2010/05/08

Os números do desespero

Em conversa com alguém que trabalha na área da sociologia da medicina, foi-me revelado que é particularmente significativo o número de casos de suicídio ou tentativas de suicídio registados ultimamente. Pelo menos um caso por dia, dizem-me, aparece no banco de um hospital da zona da Grande Lisboa. Num só dia desta semana, foram quatro os casos de tentativas frustradas de suicídio. Gente nova, gente de meia idade e idosos, homens, mulheres, aparece de tudo.
Não sei se se trata de uma situação particular, não sei se as estatísticas confirmam aumento, estagnação ou diminuição do número de suicídios e de tentativas de suicídio relativamente a anos anteriores, não sei se existe algum estudo que esclareça esta situação, corrobore os número ou explique a natureza deste fenómeno. Sei que não será caso "rotineiro" porque terá levado os médicos a estranhar este surto e sei que, em valor absoluto e, em qualquer circunstância, quatro casos de tentativa de suicídio num só dia, num banco de um hospital, não parece ser coisa boa.
Os tempos vão maus, a incerteza perante o dia de amanhã nunca foi tão grande, a falta de soluções é gritante, os horizontes encolhem a cada hora, as desiguladades de oportunidades, a descriminação e as diferenças de tratamento entre os portugueses constituem matéria para procedimento criminal. Há quem derrame lágrimas de crocodilo pela "nova pobreza", há quem se aproveite dela e há quem tenha o poder para a atenuar ou erradicar, mas prefira perpetuá-la por forma a manter privilégios obscenos ou para obedecer a critérios "políticos" nojentos e mesquinhos.
E há quem sofra tudo isto na pele. E haverá seguramente quem, no desespero que resulta de ter de lidar com todos estes problemas opte pelo suicídio. É profundamente triste, mas não é coisa que nos possa, em boa verdade, deixar muito supreendidos.
Isabel Jonet, que dirige o Banco Alimentar, diz, com toda a razão, que atenuar o sofrimento dos pobres (dos novos e dos de sempre, digo eu) não nos deve desviar do objectivo único: acabar com a pobreza. E ilustra o absurdo a que se chegou, chamando a atenção para as recentes medidas relativas ao subsídio de desemprego, desmontando a sua "lógica" verdadeiramente criminosa, que --é mesmo caso para dizer-- se não fosse verdadeiramente trágica, daria uma enorme vontade de rir.
Esperemos, já agora, que tudo isto não perturbe demasiadamente o sono dos responsáveis políticos que conduziram e conduzem o país a este estado.
Os jornais noticiam, entretanto, que aumentou a segurança de certos políticos com medo de algum problema. Não vá algum candidato a suicida enganar-se e, no seu desespero, "suicidar" a pessoa errada...

2010/05/06

A Corporação

Passadas mais de 24 horas sobre a transmissão das imagens que mostram o furto de dois gravadores por um deputado do PS em pleno parlamento, o partido que mais se reclama da ética republicana continua a defender um acto indefensável, qualquer que seja o ponto de vista em que nos coloquemos. De Soares a Assis, de Gama a Maria de Belém, todos procuram uma justificação para algo que deviam ser os primeiros a condenar. Chega a ser patética esta forma de corporativismo, só possível em países com um fraco nível de tradição democrática e onde os detentores de cargos públicos confundem o poder que representam com absoluto poder. Em qualquer democracia avançada, Ricardo Rodrigues, caso não tomasse a iniciativa de pôr o lugar à disposição, seria obviamente demitido, única forma de preservar a honra da sua bancada. Ao recusar criticar explicitamente o seu deputado, o Partido Socialista não só não contribui para melhorar a imagem de um parlamento desprestigiado, como mostra o seu lado mais tenebroso: o de uma agremiação com tiques mafiosos que não olha a meios para atingir os seus fins. Quem pensa esta gente que é?

À atenção dos jornalistas

Se forem para os lados de São Bento, deixem os gravadores em casa!

2010/05/02

Dos piratas somalis aos especuladores, passando pelas agências de rating


A pirataria somali está aí desde há mais de dez anos. Começou por atacar ocasionalmente pequenos navios pesqueiros envolvidos em actividades de pesca ilegal nas costas da Somália, oriundos, sobretudo, daquela região do globo. Por essa razão pouco se falava do assunto. A frequência dos ataques, entretanto, aumentou (os ataques são já, segundo se diz [1], diários), bem como o tamanho dos navios capturados, a sua nacionalidade e a área de actuação dos piratas. Hoje a actividade destes não se limita às costas somali e, no que diz respeito a alvos, grandes cargueiros, navios-tanque, navios de passageiros, marcha tudo! De actividade "artesanal", a pirataria somali transformou-se em "indústria" pujante.
A expressão que o problema ganhou, a frequência e, sobretudo, a sua internacionalização, levaram a chamada "comunidade internacional" a tocar a reunir, fazendo aumentar a presença militar na zona, numa "rara demonstração de unidade de países que se hostilizam abertamente, ou que, pelo menos, vêem qualquer cooperação com prudência." [2]
As raízes da pirataria somali são complexas e, na sua origem, até nem me parecem totalmente destituídas de razão. O depósito de resíduos tóxicos e a pescaria ilegal de outros países afectaram seriamente a economia da região e os pescadores somalis limitaram-se a ripostar com o que tinham à mão. Uma parte significativa dos piratas é, de resto, constituída por ex-pescadores, considerados os cérebros destas operações pelo conhecimento que têm do mar. O problema é que o "negócio" ganhou outra dimensão e ganhou, sobretudo, uma dimensão transnacional que levou ao envolvimento e à procura de soluções pelas diversas instituições internacionais. Nesta perspectiva, a pirataria somali passou a ser um problema de atentado à soberania das nações e aos princípios do direito internacional.
Perante um problema de soberania, consubstanciado no ataque aos seus navios, os Estados não hesitaram em se unir e tomar medidas. Pouco interessa que na origem deste problema esteja a ganância de alguns Estados que agora vêm reclamar a legalidade internacional, desrespeitada por eles originalmente. Princípios actuais de direito marítimo internacional e de soberania foram desrespeitados e a reacção foi responder com energia e sem tibiezas. É o inatacável primado do direito sobre a barbárie.

São José Almeida voltou a escrever ontem no Público sobre a "empresarialização" dos Estados num artigo corajoso chamado "De Novo a Portugal, S.A.." Em causa mais uma vez (um artigo anterior tratava do mesmo assunto) o problema da actuação das agências de rating. A pergunta que a autora faz é simples: "é normal que os países sejam avaliados e se comportem como se de empresas se tratasse?"
Como vai acabar "a situação internacional," pergunta a autora, agora que "a economia do mundo passou a ser explicitamente controlada e governada por meia dúzia de empresas financeiras, mais concretamente de bancos, e em que os políticos e os governos dos Estados recebem delas as ordens, as regras e as orientações de procedimento?" É, como nota a articulista, a soberania dos países que está em causa.

A analogia com a pirataria somali é adequada, penso eu. Os piratas são neste caso eufemisticamente apelidados de mercados, mas não creio que haja qualquer diferença entre aquilo que está a ser feito contra as economias de países soberanos, como Portugal e Grécia, e o que se pratica nas costas da Somália. Tal como no caso da pirataria somali, a acção dos "mercados" (a.k.a "especuladores") começou por uns pequenos navios pesqueiros, operando localmente. Em breve vai apanhar, toda a gente o prediz, navios grandes e pequenos, navegando em águas locais e internacionais, e em vez de serem esporádicos e calculados, os ataques vão passar a ser permanentes e atingir tudo o que mexe, enquanto mexe.
A resposta internacional é que é, ao contrário do caso da pirataria somali, é infelizmente de uma tibieza e de um "moralismo" perfeitamente indesculpáveis. Não se vislumbra, como no caso da reacção soberana aos ataques dos piratas nas costas da Somália, uma "demonstração inequívoca de unidade entre os países."
O caso da Alemanha então é, quanto a mim, perfeitamente vergonhoso. Este país, sobretudo este país, não parece ter percebido (e já há décadas que o devia perceber...) que não há alternativa: ou está do lado dos piratas ou do lado das suas vítimas.


PS- Cf. aqui algumas notas interessantes sobre a possível escalada deste movimento especulativo.

A ditadura voltou

O jogo Porto-Benfica gerou uma operação policial de dimensão nunca vista. Os responsáveis policiais asseguram que tudo está previsto, todos os pormenores foram cuidadosamente analisados, um número obsceno de agentes da autoridade foi destacado para vigiar os potenciais prevaricadores, os meios usados fazem lembrar a cidade de Juarez.
As vias de circulação são cortadas para aumentar a segurança. Imagino o que os desgraçados moradores das zonas atingidas por este tsunami futebolístico não estarão a passar. É um verdadeiro estado de sítio este que foi criado à volta deste jogo. A paisagem policial expande-se, começa em Lisboa e termina no Porto.
Toda a gente aguarda a catástrofe.
A imprensa começa por carregar. "Não acha que isto vai acabar mal...?" "Pensa que as medidas são suficientes...?" "Vamos deixar o aspecto desportivo e vamo-nos concentrar nos incidentes de ontem..."
Claro que o cidadão normal, adepto ou não de futebol, não pode deixar de se interrogar sobre tudo isto. E não pode deixar de perguntar, para começar, quanto é que isto custa aos cofres do Estado, quanto é que esta mega-operação vai pesar no orçamento, nesta época de vacas magras. Ao mesmo tempo, não pode deixar de constatar que não tem alternativa perante tudo isto. O futebol manda e manda quem pode. É, como disse, um verdadeiro estado de sítio este que vivemos, só falta decretá-lo oficialmente.
Não podemos deixar de nos considerar vítimas da ditadura do futebol.