2023/02/07

O país de emigrantes que trata mal os imigrantes

Em Portugal, só nos lembramos de Santa Bárbara, quando fazem trovões.

Tem sido sempre assim e continuará a ser. Está nos genes. Somos um povo reactivo, mais do que proactivo. Gostamos de contemplar, mas não de actuar. Somos criativos, mas pouco organizados. 

No último fim-de-semana, o país "acordou" literalmente para um fenómeno existente e identificado há anos. Não faltaram vozes de espanto e de condenação. Depois do mal feito, trancas à porta. A hipocrisia lusitana, no seu melhor. 

Aconteceu em Olhão e na Mouraria, mas podia ter acontecido noutra cidade ou noutro bairro do país. 

Na primeira cidade, foram espancados dois jovens imigrantes nepaleses, recentemente chegados a Portugal, quando regressavam do seu trabalho diário. A agressão só foi conhecida, porque os principais canais televisivos transmitiram um vídeo da ocorrência, filmado pelo próprio grupo que cometeu o crime. Uma barbaridade sem nome, que durou minutos, sem que um único morador da rua acudisse aos desgraçados, apesar dos gritos de um deles, pontapeado, chicoteado e a quem queimaram o cabelo com um isqueiro. Inominável. Onde já se viu isto? 

No bairro mais multicultural de Lisboa, morreram 2 pessoas e 14 ficaram feridas, num incêndio que eclodiu numa loja do rés-do-chão, onde dormiam 16 pessoas! Eram todos estrangeiros, a maioria asiáticos, de nacionalidade bengali, paquistanesa e indiana. Aparentemente, o fogo teria sido provocado por um fogareiro a gás, já que os inquilinos cozinhavam no quarto onde dormiam (um T0, de dimensões reduzidas). 

No primeiro caso, os moradores de Olhão confirmaram as agressões e disseram mais: estas agressões não são uma excepção, mas acontecem com frequência (mais de 15 nos últimos tempos). Sempre contra estrangeiros, jovens imigrantes, que não falam português e não ousam queixar-se à polícia, com medo das represálias. No segundo caso, toda a gente da rua sabia, desde os vizinhos aos comerciantes, passando pela polícia e pela junta de freguesia de Santa Maria Maior, mas ninguém faz nada para combater a sobrelotação de casas alugadas por senhorios gananciosos.        

Ou seja, toda a gente sabe, mas ninguém se queixa, toda a gente convive com o crime, mas ninguém protesta. Seja por medo, seja por insensibilidade, seja pela falta de empatia, que tomou conta de nós. 

Foi assim, com o imigrante ucraniano, barbaramente assassinado às mãos da polícia de estrangeiros, nas instalações do SEF do aeroporto de Lisboa; foi assim, com o grupo de trabalhadores asiáticos, nas estufas agrícolas do sudoeste alentejano, que viviam  em condições sub-humanas, "descobertos" após a pandemia do Covid, no concelho de Odemira; foi assim, com o grupo de trabalhadores asiáticos, chantageados e torturados pela GNR do posto de Milfontes; foi assim, com dezenas de timorenses, aliciados para vir trabalhar para Portugal que acabaram a dormir à chuva e ao frio, no Martim Moniz em Lisboa; foi assim, com centenas de refugiados do Mediterrâneo, chegados a Portugal entre 2015 e 2016, que desapareceram sem deixar rasto; é assim, todos os dias, nas instalações do SEF, onde os imigrantes  pobres pagam para obter uma "senha" (!?) e chegam a aguardar anos por uma licença de estadia, única forma de trabalharem legalmente. Sem licença, ficam à mercê de engajadores sem escrúpulos que os exploram no salário e na habitação sem condições. É assim na zona de Arroios, onde se calcula viverem 20.000 estrangeiros e coexistirem mais de 80 nacionalidades. É assim, no eixo de Almirante Reis, onde nos últimos dois anos houve dez fogos, em habitações onde chegam a dormir 20 pessoas, amontoadas em colchões e beliches. É assim, em Portugal, um país de emigrantes no passado e no presente, que hoje necessita de imigrantes para fazerem o trabalho que nós recusamos fazer. Uma vergonha civilizacional. 

Perante este quadro tenebroso, poucas alternativas (soluções) são oferecidas. Toda a gente lamenta, mas não se conhecem medidas concretas para melhorar a situação. Começaram as respostas evasivas e o "passa culpas" habitual. O presidente da CML, promete alojamento temporário a quem ficou sem casa; o presidente da Junta de Santa Maria Maior (da qual faz parte o bairro da Mouraria) diz não caber à Junta solucionar o problema; a presidente da Junta de Arroios, diz conhecer o problema e estar a preparar um levantamento de casos conhecidos; a polícia, diz ser uma assunto do SEF que, por sua vez,  diz ser uma assunto da Segurança Social. Toda a gente se "descarta", à boa maneira portuguesa, mas ninguém resolve nada. 

No meio destes governantes medíocres, esteve bem Marcelo Rebelo de Sousa, que ontem se deslocou a Olhão para conhecer os dois jovens nepaleses agredidos, a quem apresentou desculpas em nome de Portugal. Voltou a estar bem, mais tarde, quando aproveitou a visita à cidade, para dar uma aula de cidadania sobre racismo e xenofobia, a alunos do secundário de Olhão. "Chapeau"! 

2 comentários:

Carlos Alberto Augusto disse...

O problema vem de longe. Brandos costumes... my ass!

rui mota disse...

Uns cretinos, incompetentes e hipócritas, estes gestores da coisa pública. Temos um problema demográfico terrível (as últimas projecções do INE, dizem-nos que, até ao fim do século, podemos perder 2 milhões de habitantes!). Necessitamos de mão-de-obra estrangeira e, uma das soluções, pode passar pela imigração (7% da população neste momento). Acontece que, a maior parte destes imigrantes, é pouco qualificada e as alternativas são poucas no mercado de trabalho: restauração, hotelaria e agricultura, para além da construção civil e serviços diversos, normalmente feitos por africanos das ex-colónias que falam a língua. São trabalhos temporários (sazonais) e mal pagos. Os governantes (todos!) apelam à vinda de imigrantes e, os poucos que arriscam, são sempre mais pobres que nós. Atravessam continentes, transportados por intermediários (máfias) que os "vendem" literalmente a patrões e arrendatários, sem escrúpulos, que os exploram de uma forma ignóbil. Estas histórias, dramáticas, são conhecidas de toda a gente, que lê jornais ou vê televisão. Se eu sei, os políticos e a polícia também sabem!. Logo, das duas uma: ou não apelam à vinda de imigrantes, para não alimentar ilusões que não podem cumprir; ou apelam e têm de lhes garantir meios básicos de sobrevivência: licença de estadia, sem a qual não podem trabalhar, emprego e habitação. O resto, vem por acréscimo. Também passei por isto e sei do que falo. Não bastam as "boas intenções" (de boas intenções está o inferno cheio!). São preciso acções concretas e punição da criminalidade, que gravita à volta destas comunidades mais desprotegidas, se querem realmente resolver o problema.