2009/06/18

Belgais apresenta risco sistémico

Algumas reacções que o meu post de ontem suscitou fizeram-me pensar. Enquanto reflectia sobre a dificuldade em lhes dar resposta o senhor Primeiro Ministro veio em meu auxílio: "Querem saber um erro [da governação socialista]?" perguntava ele aos jornalistas ontem à saída do parlamento. "Se há um erro que é possível indentificar ao longo destes anos, é que talvez deveríamos ter investido mais na cultura."
Porque faria o Primeiro Ministro uma tal declaração?
Simples: porque sabe que a cultura é uma área onde admitir erros não "custa" votos e porque são os próprios agentes culturais que impedem muitas vezes que a cultura se torne o centro do debate, que passe a valer votos e que a ausência de uma política neste sector custe caro a qualquer executivo.
Nao quero estar a alimentar polémica esteril, mas insisto neste tema porque algumas das críticas que são feitas ao projecto Belgais me merecem atenção e alguns dos críticos me merecem respeito...
Mas, acho (é a minha opinião e o meu argumento de combate) que não devemos alimentar esta "polémica" dos pretensos pecados financeiros de Belgais. Aliás, nem sei se os há, admito que sim, embora ninguém os tenha denunciado claramente... No caso de Belgais nem há o limite do trânsito em julgado, porque Belgais já foi condenado sem remissão.
Belgais não passa de um pretexto. A verdade é que a cultura tem sido, é e vai continuar a ser vítima da indiferença ou do interesse parolo de todos os governos. De vez em quando, qual estrela cadente, há um brilho fugaz no céu, mas rapidamente o curso normal das coisas é retomado.
Para os vigaristas, os corruptos, os bandidos que poluem sectores vitais da nossa vida colectiva, total complacência, tolerância e compreensão. Para Maria João Pires e Belgais, a roda já! Que "activos" poderia Belgais ter?
A verdade é que este tratamento iníquo não menoriza, nem retira importância à cultura. Mas aceitar uma discussão nestes termos (e é o que muitos críticos de Belgais fazem) acaba por resultar nisso: menorização e secundarização desta área.
O que posso dizer, sem ter dúvidas, é isto: o que conheço e o que presenciei em Belgais revelaram-me um projecto que estava em contacto com o Céu. Estava solidamente alicerçado nos seus pressupostos e na sua filosofia de actuação. Como escrevi anteriormente, o futuro estava certo em Belgais.
Ora, para criticar Belgais, para retirar apoios a Belgais, para ser comissão liquidatária do futuro, o estado teria de ser melhor que Belgais! O estado teria de ser Belgais, de demonstar uma igual exuberância de actividade e profundidade de desígnios . Mas não foi nem é esse o caso. O estado limita-se a retirar o pipo e deixar que o frágil balão se esvazie, passageiro. Que nomeasse gestores para melhor lidarem com os dinheiros públicos, se foi esse o pecado de Belgais. Que lhes desse umas pensões chorudas para melhor os atrair, mesmo que essas pensões custassem outro Belgais... Que criasse um "mau Belgais" para absorver os produtos tóxicos gerados pelo projecto. Que "nacionalizasse" até Belgais, admite-o perfeitamente. Mas que preservasse, pelo menos, o essencial de tudo aquilo. Para poder criticar Belgais...
Não é o primeiro ministro, que agora confessa o pouco apetite socialista pela coisa cultural, que contra os problemas defende a acção firme e condena o conformismo? Pois, Belgais foi acção contra o problema da indiferença.
O que a gente retira de tudo isto é apenas o seguinte: Belgais não apresentava risco "sistémico"... Não há o menor perigo de os "clientes" defraudados ocuparem instalações ou fazerem esperas ao senhor ministro à porta de um qualquer parque de estacionamento.
Cabe-nos a nós demonstrar que houve, há e haverá mesmo risco sistémico para a vida do país se este tipo de comportamentos continuar a ser aceite.
E a discussão útil está na busca dos termos adequados para o provar.

2009/06/15

Pérolas a porcos

Em Julho de 2006 escrevi aqui, a propósito da partida de Maria João Pires para o Brasil e do fim da sua associação ao projecto de Belgais, que com ela afastada tudo aquilo iria acabar por definhar e morrer. Escrevi na altura que era um sentimento quase de luto que experimentava. Hoje Joana Pires, filha de Maria João fez saber que Belgais "vai fechar devido a um arresto de bens e à falta de apoios." Um fim bem pior do que eu próprio antecipava em 2006. 
Ainda alimentei a esperança de que o património criado por Belgais fosse aproveitado de alguma forma, reconvertido ou reutilizado, apesar de tudo. Nunca pensei que os responsáveis regionais e nacionais se dessem ao luxo de deitar, simplesmente, tudo aquilo para o lixo. Infelizmente, assim aconteceu.
Joana Pires revela agora que "após o encerramento da escola do primeiro ciclo da Mata e do Coro Infantil, não deve restar nada do projecto de Belgais iniciado pela minha mãe".
Em 2003 acompanhei na escola da Mata, perto de Belgais, a assinatura de um protocolo entre o ministro de educação de então (cujo nome não ficou para a história) e os responsáveis do Centro de Estudo das Artes de Belgais. O objectivo do protocolo era a criação de uma parceria entre essas duas estruturas com vista à integração, naquela escola, do ensino artístico com o programa do primeiro ciclo. A cerimónia decorreu com a devida pompa e circunstância. Para além do ministro, o cortejo oficial integrava um sem número de figuras que não queriam naquela altura ficar fora daquele retrato.
No final, numa singela cerimónia que decorreu já em Belgais, o Coro Infantil de Belgais presenteou todas aquelas luminárias com uma comovente intervenção musical. A enorme qualidade do coro, o total empenho e alto grau de responsabilidade daquelas crianças, constituia o fecho perfeito para aquela cerimónia: o Coro era a prova viva --para quem soubesse ou quisesse ler tudo aquilo-- de que os ideólogos de Belgais estavam certos. O futuro estava certo.
Foram pérolas deitadas a todos aqueles porcos.
Belgais acaba agora, com direito a arresto e tudo.
Fica-me a recordação da intervenção do Coro Infantil de Belgais no "Coimbra Vibra!" (cf. foto), um evento que ajudei a criar no âmbito do que foi Coimbra Capital da Cultura 2003...

2009/06/14

As cancelas da internet

Para os leitores do Face Oculta que não são utilizadores do Facebook (eu sou), conto rapidamente como funciona esta "rede social". Qualquer pessoa se pode inscrever. Depois de inscrito, cada um trata de ir construindo a sua "rede", dirigindo convites a pessoas das suas relações, que ainda não sejam utilizadores deste serviço, para se tornarem "friends", ou encontrando, através da pesquisa de nomes ou de endereços electrónicos, gente conhecida que já seja utilizadora do Facebook. Depois de inscrito e de ter a sua "rede" constituída, o novo utilizador do Facebook está pronto a tirar partido deste serviço publicando os seus pensamentos, trocando mensagens, partilhando músicas, fotos, textos ou outro material existente na internet.
Aqui há dias ocorreu uma pequena avalanche no Facebook por causa de um escrito anódino que foi "marcado" como censurável por alguém, que por via dos mecanismos do próprio Facebook tem de ser "friend" do autor do escrito. (*) Esta "marcação" é uma função do Facebook, criada, quero crer, com a melhor das intenções, para denunciar material que possa ser considerado de facto impróprio. Ao "marcar" uma mensagem, um video, ou outra qualquer coisa, é desencadeado um processo que permite aos gestores do Facebook exercer o seu poder discricionário (que ninguém pode contraditar) e "bloquear" o acesso do utilizador a estes serviços. No caso vertente, não só o utilizador, mas também os "friends" que comentaram o seu escrito e até poderiam estar em desacordo com ele, foram impedidos de aceder ao Facebook.
Este episódio, meio ridículo, meio preocupante, desencadeou um movimento enérgico em torno da defesa do direito à livre expressão do pensamento do utilizador do Facebook em causa e dos seus comentadores.
Até ao momento, segundo creio, o movimento não teve consequências e o acesso do utilizador não foi restaurado, mas a sua simples expressão é já sintoma de que algo vai acontecer.
Em última análise os utilizadores do Facebook prejudicados por esta medida mudam-se para outro serviço deste género --tão facilmente como entraram-- e denunciam publicamente este episódio, o que não será bom certamente para o negócio.
As tentativas de controlo da internet, de condicionamento dos seus utilizadores e de limitação dos seus conteúdos, são um atentado intolerável aos direitos individuais, uma absoluta negação do espírito que presidiu à criação e expansão da net e, em última análise, são tentativas condenadas ao fracasso porque podem sempre ser contornadas por um qualquer expediente informático. A proibição é uma palavra proibida na internet e ainda bem.
Por mim, sou contra qualquer tentativa de limitar o uso da internet.
Como diz Francisco Teixeira da Mota num artigo recente do Público "a internet é um direito fundamental". É-o, e é-o cada vez mais, à medida que o seu acesso se universaliza e se simplifica. O Conselho Constitucional francês tomou recentemente uma decisão que é uma prova prática disto mesmo que disse: não é possível, determinou este organismo, restringir por via administrativa o acesso à internet de alguém, mesmo que sobre esse alguém recaia uma qualquer razão específica, legítima, de queixa sobre o uso que faz da rede. Qualquer irregularidade cometida sobre um assunto específico tem que ser tratada no âmbito desse assunto específico. Desta forma --e foi esta questão que esteve na origem da decisão daquele Conselho--, o acesso à internet não pode ser cortado a uma pessoa que tenha feito downloads de música ilegais, por exemplo. Esta é matéria que terá de ser tratada de forma circunscrita.
De forma muito simplificada, é um pouco como se eu estivesse envolvido num acidente rodoviário e me fosse proibido o direito de me deslocar nas estradas. Ou se eu cortasse abusivamente o acesso à agua a um vizinho e fosse proibido de beber água.
Na China, assistimos neste momento a uma tentativa caricata de controlo da liberdade de circulação digital. O governo chinês prepara-se para fazer entrar em vigor a lei designada por "Cancela Verde" que obriga à instalação de software que restringe o acesso à internet. O objectivo, segundo os seus proponentes, é o de filtrar conteúdos pornográficos ou considerados "ordinários". Os chineses, dizem, tentam proteger as crianças.
Este software foi, aparentemente, implementado sem a audição dos fabricantes mas, a par dos seus propósitos mais ou menos virtuosos, parece permitir também bloquear blogs críticos do regime ou vigiar os dados dos computadores pessoais. É, de facto, estranho que a iniciativa e o seu controlo pertençam ao estado e que aos pais, a eles próprios pelo menos, não seja dada a chance de controlar o controlo.
No fundo, deixemo-nos de tretas, trata-se de uma tentativa, no mínimo, canhestra, de privar os cidadãos do uso da estrada, sob o pretexto de controlar acidentes.
A internet e as novas formas de socialização, de interacção e transmissão dos conhecimentos que proporcionam constituem uma nova fase do desenvolvimento humano. O mais empedernido adepto do luddismo concordará com esta observação hoje. Vindas de chineses ou de americanos as tentativas de controlo da internet estão votadas ao fracasso. Mas, há que estar vigilante. É que a viagem na internet não é à borla.
A Europa tem um exemplo forte a dar nesta matéria. A recente eleição de um membro do Partido Pirata da Suécia para o PE é sinal de que os europeus são sensívels a este tema e estão atentos, mais talvez do que se julga.




(*) O episódio está descrito aqui.