geral das Nações Unidas, após um processo que nunca deixou dúvidas, pese o aparecimento de uma candidata "fora de borda", na última semana de votações. De longe, a melhor prestação de todos os candidatos na fase preliminar, em foi submetido às questões de um painel de jurados e da Assembleia Geral das Nações Unidas: no conhecimento dos "dossiers", na análise das questões internacionais e nas línguas faladas, em que respondeu directamente às questões postas pela assistência. Uma verdadeira "sabatina", na clareza das ideias e propostas apresentadas, na competência técnica demonstrada e no entusiasmo posto em todas as respostas. Sou insuspeito, dado não ter sido um político que me tenha agradado particularmente durante o período da sua governação, mas que reconheço ter feito um bom lugar como Alto Comissário das Nações Unidas, certamente o trampolim decisivo para este novo cargo.
Resta, agora, aguardar pelo próximo mês de Janeiro, quando iniciará oficialmente as suas funções, num Mundo onde a guerra, a fome, as desigualdades sociais, os problemas climatéricos, o terrorismo e a questão dos refugiados, serão as principais questões com que terá de lidar.
Para já, regozijemo-nos com esta vitória, que é boa para Guterres, para Portugal e para a Europa. As Nações Unidas fizeram uma óptima escolha, já que um bom secretário-geral poderá trazer um novo "élan" a um organismo que já conheceu melhores dias.    

2016/09/20

O país da classe mérdia


Desde o passado fim-de-semana, que a "nação" discute acaloradamente uma intervenção da deputada Mariana Mortágua, sobre a tributação de património, cujo valor ultrapasse a média dos valores considerados para efeitos de IMI. De acordo com Mortágua, que falou em nome do seu partido, o património acima de meio-milhão de euros (por exemplo, uma casa ou uma propriedade),  deveria pagar uma sobre-taxa, como forma de obter uma receita contributiva que permita uma maior equidade na distribuição da riqueza. Nas palavras da deputada do Bloco, o governo "não devia ter vergonha de ir buscar dinheiro a quem acumula dinheiro" ou, por outras palavras, "devia ter a coragem de taxar mais os mais ricos, que são aqueles que podem pagar mais".
Trata-se de uma proposta do BE, pois nem Mortágua faz parte do governo, nem o governo apresentou o Orçamento de Estado para 2017, o que só deve acontecer lá para meados de Outubro.
Entretanto, as reacções (de direita) não se fizeram esperar. Argumentam que uma taxa suplementar irá afastar o investimento no imobiliário, prejudicando a classe média (o extrato social que mais casas compra) e que o Bloco passou a ditar a agenda política do PS...
É sempre comovente ouvirmos as queixas dos (supostos) defensores de uma classe média, que pode pagar uma casa no valor de meio-milhão de euros, quando sabemos que o ordenado médio nacional ronda os 850euros mensais e a maior parte dos portugueses proprietários, tem uma hipoteca bancária cuja duração média é de 20 anos e mais...
Independentemente da justiça da medida, esta nem sequer é novidade, pois o anterior governo (PSD/CDS) tinha proposto uma fasquia de um milhão para a taxa sobre património o que, nas palavras do PCP, poderia ser uma boa base para começar a discussão.
Temos, assim,  uma proposta, que ainda não foi discutida (e muito menos "fechada") e uma reacção desproporcionada da oposição que vê, em todas as medidas de correção fiscal, um "assalto" aos mais ricos.
Curiosamente, foi hoje tornado público, o estudo "Desigualdade do Rendimento e Pobreza em Portugal", da responsabilidade do economista Carlos Farinha Rodrigues, patrocinado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, que compreende os anos entre 2009-2014.
O estudo revela que foram os mais pobres os mais afectados pelas políticas económicas seguidas durante a crise económica. Nesse período, um terço dos portugueses encontrou-se em situação de pobreza pelo menos durante um ano. Dos 32,6% dos portugueses que entraram numa situação de pobreza, 12,6% mantiveram-se assim durante um ano, enquanto 8,2% aí permaneceram durante todo o período considerado. "Entre os indivíduos que eram pobres em 2012, 24,5% encontrava-se pela primeira vez nessa situação, o que confirma de algum modo a teoria de que a presente crise empurrou para situações de pobreza indivíduos e famílias que antes pareciam estar imunes a esta situação".    
Feitas as contas, o número de portugueses pobres aumentou, entre 2009 e 2014, para 2,02 milhões de pessoas (20% da população), ou seja mais 116 mil pessoas do que em 2009. Em 2014, 8% de todos os trabalhadores, por conta de outrem, viviam abaixo do limiar de pobreza (422euros). Os grupos mais atingidos foram os mais jovens, os licenciados e os mais pobres entre os mais pobres. Entre os que têm o ensino superior, a perda de rendimento foi de 20%, enquanto a redução de quem tem o 6º ano ou menos foi de 13%. Os 10% mais pobres perderam 25% do seu rendimento, ao passo que os 10% mais ricos perderam 13%.  No conjunto, entre 2009 e 2014, os rendimentos dos portugueses tiveram uma quebra de 12% (116euros por mês). Os trabalhadores que entraram em 2012 viram a sua remuneração baixar 11% em relação aos que sairam em 2011. Em 2009 um em cada cinco trabalhadores  por conta de outrem recebia por menos de 700 euros, em 2014 já era quase um cada três (http://www.portugaldesigual.ffms.pt).
Pois bem: após 5 anos de perda constante de poder de compra e um empobrecimento generalizado da maior parte da população (devido ao plano de austeridade preconizado pela Troika e executado com todo o zelo pela coligação de direita PSD/CDS), os responsáveis por este descalabro social e moral, querem continuar com a "receita", taxando os rendimentos e poupando os detentores de património. Mais, acusam a deputada do BE (e por extensão, o governo) de querer taxar a classe-média (!?) a mais "sacrificada" da sociedade portuguesa. Como se a "classe média" pudesse pagar uma moradia de 500.000euros, valor que um trabalhador (com um ordenado médio de 850euros) nunca poupará em toda a sua vida activa!
Haja pachorra para tanta cretinice. 

2016/09/14

Taxi Driver (9)

Estação de Sta. Apolónia, fim de tarde. Não há táxis e a fila de clientes aumenta a olhos vistos. Ao fim de largos minutos de espera, surgem os primeiros carros. A barafunda do costume.
- Para a Buraca, sff...
Quer ir por onde? Por Alfama, ou por fora, ao longo do rio? Isto agora está tudo em obras,  de modo que tanto faz... Olhe, vamos andando, não é verdade? Logo se vê...
- Pois, as obras são mais que muitas...
Eu não sou contra haver obras, só não percebo porque têm de fazê-las todas ao mesmo tempo...
- De facto, é um pouco estranho...
Qual quê, vêm aí as eleições, não está a ver? São todos iguais...só se lembram da cidade quando querem votos! De mim, é que o Medina não leva voto. Nem de mim, nem da maior parte dos meus colegas...
- Sim, também será isso, mas ouvi as declarações do vereador do urbanismo e ele disse que tinha a ver com as licenças de construção, que têm de passar por um logo processo burocrático.
Pois, esse senhor só faz é disparates. Já viu como está o Marquês e a Avenida da Liberdade? Era para diminuir a poluição, mas o senhor acredita? Não se pode lá passar. Aquilo é um inferno. E vá lá que não vão mexer na 2ª circular, senão era um verdadeiro caos! Esta gente vive dentro dos gabinetes,  não fala com quem anda no trânsito e só faz asneira...
- É terrível, eu sei. Ainda por cima, Lisboa é uma cidade velha, com ruas estreitas e um centro histórico muito antigo. É difícil "mexer" na cidade, sem afectar a população...
Isso, era evidente. Estava tudo a cair aos bocados e há muitos anos que eram necessárias obras. Porquê, só agora?
- Também terá a ver com o aumento do turismo. Lisboa está na moda e é preciso dotar a cidade de meios que facilitem a vida aos visitantes, senão eles deixam de cá vir...
Vão deixar de vir, mais ano menos ano, ou pensa que isto dura sempre? Não se esqueça que os turistas vêm agora, porque a vida é barata e não há terrorismo. Isto são tudo turistas "pé descalço", que viajam nas "low-cost" e ficam em hotéis baratinhos. Quando se cansarem, voltam a ir para Espanha, para França e para esses países do Norte de África...
- Também terá a ver com isso, sim. A vida aqui ainda é relativamente barata e Portugal é um país calmo e bom para famílias com crianças. Isso é o que se lê e ouve dizer pelos estrangeiros. O problema é que, para atender esta invasão, estão a expulsar os moradores e os comerciantes das zonas históricas e a renovar os edifícios antigos, que rendem pouco, para transformá-los em hotéis baratos...
Mas, nunca chega! Não há dormidas para esta gente toda! Eu sei do que falo. Trabalho à noite e já levei várias famílias ao aeroporto para passarem lá a noite, porque não conseguiram arranjar dormidas na "baixa". Normalmente, quando as pessoas me pedem para ver se há hotéis, levo-as ali para Almirante Reis, onde há muitas pensões e hotéis baratos e está tudo cheio. Nem um quarto! Quando um está cheio, é porque está tudo cheio.
- É terrível, eu sei, fora os assaltos de que são vítimas. Mais de sessenta num só dia, vi esta semana na televisão...
Claro. Toda a gente se aproveita. Até os ladrões! Aqui há umas semanas, recebi uma chamada por telefone para ir buscar uma moça brasileira, que estava numa pensão ali para o Chile. Apareceu-me com uma grande mala e queria que eu lhe procurasse um hotel limpo...mostrou-me uma fotos que tinha tirado com o telemóvel e os lençóis estavam cheios de bichos pretos, que eu nunca tinha visto...ainda por cima, tinham-lhe pedido 600euros adiantados e ela não tinha papéis para comprovar. As pessoas querem ganhar dinheiro a todo o custo e alugam quartos sem condições. Isto é tudo à ganância! Também acabei por levá-la ao aeroporto e disse-lhe para fazer queixa à polícia.
- Faço ideia do que se passa por aí...
Nem calcula. Ainda a semana passada andei com uma senhora e a filha à procura de um hotel e, como não arranjámos, ela ofereceu-me 150euros para poder dormir lá em casa. Está a ver o desespero desta gente! Claro que recusei, até porque a minha casa é pequena e nem ia pedir dinheiro por uma dormida. Isto é o "salve-se quem puder"...
- Já aconteceu o mesmo noutras cidades, como Barcelona e Amsterdão, e tiveram de congelar as licenças de construção para hotéis. Em Berlim, até proíbiram os AirB&B...
Eu sei, eu sei...também viajo muito e todos os anos vou até ao estrangeiro. Nada desta bagunça que se vê aqui...isto é uma vergonha. Tudo a roubar!
- Fora o barulho e a poluição sonora, claro...
Eu sei...morei 10 anos na Mouraria e tive de sair de lá. Agora, moro no Bairro Alto, numa casa da Câmara. Sempre é melhor, mas também há barulho.
- Imagino, há barulho em todo o lado: no Bairro Alto, na Mouraria, em Alfama, no Cais do Sodré...
Pois é. Isto não tem conserto. Eu gostava era de morar fora de Lisboa. As casas na Buraca, são baratas?
- Já foram. Agora, as casas que vagam, são tão caras como em Lisboa. Mas, não há casas vagas...
Está a ver? Temos de ir viver para a província. Bem, chegámos...Desculpe lá a conversa, mas temos de falar com os clientes, não e verdade?
- É verdade. E faz muito bem.  



  

2016/09/08

Fogos há muitos...

De acordo com a opinião dos "experts", os fogos causados por incendiários (que existem) não representam mais do que 20% do total dos incêndios. Os restantes 80%, têm a ver com causas várias (desleixo, "queimadas", picnics, fogos de artifício, canas de foguetes, falta de limpeza das matas, difícil acesso para os bombeiros, etc...).
Em meses extremamente quentes, como Julho e Agosto, com ventos de Leste que aceleram a propagação das chamas, torna-se praticamente impossível controlar todas as "ignições", calculadas em centenas por dia. Um flagelo, que atinge outros países bem mais apetrechados que o nosso (Austrália, EUA/Califórnia, etc.). De qualquer modo, Portugal teve, só este ano, cerca de 100.000ha ardidos, mais do que a totalidade da última década (!?), correspondente a 2% da área florestal da União Europeia! Uma catástrofe ambiental e económica, com prejuízos para as pessoas e para a natureza.
Alguma coisa está profundamente errada neste modelo de combate ao fogo em Portugal, a começar pela prevenção que nunca é feita de forma sistemática e em tempo útil (leia-se, nos meses de Inverno e Primavera).
Resta acrescentar que não existe um cadastro actualizado de terras a Norte do Tejo, o que torna impossível responsabilizar os donos/herdeiros das terras que lhes pertencem. Dado que os custos de limpeza dessas terras são, normalmente, superiores à rentabilidade dos terrenos, os proprietários (muitos deles, absentistas) preferem deixar as terras ao abandono. 
Quando os vendem ou arrendam, as árvores neles plantados são, por norma, eucaliptos para a celulose (industria do papel) que são mais rendáveis. Ora, como é sabido, o eucalipto exige mais água (seca tudo em seu redor) e arde mais depressa. Outro desastre ambiental!
Deviam plantar árvores como o carvalho, o castanheiro, o sobreiro, o pinheiro e a oliveira, que são mais adequadas à morfologia do mediterrâneo. Isto é o que dizem os engenheiros sivicultores e os agrónomos que percebem da poda. Porque muitos destes técnicos (não esquecer os guardas florestais), e os serviços que tutelavam, foram extintos, estamos pior do que há 30 anos atrás. Com gestores da coisa pública medíocres, não vamos lá. Um país adiado...

2016/09/06

A "Silly Season" está para durar

Há não muito tempo atrás, os meses de Verão, eram associados ao termo "silly season", aquele período do ano em que o material para as notícias era escasso e qualquer "fait-divers" justificava uma "cacha" jornalística para vender jornais. Ainda hoje é assim e Portugal não é excepção. Com a Assembleia da República encerrada e com o campeonato de futebol no "defeso", parece ser impossível aos jornalistas desta terra, chamada país, encontrarem motivos pra fazerem bom jornalismo de investigação e dedicarem-se a notícias verdadeiramente importantes.
É verdade que tivemos os "fogos de Verão" (um "must", em reposição, devido à popularidade do tema nas temporadas anteriores), a vitória no campeonato europeu de futebol (que alimentou reportagens impensáveis há semanas atrás), da mesma forma que tivemos o fotografia do menino de Aleppo (a lembrar-nos que o "Je Suis..." é de todos os continentes) e, mais recentemente, o bárbaro espancamento de um jovem em Ponte-de-Sôr, em circunstâncias ainda por esclarecer. Paralelamente, houve a descoberta de três cadáveres de brasileiras, numa "fossa" do concelho de Cascais (ao que chegou um dos principais "resorts" turísticos do país...) e, "last but not least", as transferências futebolísticas por valores obscenos, que o país pindérico discute acaloradamente, como se, dessas verbas, dependesse o seu futuro económico ou o seu desenvolvimento social.
Também é verdade que o Verão ainda não terminou e o calor dos últimos dias está aí para comprová-lo. Deve ser por isso que as "notícias" continuam sob "brasas" e os títulos à medida das temperaturas. Mais do que noticiar, há que manipular as opiniões, com textos subliminares (a "mensagem" de que falava McLuhan) procurando formatar a opinião pública, já de si pouco informada e funcionalmente analfabeta, a melhor forma de levar o "rebanho" ao redil. Contra isto, pouco há a fazer e, não fossem as redes sociais, a situação seria com certeza muito pior. Por cada título, dos chamados "jornais de referência", há um texto onde se dizem coisas completamente diferentes do "lead" e, por cada declaração perante as câmaras, há uma edição de imagens (chama-se "montagem") que nos obriga a tirar conclusões diferentes do que o entrevistado pretendia dizer...
O método é conhecido e sempre existiu. É sempre pior em países ditatoriais (onde não há contraditório) e em países pouco letrados (caso de Portugal), onde jornais desportivos e telenovelas são a informação possível.
De qualquer modo, esperávamos um pouco mais, agora que a "rentrée" foi formalmente anunciada e os principais agentes da informação - os jornalistas - parecem ainda não ter regressado de férias. A julgar pela tez bronzeada que apresentam, já devem ter dado uns bons mergulhos. Se isso contribuiu para refrescar as ideias e os métodos utilizados, duvidamos. Não se notam grandes diferenças. Provavelmente, a "temporada pateta", ainda não terminou...

 
    

2016/07/17

O peso das palavras



Prender milhares de militares e suspender milhares de juízes não é suster um "golpe anti-democrático". É uma purga.
É, dir-se-ia até, sinal claro de que não existe democracia.

2016/07/10

O Homem da Cadeira (isto anda tudo ligado...)


Na mesma semana que a Goldman Sachs anunciava a nomeação de Durão Barroso para o lugar de "chairman", eram publicadas, em Londres, as conclusões do inquérito da comissão "Chilcot", sobre o envolvimento britânico na invasão do Iraque, um relatório devastador para Toni Blair, o principal apoiante europeu da guerra de 2003. Por coincidência, nesta mesma semana, dois atentados bombistas voltaram a matar centenas de civis, em Bagdad, numa guerra civil que dura há mais de13 anos naquele país.
Ainda que, à primeira vista, estes acontecimentos tenham pouco em comum, a verdade é que a invasão do Iraque (baseada numa mentira) teve a cumplicidade de diversos governos europeus, entre os quais o inglês (o principal aliado americano no conflito) e o português, à época dirigido por Barroso, hoje "chairman" do maior banco mundial de investimentos.
Sobre o conflito do Iraque, já tudo foi escrito e publicado. O relatório "Chilcot" apenas confirma o que já se sabia, agora de forma mais imparcial e objectiva.
Treze anos e mais de 600.000 mortos depois, o Iraque transformou-se num "atoleiro", donde ninguém parece sair vivo, tantos e clamorosos erros foram, desde então, cometidos. A começar pela destruição dos principais pilares do estado (tribunais, polícia e exército) logo após a invasão, dirigida e coordenada pelos EUA e seus aliados. A guerra de resistência (contra os americanos primeiro) e entre as diversas facções iraquianas (mais tarde), aprofundou as divisões étnicas entre as maiores comunidades do país (curdos, sunitas e shiitas), tendo expulso mais de 2 milhões de habitantes para os países limítrofes, num dos maiores êxodos da última década. É entre esta população de desenraizados, que os movimentos terroristas do Al Qaeda e do Daesh, recrutam a maior parte dos seus militantes, hoje também espalhados pela Líbia, pela Síria e pela Turquia.
Um desastre humano, social e económico, regional e internacional, cujas ondas de choque continuam a fazer-se sentir na Europa e noutros continentes, como os recentes atentados nas principais capitais do Ocidente nos lembram todos os dias.
Esta é a "herança" de Bush, Blair, Aznar e Barroso, o "quarteto dos Açores",  que anunciou a Guerra ao Mundo e cujos principais responsáveis nunca foram levados a um Tribunal Internacional, onde deviam ser julgados por crimes de guerra (por alguma razão os EUA não são membros do TPI, em Haia). Sobre Blair, sabemos hoje que chorou (!?) ao conhecer as conclusões do relatório inglês, enquanto Barroso (o mordomo das Lajes) foi, mais uma vez, recompensado. Já tinha ido para Bruxelas, agora vai para Londres, sentar-se na cadeira de director não executivo.
Nada que nos espante. Os oportunistas, nunca perdem uma oportunidade e "cadeiras" sempre foram a sua paixão. Todos estarão lembrados dos móveis, "desviados" da Faculdade de Direito durante o PREC, pelo camarada Barroso, ao tempo militante do MRPP. Ele há paixões que duram uma vida...

2016/06/24

O Euro 2016 e o Brexit

Se tivesse participado na votação sobre o Brexit ter-me-ia provavelmente abstido.
Explico-me: considero a pergunta formulada incorrecta e traiçoeira. Não sabemos, de facto, não sabemos nós ou o povo britânico, se o voto de ontem foi um sim à saída desta União Europeia ou ao projecto de "União Europeia". 
Se foi um voto contra a existência de uma união europeia ou se foi um voto contra a direcção deste projecto, contra ou a favor do rumo que ele tomou. O mesmo se passa com o voto não. Ao votar sim ou não nenhuma pergunta política crucial sobre o futuro da Europa fica respondida.
As distinções não são meros jogos de palavras.
Se a pergunta tivesse sido claramente "concorda com o projecto europeu?" ou "acha que o RU deve participar num projecto europeu?" creio que as leituras teriam sido bem diferentes. Take it or leave it é uma fórmula estúpida, incapaz de garantir a resposta inequívoca que todos pretendiam ou temiam.
Neste sentido não se percebe bem a tristeza de uns e a alegria de outros. A reacção dos partidos de ultra direita europeus mereceria uma outra reflexão, mais alongada. Interrogo-me, para já, sobre as causas da sua alegria. Sofreram uma derrota, por que riem tanto?
Não acredito que os ingleses que votaram pela saída estejam todos contra o projecto europeu. Como também não acredito que os que votaram pela permanência sejam totalmente a favor desta direcção de cariz fascista. Assim sendo, estamos perante uma questão falsa, perante falsos dilemas e continua tudo em aberto.
A votação de ontem não esclareceu nada nem foi uma opção por um mal menor. As alternativas em cima da mesa eram enganadoras. O Brexit é um imenso logro. Nem os ingleses se livraram da UE nem nós nos livrámos dos ingleses. Os problemas vão continuar, para eles e para nós. Ao contrário do que ontem disse Juncker "out will never be out". Por que razão foi in, para começar? O que é que mudou?
O debate segue dentro de momentos. Os ingleses, como os portugueses e todos os outros povos europeus, têm ainda muito para aprender com todo este processo.
O projecto europeu é, se calhar, o projecto mais progressista neste momento no mundo e constitui, talvez, o modelo mais avançado, mais capaz de dar resposta aos desafios da Humanidade no século XXI. Mais susceptível de servir de exemplo aos outros povos. Não há, diria até, outro.
A Europa não é um jogo da fase de grupos em que quem não passa regressa a casa e quem passa segue para os oitavos de final.

Europa 2.0



O Reino Unido disse não a esta Europa, incapaz de demonstrar e valorizar claramente os seus méritos e de mostrar vontade de resolver o seu problema de total falta de democraticidade. Vamos ver se a moda não pega...
Para já, trata-se de uma derrota pesada para os burocratas e para a troika, eles que pareciam tão firmes neste seu comportamento protofascista. É um alívio para os restantes que vêem a Europa encaminhar-se, sem apelo nem agravo, para o ambiente de horror, cujo espectro a levou, justamente, a criar a Comunidade.
Boa!
Gritava há pouco D. Cohn-Bendit que a Europa não é um brinquedo. Junker avisava ontem, por seu turno, que "out is out". Juncker, por exemplo, é "out". Ainda não percebeu.
Vamos então levar isto a sério, finalmente?

2016/06/22

Encruzilhada Europeia


Na semana de todas as decisões, continuam a faltar soluções à Europa.
As medidas financeiras, anunciadas por Draghi, mostram-se insuficientes para relançar uma economia em crise desde 2009; a crise dos refugiados não desapareceu e foi oportunisticamente "entregue" à Turquia, sem que exista qualquer estratégia subjacente; os movimentos nacionalistas não páram de crescer, continuando a alimentar a xenofobia e o ódio contra as populações imigrantes, eternos "bodes expiatórios" das crises sociais; as dívidas soberanas continuam a estrangular e a impedir a recuperação das economias mais frágeis, como a de Portugal e a da Grécia, enquanto os movimentos independentistas e anti-partidos continuam a ganhar adeptos em Espanha e em Itália. Em França, os conflitos laborais tomaram conta do país, entretanto a braços com ameaças terroristas e com a organização do europeu de futebol, onde os acidentes com "hooligans" voltaram a ser notícia.
Veja-se o caso do Reino Unido, onde em vésperas do referendo, ainda não é certo se os britânicos ficam ou saem da União Europeia. Caso o "Brexit" ganhe, em que condições o farão? Abandonam todos os tratados, ou só alguns? E a Escócia? Manter-se-á no Reino Unido, ou convocará um novo referendo, com vista a tornar-se independente e, dessa forma, poder manter-se na UE?
Se o Reino Unido permanecer na UE, quais as contrapartidas exigidas por Cameron? Exigirá a limitação da entrada de refugiados e emigrantes, cedendo às exigências dos movimentos nacionalistas e independentistas ingleses? Que estatuto passarão a ter os imigrantes da UE, que residem no Reino Unido? Quais as consequências para as centenas de milhares reformados ingleses, que vivem noutros países da União e mantêm regalias adquiridas no seu país de origem?
Questões maiores, que preocupam os directamente interessados e às quais o referendo não dá resposta, pois os votantes não sabem sequer quais as consequências da sua votação.
Em Espanha, a convocação de novas eleições não contribuiu para a clarificação política e tudo indica que a previsível vitória do Partido Popular, não trará uma maioria absoluta necessária para governar. Registe-se a subida da coligação Unidos-Podemos que ultrapassará o PSOE, mas que não será suficiente para formar governo. Como ninguém quer governar com Rajoy, o impasse parece ser total. No meio de tudo isto, os sentimentos nacionalistas da Catalunha não abrandaram e a contestação a Madrid é mais forte que nunca, pondo em perigo a unidade do país.
Resta Portugal. No fim deste mês, o Eurogrupo reunirá de novo para apreciar a questão do "déficit" (ainda acima dos 3%) e quais as eventuais sanções a aplicar, caso o governo recuse aplicar novas medidas de austeridade. As perspectivas são moderadamente optimistas, com o governo a subestimar as críticas e o perigo de sanções, e os eurocratas a manterem a ameaça, por incumprimento das medidas exigidas. No limite, Portugal pode perder apoios financeiros, que limitarão os investimentos numa economia que não cresce. Sem crescimento económico, não há riqueza e, sem riqueza, não há investimento, distribuição e pagamento da dívida...
A coisa não está fácil e nem o Ronaldo nos safa. Não só não marca golos, como atira microfones de jornalistas para dentro de água (!?). No meio desta desorientação colectiva, resta Fernando Santos, que ainda acredita em milagres e, à falta de melhor, continua a gritar: "não percam a cabeça!".

2016/06/21

Taxi Driver (8)



Então, para onde vamos?
- Para a Buraca, pelo Monsanto...
Vamos tentar, mas olhe que isto, hoje, está tudo "entupido".
- Às sexta-feiras, é sempre assim...
Vamos tentar. Talvez pelas Amoreiras.
- Então?
Não me parece. Vamos até lá cima e viramos para Campolide. Está de acordo?
- Parece-me bem...
Eu dantes, vivia em Campo de Ourique, mas agora mudei-me para a Amadora. É melhor e mais calmo. Já lá mora há muito tempo?
- Há uns anitos, sim...
Conhece o "Panças"? Vou lá comer muitas vezes.
- Nunca lá fui.
Vive ali ao pé e nunca lá foi?  Não sabe o que perde. O cozido aos domingos, é espectacular. Eu como sempre o mesmo: "piano". Por 14euros, uma dose, que dá para três...
- Sim, por alguma razão tem sempre filas à porta...
Eu gosto mais de comer em casa. Como o que quero e posso repetir...Agora vou para casa jantar. Só trabalho à noite, para evitar o trânsito.
- Faz muito bem. Mas, se calhar tem menos clientes, ou não?
Sim, mas ganho mais. Já tenho clientes e hóteis certos. 
- Isso rende mais?
Claro. Os turistas, principalmente os russos e os angolanos, querem é borga e "strip-tease"...
- Gastam muito?
Se gastam muito? Fortunas! Olhe uma vez levei um suiço que queria duas prostitutas no quarto. Deu 800euros às duas! As brasileiras estão ricas. Conheço uma que já comprou uma herdade no Brasil e diz que, daqui a um ano, volta para lá, porque já não precisa de fazer esta vida...
- E você? Gosta do que faz?
Não é mau, por uns tempos. Mas, eu não quero fazer isto toda a vida. Já fui rico e agora tenho de cuidar da família.
- Donde é?
De Angola. O meu pai é branco e foi para África nos anos sessenta. Era militar. Em 1974, tivemos de sair de lá e viemos para Portugal. Graças a ele, ainda puderam vir mais famílias. Éramos ricos, tinhamos fazendas, muitos empregados e cinco carros...
- Estou a perceber. Agora é um imigrante. Eu também estive emigrado...
Ah, sim? Onde?
- Na Holanda. Muitos anos.
Também lá trabalhei. Em Roterdão. Uma vez, saí daqui às 7h da manhã, para chegar lá antes das sete da manhã do dia seguinte. Tinha um encontro com uma namorada. Eu sabia que a discoteca estava aberta até às 7h e, quando lá cheguei, ela ainda estava à minha espera...Estive um ano na Holanda. Não gostei. As pessoas são muito distantes, está sempre frio e a comida era má. Só me dava com cabo-verdeanos. Comia sempre em casa de africanos. Podemos não ter dinheiro, mas damos sempre abrigo a estranhos. Na Europa, já não é assim. Nem em Portugal. Se não tiver dinheiro, não tem amigos...
- É verdade, as pessoas são mais individualistas. Mas, também tem a ver com o apoio que o estado dá aos cidadãos. E como é em Angola?
Em Angola, é tudo da família dos Santos. Quando ele morrer, a filha herda tudo...
- Eu sei, já é a mulher mais rica de África...
Pois é. E está a comprar Portugal inteiro. Qualquer dia manda no país...
- É pena não ser mais generosa com o povo angolano. Um país tão rico, dava para todos...
Temos tudo, mas a riqueza está nas mãos de meia-dúzia de famílias. E olhe que há muito dinheiro. Há dias andei uma noite inteira com um angolano. Fomos jantar, depois levei-o a um clube de alterne, pagou champagne àquelas gajas todas, fomos a um "strip-tease" e acabou tudo num hotel. Gastou para aí uns 8000euros numa noite! Disse-me que, se eu quizesse, podia ficar com uma das prostitutas...
- Devia ganhar bem, o homem...
É avaliador de diamantes e vem à Europa todos os meses. Depois, quando está em Lisboa, e quer sair à noite, telefona-me do hotel...
- Isso é que é uma vida...Bom, estamos a chegar. Isto, hoje, levou mais tempo que o costume...
Desculpe lá, mas o trânsito não ajudava. São 16euros.
- Então, até à próxima.
Até à próxima. E, já sabe, não se esqueça de ir ao "Panças"...




2016/05/07

Amnésias

As próteses dentárias de Hitler eram, ao que parece, feitas com ouro retirado dos dentes dos judeus assassinados nos campos de concentração. Este ouro terá sido obtido pelo seu dentista Hugo Blaschke. O dentista terá juntado cerca de 50 kg, que  valeriam qualquer coisa como 2 milhões e meio de dólares a preços de hoje.
Segundo informação de há dias, a Grécia voltou ao estado de recessão. Ou melhor, viu aprofundar-se o estado de recessão permanente em que vive desde há anos. Tudo isto é fruto do terceiro resgate, o último neste longo processo que Varoufakis classificou apropriadamente como terrorismo
Terrorismo que se reflecte agora numa dívida externa a subir para uns "himalaianos" 180% do PIB, em mais cortes na despesa pública, em mais cortes de salários e pensões, em mais despedimentos e num aumento recorde do desemprego. Depois de tudo o que se passou na Grécia, depois de tudo o que vimos e ouvimos... tudo ficou pior. Um site publicita a venda dos últimos bens públicos gregos ainda susceptíveis de serem colocados no prego. Um equipamento que se mantém em bom estado de funcionamento, um exemplar de património, a pechincha certa de ocasião, um activo do Estado, perfeito para conceder a um privado, um serviço rentável sem avarias, uma instalação pública bon-marché, levamos a casa. 
Uma espécie de OLX na lógica austeritária!
Tudo isto acontece depois de toda aquela tensão vivida há sensivelmente um ano, com o David Varoufakis a desafiar o Eurogrupo Golias. Um momento que culminou na saída do governo do desafiador ministro das finanças grego, depois de toda aquela barragem de contra-informação, que, por um momento breve, deixou os Europeus a pensar em Política. Lembram-se?
A Grécia deixou entretanto a agenda dos jornais, já não motiva encontros de fim de tarde ou de fim de semana de agitprop dos partidos das boas intenções e até está ausente das conversas de café dos que, volta não volta, se levantam do sofá da letargia política e resolvem parar para pensar, enquanto sorvem a bica.
Um dia destes, podemos acordar com um incêndio brutal à porta, maior que o de Fort McMurray, mas sem hipótese de sermos evacuados para lugar seguro. 
E de quem será a culpa?
Numa série chamada os "Segredos do Terceiro Reich", que passou recentemente na RTP 2 (onde colhi a informação sobre a dentadura dourada do Hilter), analisava-se a possibilidade do ditador sofrer de uma qualquer forma de doença mental.  "Foi bastante conveniente para os alemães, após a guerra, dizerem que Hitler era louco e nós não fomos responsáveis, ele não foi responsável, e assim se livrarem de culpas," afirmava o historiador Richard Evans, que acrescentava que "é importante ter em conta que ele era, para todos os efeitos, designadamente, os mais importantes e cruciais da sua actuação, perfeitamente são. Se a sua ideologia era racional, isso já era uma outra questão."
O historiador alemão Hans-Joachim Neumann observava na aludida série que "não houve guerra e os judeus não foram aniquilados por Hitler ser doente, mas porque a maioria dos alemães apoiou as suas decisões."
Evans concluía que "gostamos de pensar que alguém que cometeu tamanhas monstruosidades e tais crimes deve ser louco. Mas são outras e mais profundas as questões colocadas quando admitimos que ele não era louco."
A figura tão laboriosamente construída, o símbolo audio-visual tão facilmente identificável de Hitler, desapareceu. Em vez dele temos hoje inúmeros pequenos Hitlers, que tão pouco são loucos, mas cuja ideologia fede igualmente a irracionalidade. Hitlerzinhos inconspícuos, instalados no poder pela Democracia, como outrora o foi Hitler, com uma diferença: ao contrário do que aconteceu com o ditador do bigodinho e dos gestos ridículos, vão ter enorme dificuldade em destruir o mecanismo que os conduziu ao poder. Só esse mecanismo poderá incendiar o seu Reichtag. Hitlerzinhos suportados por uma propaganda que faria roerem-se de inveja os especialistas do Terceiro Reich, cerzida num subtil sistema de dependências que a todos parece condicionar e a todos ameaça destruir o futuro, seu e dos seus filhos. Mas que, para uma triste maioria, destes e dos seus filhos, parece não ser ainda motivo suficiente para renegar o apoio canino. 
A que bocas terá, entretanto, ido parar o ouro, o dos gregos e o nosso?