2017/02/22

Memórias do Zeca


Passam, esta semana, 30 anos sobre o desaparecimento de José Afonso.
Sobre o cantautor mais importante da música popular portuguesa, já (quase) tudo foi escrito.
Restam as inúmeras estórias pessoais, daqueles que com ele tiveram o privilégio de contactar.
Lembro-me da primeira vez que o ouvi, nos idos anos sessenta, em tertúlia de amigos, ali para os lados de Alvalade, em casa do único de nós que possuia gira-discos. A canção, que não nos cansávamos de escutar, intitulava-se "Os Vampiros". Como era possível alguém escrever e cantar tal texto num tempo marcado pela censura?
Posteriormente, durante um curto período em que trabalhei numa discográfica, eu próprio vendi clandestinamente muitos EPs onde estava incluída a canção, proibida pelo regime. Do Zeca, ninguém sabia ao certo, ou melhor, dizia-se que vivia em Moçambique, onde leccionava.
Mais tarde, já no estrangeiro, onde me tinha entretanto exilado, recebi todos os LPS do Dr. José Afonso, enviados religiosamente pela família, no dia do meu aniversário.
Teria de esperar até ao dia 28 de Setembro de 1974 - quando o Zeca cantou pela primeira vez na Holanda - para o conhecer pessoalmente. Falámos durante o intervalo daquela que se revelou ser uma sessão histórica (dados os acontecimentos desse dia em Lisboa) e ficámos "amigos".
Entre 1974 e 1981, o Zeca voltaria por mais 4 vezes à Holanda, tendo actuado nas cidades de Utrecht, Haia, Amsterdão (2 vezes) e Nijmegen. Tive o privilégio de organizar a maior parte destas sessões, algumas delas "heróicas", muitas vezes em condições sofríveis, que só a boa vontade do cantor e o despojamento que o caracterizava, tornaram possíveis. Porque, na maior parte das vezes, eram concertos organizados em colaboração com organizações holandesas solidárias com a "revolução portuguesa", lembro-me sempre do Zeca sublinhar esse facto e dizer "éh, pá, se tivéssemos mais holandeses destes em Portugal, a revolução já estava feita...".
Entre 1981 e 1986, os nossos encontros passaram a ter lugar em Portugal, quando o cantor já não viajava, devido à doença que, entretanto, o tinha atingido.
Recebi a notícia da sua morte, na madrugada do dia 23 de Fevereiro de 1987 após um memorável concerto do guitarrista Pedro Caldeira Cabral e da Brigada Victor Jara, na sala "Paradiso" em Amsterdão. A mesma sala, onde o Zeca tinha actuado 6 anos antes. Senti que, nesse dia, se fechava um ciclo da vida portuguesa, aquele que mais intimamente me ligava à utopia de Abril.  
Do seu legado, para além da música e da poesia, resta-nos o exemplo cívico de cidadão empenhado e solidário, na oposição à ditadura e a todas as formas de opressão e injustiça que sempre combateu. O reconhecimento desta atitude perante a vida, grangeou-lhe amigos (muitos) e alguns inimigos, mas a importância do seu exemplo ganhou novos contornos e é hoje mais consensual que nunca. Por isso, o Zeca, apesar de ter partido, continua entre nós e continua a ser lembrado todos os dias, ainda que, de forma mais especial, na data de hoje.
Porque 2017 é um ano especial, estão programados diversos eventos e actividades ao longo de todo o ano. A Associação José Afonso, elaborou um programa subordinado ao título "José Afonso: 30 anos, trinta concertos", que levará a sua música a trinta cidades e localidades diferentes entre Fevereiro e Dezembro. No lançamento desta iniciativa, foi apresentada a publicação "AJA: 30 anos", onde são passados em revista os 30 anos da Associação. Para o dia 25 de Abril está programada a inauguração de um Memorial José Afonso, que ficara situado no Jardim das Francesinhas, ao lado da Assembleia da República em Lisboa. Finalmente, a AJA, com o apoio da SPA, irá reeditar o LP "República", gravado ao vivo em Itália, em 1975, durante um concerto de solidariedade com o jornal português do mesmo nome. Para que a memória não esmoreça.