2018/09/30

Sevilha: Bienal de Flamenco (2)

Para a segunda metade da Bienal deste ano, reservámos três entradas, seguindo o mesmo critério dos primeiros espectáculos: um de "toque", um de "baile" e outro de "cante", as expressões da arte flamenca por definição.
Começámos pelo concerto "Viviré" (homenagem a Camarón) por um dos maiores guitarristas flamencos da actualidade, José Fernández Torres (Tomatito), companheiro de estrada e de estúdio do famoso "cantaor", falecido em 1992.
Este era um concerto imperdível, não só pela áurea de Tomatito - uma "fiera" na expressão carinhosa dos seus admiradores - mas, porque dos grandes guitarristas vivos (Manolo Sanlucar, Vicente Amigo, Gerardo Nunez, Chicuelo...) Tomatito era o único que eu não tinha visto ao vivo. Tive o privilégio de assistir à última apresentação de Paco de Lucía em Lisboa (2005), pelo que me posso considerar um homem de sorte...
O concerto, que decorreu no passado 22 de Setembro, teve lugar no teatro La Maestranza (1800 lugares) um imponente edifício, construído de raiz para a Expo'92, inicialmente projectado para ópera e zarzuela e que tem como residente a Real Orquestra Sinfónica de Sevilha. Para além de ópera, a sala programa espectáculos nas mais diversas áreas, desde o pop ao rock, passando pelo cabaret (Utte Lamper), flamenco (Mayte Martín), fado (Dulce Pontes, Mísia, Carminho) e, já no próximo mês de Novembro, o "nosso" Salvador Sobral. Mais eclético do que isto, é impossível.
Tomatito, portanto: fabuloso guitarrista, fantásticos convidados (José del Tomate, Duquende, Arcángel, Rancapino Chico), para além dos respectivos acompanhantes, onde havia "cantaoras", um violinista e um percussionista. Um elenco fabuloso, que passou em revista muitos dos temas celebrizados por Camarón (Leyenda del Tiempo, e.o.), a solicitar os "olés" da praxe, sinónimo de apreciação geral. Um pequeno senão (pelo menos na zona onde nos encontrávamos) que foi o som, verdadeiramente deplorável, dado o volume e a amálgama de instrumentos, que seriam fatais para um concerto que tanto prometia. Ficará para uma próxima oportunidade, estamos certos.
O dia seguinte, seria dedicado ao "baile", com o espectáculo "Improbataciones", uma estreia na "off Bienal", este ano coordenado pela "bailaora" Asunción Pérez "Choni", conhecida de actuações anteriores e que também dirigiu a abertura da Bienal na ponte de Triana. Os mesmos intérpretes de Triana, com Manuel Cañadas, (bailarino contemporâeno), David Bastidas e Alícia Acuña (cantaores), Víctor Bravo e Asunción Pérez (bailaores). Pese o lado de improviso, sublinhado pelos artistas na sua interacção com os espectadores, estamos em presença de excelentes intérpretes em cada um dos géneros (dança e canto), que são, de há muito, uma presença assídua na cena sevilhana. Destaque para Manuel Cañadas, que nunca tínhamos visto, e que se afirma como um bailarino de grande estilo e presença. Bom espectáculo, onde a seriedade e o humor, sempre servidos por uma óptima banda sonora, alternaram com bom gosto.
Finalmente, o concerto flamenco do surpreendente Niño de Elche, de quem já conhecíamos o último trabalho discográfico (Antologia del Cante Flamenco Heterodoxo) e do qual nos foi dado ver um pequeno trecho, no fabuloso espectáculo de abertura da Bienal, a cargo do "bailaor" Israel Galván.     Desta vez, a actuar na mítica sala Lope de Vega, a mais clássica de todas as salas da cidade (inaugurada em 1929 e reconstruída por duas vezes, após um fogo, duas cheias e a guerra civil,  quando funcionou temporariamente como hospital) o iconoclasta Niño não desiludiu.
Ou melhor, disse ao que vinha, desde logo quando se apresentou em palco vestido com um fato de treino, que despiu placidamente em frente à assistência e envergou um traje flamenco tradicional (calças e jaqueta negra, sobre uma camisa branca) para, sob uma aparente forma clássica, desconstruir a simbologia e o discurso flamenco tradicionais. Acompanhado por dois excelentes músicos, Raúl Cantizano (guitarra e percussão) e Susana Hernández (teclado, sintetizadores e electrónica) e pelos convidados, os "palmeros" David Bastidas e Alicia Acuña e "bailaores" Israel Galván e Eduarda de los Reyes, Niño de Elche passaria em revista os "palos" mais clássicos (farrucas, seguirias, saetas, fandangos, tangos e rumbas) numa abordagem "sui-generis", intercalada por poemas (Eugenio Noel, Lorca), cantos da guerra civil e uma improvisação sobre Tim Buckley, não tendo faltado a Rumba y Bomba, que encerraria o espectáculo. No fundo, à imagem do grande Enrique Morente, que chocou tudo e todos quando gravou "Omega", com a banda rock de Lagartija Nick, obra que os fundamentalistas flamencos ainda hoje não consideram digna do "cante". Destaque, mais uma vez, para o grande Israel Galván, no pico da sua arte, provavelmente o mais eclético e inovador "bailaor" flamenco da actualidade, que nos ofereceu dez minutos electrizantes.
Nota final: durante o espectáculo, muitos espectadores saíram da sala e, no dia seguinte, a imprensa local (ABC e Diário de Sevilha) arrasaram o concerto. Não me lembro de ter lido críticas tão demolidoras a um concerto. Niño de Elche conseguiu exasperar os puristas, provavelmente o seu objectivo último. Eu adorei.
                           

2 comentários:

cabeça disse...

Entre os meus grandes amores, o Flamenco, e o Jazz, são estes os mais brilhantes, filhos do, Blue, irmãos de sangue.

patas disse...

Que bom. Boa crónica. Aprendemos muito contigo. Através dos artistas que nomeastes irei procurar no youtube e tentar ouvir e ver essas maravilhas humanas.