2018/08/12

Prova de Fogo


2 de Agosto de 2018. São duas da tarde, na estação de serviço de Loulé, a primeira para quem vem de Lisboa e segue, via A22, em direcção a Vila Real de St. António. Enquanto espero pela refeição, olho o televisor que transmite as notícias do dia. O meteorologista de serviço alerta para as temperaturas esperadas no fim-de-semana, que podem atingir mais de 40º na maior parte do território (alerta vermelho). O mapa indica as regiões mais afectadas pelo calor. A zona de Monchique está a roxo. São feitas as habituais recomendações: fazer poucos esforços, procurar a sombra e beber muita água. Tento cumprir os mínimos: já estou sentado, à sombra e peço uma limonada. Lá fora, a caminho do carro, levanta-se um vento estranho e quente, a lembrar o Magreb. Os antigos chamavam-lhe "vento Soão". Por alguma razão devia ser...
Três horas mais tarde, chego a Sevilha. São 18h e os termómetros, no bairro da Macarena, marcam 42º. Relembro a primeira passagem pela cidade, corria o Verão de 1977 e a jura que fiz nesse mesmo dia: nunca mais voltar no mês Agosto. Preparo-me para o pior...
O dia seguinte, não dá sinais de abrandamento. Surgem as primeiras notícias de fogos: desde logo na serra de Aracena (perto de Huelva) e no Algarve (serra de Monchique). Um pouco por toda a Europa, da Suécia à Alemanha, as temperaturas atingem valores impensáveis. Porque Deus é magnânimo, a Califórnia também teve direito ao seu incêndio anual. Lá é sempre tudo maior (America, great again). Só o imbecil do Trump não percebe.
Refugio-me em casa, onde há ar condicionado e bebo sumo de limão. Para distrair, leio os jornais trazidos de Lisboa, que já previam o aumento de temperatura excepcional para aquele fim-de-semana. Sábado, seria o pior dia, afirmavam os jornais de referência.
Tento sair à noite e o mais longe que consigo ir é Salteras, uma vila-dormitório de Sevilha, onde supostamente a temperatura estaria mais baixa, dada a altitude do local. São 23h e estão 34 graus, menos 2º, do que na capital andaluza. É fim-de-semana e não se vê vivalma na rua. Os habitantes da cidade, ou saíram para o litoral, ou estão em casa, com o ar condicionado ligado.  Sevilha é, agora, uma cidade fantasma. O relógio em La Macarena, marca 46º.
Sábado à noite, amigos espanhóis, perguntam-me pelo fogo em Monchique. Que sei eu? Falam-me em feridos e milhares de hectares ardidos (!?). Temo o pior: será castigo de Deus, ou somos mesmo incompetentes? Entre o apreensivo e o envergonhado, pelo meu país ser falado pelas piores razões, tento uma explicação lógica para esta calamidade. Procuro, nas notícias televisivas e nos jornais "online", outras explicações para o fenómeno. O aquecimento global e a sua influência na região mediterrânica, desertificada e sujeita aos ventos quentes de África são, com certeza, uma causa que não deve ser menosprezada. A combinação de altas temperaturas, humidade relativa e ventos ciclónicos, parecem-me uma explicação razoável para a propagação e violência das chamas. Esta é a parte que não podemos controlar (quanto muito, ajudando em tanto que país, na aplicação dos Acordos de Paris). Só Trump, o imbecil, se recusa a assinar, interessado em voltar às energias fósseis, como se o Mundo pudesse andar para trás...
Quando regressei a Portugal, no dia 9 de Agosto, o fogo de Monchique ainda lavrava. Sete dias, sem parar. Nas televisões e jornais, debatem-se acaloradamente as causas e meios usados para combater o flagelo. Os "experts" são mais que muitos e parte da comunicação social não esconde um certo desalento, por não ter havido vítimas. Sim, uns mortos, vinham mesmo a calhar, pois podia ser que um ministro caísse e lá ia o governo atrás. O Marcelo já avisou: se houvesse outra catástrofe, como a do ano passado, ele seria o primeiro a demitir-se...
Estamos a 12 de Agosto e o fogo de Monchique está debelado. Balanço final: 7 dias de incêndio, 27.000 hectares ardidos (o maior fogo europeu), 41 feridos (um deles, grave), 50 casas destruídas (total ou parcialmente), 509 pessoas retiradas das suas casa, 700 pessoas afectadas que receberam apoio das equipas de segurança social. Na operação, foram utilizados 1137 operacionais, 13 aeronaves, 396 viaturas de combate, tendo ainda sido criadas 9 zonas de concentração e apoio às populações. É obra.
Este fim-de-semana, foi um rodopio. Do presidente da república, ao primeiro-ministro, do ministro da administração interna ao ministro do ambiente, do ministro da agricultura aos partidos de oposição, estiveram lá todos. Enquanto os representantes do governo exultavam, por não ter havido vítimas (não é essa a principal missão da protecção civil?), alguns populares, obrigados a sair de casa pela GNR, protestavam por terem perdido as suas casas e haveres (!?). Marcelo, o presidente dos afectos, beijava-os a todos e ouvia com atenção, prometendo uma avaliação de toda a operação, para quando terminasse o Verão. Afinal, ainda falta um mês e meio para terminar a "época dos fogos" e nunca se sabe...
Estou contente por não ter havido vítimas. A protecção civil aprendeu a lição do ano passado e esteve bem desta vez. Não se compreende as críticas daqueles que recusavam sair das casas, pondo as suas vidas em perigo. Entre salvar bens materiais e vidas humanas, não pode haver hesitação.
Obviamente, que perder casas, animais e plantações agrícolas, é sempre doloroso. Muitas daquelas pessoas já não voltarão à agricultura. Mas, uma casa pode reconstruir-se sempre e haverá apoios para recomeçar uma nova vida. Não perceber isto e criticar esta intervenção do governo, é ajudar à onda de populismo que a oposição, à falta de alternativas, tenta cavalgar a todo o custo.
Outra coisa, não menos importante, é a prevenção que continua a falhar, pese embora os esforços feitos no último ano. Coisas básicas como o cadastro do território, o ordenamento da floresta, o combate à desertificação e os incentivos económicos, de que toda a gente fala (mas que só uns poucos usufruem), devem estar no topo da agenda política de qualquer governo. A floresta portuguesa (que já foi a maior a nível europeu, em termos proporcionais de território), é ainda a nossa segunda maior riqueza natural (a primeira é o mar). As causas dos fogos estão estudadas e os diagnósticos apontam todos no mesmo sentido: desertificação do interior (75% da população vive no litoral); ordenamento do território (não existe um cadastro de terras a Norte do Tejo, o que dificulta a identificação e emparcelamento das propriedades); monocultura de determinadas espécies, como o eucalipto e o pinheiro bravo (o que aumenta a combustão e alimenta o fogo) e, finalmente, o aquecimento global que existe e vai aumentar. À excepção da última variável, que não podemos controlar, o governo pode tentar inverter e melhorar a situação. Fogos, existirão sempre. Trata-se de minimizá-los e para isso é preciso investir na prevenção, que é como quem diz, no futuro. Deixar o país melhor, deve ser o desígnio de qualquer político. A verdadeira "prova de fogo".    
  



  

        

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