2024/01/26

2024, o ano do pato

A menos de dois meses de eleições legislativas, marcadas para 10 de Março, na sequência da demissão de António Costa e posterior dissolução do parlamento decretada por Marcelo Rebelo de Sousa, as máquinas partidárias desdobram-se na elaboração das listas de deputados e na afinação dos programas que irão apresentar no decorrer das próximas semanas. 

Um ritual conhecido, que não parece entusiasmar grandemente o "homem da rua", mais preocupado com as contas a pagar ao fim do mês, com o estado dos serviços de saúde, com a falta de professores ou com a escassez de habitação a preços razoáveis. Um ciclo infernal, que parece ter-se agravado nos últimos anos, apesar de resultados assinaláveis conseguidos na redução da dívida pública, na contenção do défice, no aumento do turismo, ou na redução do desemprego. Um país a duas velocidades, onde os sucessos macro-económicos não conseguem disfarçar as desigualdades gritantes da sociedade portuguesa.

Sim, é verdade que o PS, após 8 anos de governação, conseguiu a proeza de diminuir a dívida de 132% para cerca de 100% do PIB (a maior baixa da zona euro), reduzir o défice a menos de 1% e manter um crescimento económico acima da média europeia. Também é verdade, que beneficiou de um crescimento exponencial do turismo, que voltou aos valores de 2019 (antes da pandemia) e conseguiu reduzir a taxa de desemprego para menos de 6%, uma das mais baixas da última década. Esta é a parte do "copo meio-cheio". 

A parte do "copo meio-vazio", está relacionada com o "estado social", que os sucessivos governos deixaram degradar, ao ponto dos mais diversos sectores (saúde, habitação, educação e transportes), serem hoje um foco de contestação permanente, dos utentes ao pessoal que os servem. Tudo parece funcionar mal: o atendimento personalizado, a crónica falta de pessoal nos diversos sectores, os tempos de espera nas consultas e nas repartições do estado, a escassez de bens de primeira necessidade (a habitação é dos mais gritantes exemplos), a manutenção da ferrovia ou os preços exigidos por serviços, completamente desajustados do poder de compra do cidadão médio. Um rol de insuficiências e completo desprezo pelos contribuintes, que pagam impostos europeus, mas auferem ordenados romenos. Não é pois de estranhar que as mais diversas corporações, dos médicos aos professores, dos oficiais da justiça aos polícias, protestem um pouco por todo o país. Como se esta situação não fosse já de si grave, parte dos jovens a que pomposamente chamam "a geração mais preparada de sempre", continua a abandonar o país (a uma média de 70.000/ano) como não se via desde os anos sessenta do século passado. 

Para contrabalançar esta hemorragia de mão-de-obra qualificada, Portugal importa mão-de-obra barata estrangeira, que maioritariamente trabalha na hotelaria, restauração e agricultura, serviços que os portugueses (porque mais qualificados) se recusam a fazer. Sem eles, a economia portuguesa não poderia simplesmente funcionar. É graças a estes imigrantes, vindos de países tão diversos como o Brasil, Cabo-Verde, Ucrânia, Bangladesh, Paquistão ou Nepal, que a demografia (num país envelhecido como o nosso) é compensada por novos cidadãos, que ainda contribuem para o equilíbrio da Segurança Social (€1600 milhões em 2023). No entanto, nesta como noutras áreas, os governos portugueses seguem uma política laxista: convidam os estrangeiros a imigrarem para Portugal e procurar trabalho, sem lhes garantir qualquer tipo de garantias ou protecção. Muitos deles caem nas mãos de intermediários mafiosos, que aproveitando-se da sua vulnerabilidade (desconhecimento da língua e das leis) sujeitam-nos a condições infra-humanas e de verdadeira escravatura. 

É neste caldo cultural (crise social e económica que atinge cerca de metade da população activa) que surgem movimentos populistas como o Chega, um partido racista e xenófobo que, a exemplo de outros partidos congéneres europeus, fez das minorias imigradas (porque mais vulneráveis) o "bode expiatório" de todos os males da sociedade portuguesa. Começou por ser uma dissidência do PSD (partido de direita democrata), tornou-se um partido de protesto contra o "sistema" (ao qual sempre pertenceu), elegeu os ciganos como seu "ódio de estimação" e, porque ganhou visibilidade (mercê dos votos que entretanto granjeou), alargou a discriminação às minorias asiáticas muçulmanas. Um mentiroso compulsivo, o Ventura, sem qualquer ideia ou estratégia para o país, que se limita a seguir o guião dos populistas da extrema-direita internacional (Trump, Bolsonaro, Milei, Le Pen, Meloni, Wilders) a quem ninguém compraria um carro em segunda-mão. 

Até ver, o líder do Chega (um partido acéfalo que elege o "chefe" com maiorias albanesas) está a crescer. As últimas sondagens dão ao partido uma percentagem acima dos 16%. Poderá crescer mais, mas dificilmente será governo, dado que a direita mais tradicional (AD+IL) já declarou não querer governar com a extrema-direita (!?). Há, no entanto, razões para duvidar da política de alianças, caso as próximas eleições confirmem uma maioria de direita na Assembleia de República. Nesse caso, dificilmente Montenegro resistirá a governar, pois a alternativa é deixar de ser secretário-geral do partido. 

Um dilema para a AD, que só pode crescer à sua direita, agora ocupada pelo Chega. Como conciliar valores democráticos com ideias anti-democráticas? É verdade que o Chega, ainda não é "completamente" fascista. Mas, os sinais estão lá: um partido autocrático, onde o chefe é omnipotente nas suas decisões; a defesa da trilogia Deus, Pátria e Autoridade, usada até à exaustão por Ventura nos seus discursos; a simbologia utilizada (saudação romana dos nazis); as declarações xenófobas contra os estrangeiros (pobres) em Portugal; a defesa da Ordem, presente nos apoios às forças policiais através do sindicato Zero, que nunca escondeu a sua ideologia; o cerco à sede do PS no Rato, em clara violação da lei, etc. 

Não, o partido de Ventura, ainda não será "completamente fascista", mas, como nos ensinou Umberto Eco ("Como reconhecer o fascismo", Ed. Relógio de Água, 2017) em que identificava 14 características do "Ur Fascismo" ou "fascismo eterno", não é necessário ter todas as suas características. Se tiver algumas delas, é caso para desconfiar. No fundo, é como a história do pato: voa como um pato, grasna como um pato, tem penas de pato, se calhar é mesmo um pato... 

3 comentários:

Carlos Alberto Augusto disse...

Concordo com a tua análise. Só discordo do "não será completamente fascista"... É completamente fascista (como aliás a IL) e tenta disfarçar porque a balança, por muito que lhes custe, ainda pende em Portugal para a Democracia. É uma bagunça (esta agora da Madeira veio ajudar ao bailinho), mas é uma bagunça democrática. Por enquanto. Se nós insistirmos que há mesmo linhas vermelhas...

rui mota disse...

Sim, o Chega é um partido (cripto)fascista, ainda que o neguem. Usam toda a parafernália dos partidos homólogos e movem-se na rede dos partidos fascistas europeus (a Internacional Neo-Fascista, idealizada por Steve Bannon, após a vitória eleitoral de Trump em 2016). Os sinais e as acções estão todos lá. Porque a memória anti-fascista da maioria dos votantes ainda é grande, tardaram a aparecer. Usam todos os truques para falarem deles (mesmo que se fale mal), pois o objectivo é ter "tempo de antena" que lhes permite veicular as suas ideias. Acontece que, para lá dos lugares comuns e da demagogia, não resta nada. São obtusos (condição para pertencer ao "clube") e veneram o "líder", a quem obedecem sem pensar. Uma espécie de igreja de culto "maná" (o Ventura foi seminarista) onde dançam todos ao som da verborreia do chefe. No fundo, é um "partido" de um só homem. Sem Ventura, o movimento não existiria. A esquerda (o que quer que isso seja) tem aqui grandes culpas, ainda que o Tribunal Constitucional tenha sido tolerante quando legalizou o partido. Mas, nessa altura, os estatutos não falam de descriminação e racismo, porque tinha uma linguagem democrata...

Carlos Alberto Augusto disse...

Todos têm culpa, sim. Os partidos democráticos, o TC e a falta de cultura do povo português. Há, infelizmente, uma tolerância, mesmo entre democratas para com o essa agremiação perfeitamente incompreensível. Os partidos democráticos de direita sempre se deram mal com esta questão porque, tornou-se agora claro o que já se sabia, acolhiam muitos transfugas do antigo regime. No caso da esquerda (que também acolheu alguns desses transfugas, apanhados com as calças na mão) a sua actuação é, simplesmente, inqualificável.
É sempre de recordar Bertrand Russel, na sua carta ao chefe da associação fascista britânica Oswald Mosley (de 1962!) e a teoria sobre a questão da tolerância, nomeadamente, do Karl Popper de 1945. É o Paradoxo da Intolerância... https://en.wikipedia.org/wiki/Paradox_of_tolerance