2025/04/24

Os "zelotas" de serviço (51 anos depois)

 Maria Helena Vieira da Silva, Liberdade, 1984 

Faz hoje 50 anos viajei de Amsterdão para Lisboa, para poder presenciar "in loco" as primeiras eleições livres em Portugal. Vivia, então, na Holanda, onde (ironia do destino) já podia votar como estrangeiro nas eleições autárquicas locais. 

Lembro-me perfeitamente desse dia. Ao entrar no avião, a hospedeira da KLM (uma amiga minha), perguntou-me se eu ia votar em Portugal (?). Que não, eu não podia votar, apesar da revolução de Abril ter sido um ano antes. A razão prendia-se com o novo regime, o que implicava criar partidos, programas e uma nova constituição. Aos residentes no estrangeiro, estava vedado esse direito, que só seria adquirido nas eleições legislativas de 1976. 

Durante a viagem, sentou-se ao meu lado e continuámos a falar sobre o processo democrático português que, à época, fazia capas diárias na imprensa. A opinião pública, na Holanda, seguia com atenção o desenrolar do chamado "processo revolucionário em curso" (vulgo PREC) e Portugal estava na "moda". Porque a situação era difícil de acompanhar, tentei explicar-lhe as vicissitudes de uma jovem democracia, após quase meio-século de ditadura. Não era fácil, nem para ela, nem para mim, perceber o que se passava a mais de 2000km de distância. Havia, no entanto, uma história comum: eu tinha vivido 20 anos sob um regime fascista e o pai dela tinha participado na resistência holandesa contra a ocupação nazi. Para mim, a democracia em Portugal era uma novidade. Para ela, a democracia neerlandesa era um dado adquirido. Despedimo-nos à chegada a Lisboa, com os votos de boas eleições. Foram as mais participadas de sempre (92% de votantes!). Um recorde absoluto. 

Recordo a emoção da data. Acordei cedo e, quando me preparava para assistir às primeiras votações em liberdade, já os meus pais estavam de volta. Tinham-se levantado de madrugada (tal era a excitação) e às 8h. da manhã foram votar! "Não custou nada", disse a minha mãe, quando perguntei como tinha corrido. Já o meu pai, sorridente, comentava que "estava tudo muito bem organizado"...

De volta à Holanda, ainda teria de esperar meses até o consulado de Roterdão abrir as inscrições para quem desejasse recensear-se. Dessa forma, poderia votar nas eleições legislativas, as únicas nas quais os portugueses residentes no estrangeiro participavam. Posteriormente, esse direito foi alargado às eleições presidenciais, durante anos impeditivas para os emigrantes portugueses. Vá lá saber-se porquê...

Passaram 51 anos e, amanhã, lá iremos descer a Avenida da Liberdade. A única manifestação verdadeiramente popular. Também no parlamento há, tradicionalmente, uma cerimónia oficial. A primeira, é da parte da tarde; a segunda, é da parte da manhã. Uma é uma festa, com centenas de milhares de participantes; a outra, é um ritual, ao qual assistem convidados oficiais, representantes dos partidos políticos e altos magistrados da nação. Nada contra. Ambas são representativas e sublinham o dia da Liberdade por definição. É bom que assim seja, pois significa que - de cravos vermelhos ao peito (a esquerda) ou de cravos brancos na mão (a direita) - o 25 de Abril não tem donos.  

Onde está a novidade, então? 

Acontece que, pela primeira vez na história, as festividades no palácio de São Bento não terão lugar no dia 25 de Abril. A razão invocada é o "luto oficial" decretado por morte do Papa (!?). Ou seja: o estado (laico) português, decretou 3 dias de luto, o que impossibilita "São Bento" de organizar quaisquer cerimónias ou festividades no local. Pior: no dia do funeral do Papa, as três principais figuras da nação - o Presidente da República, o Primeiro-Ministro e o Presidente da Assembleia - estarão todos em Roma. Pior ainda: na ausência destas três figuras, a representação do estado português caberá ao vice-presidente da Assembleia da Republica, o deputado e ideólogo do "Chega" (Diogo Pacheco de Amorim), ex-membro do grupo terrorista MDLP, responsável por inúmeros atentados entre 1975 e 1977, conforme amplamente documentado e provado em tribunal. Nestes dias, o país estará representado por um facho.

Moral desta história triste: há muito que a direita mais reacionária e revanchista desejava "vingar-se" do "25 de Abril" (quando perdeu o poder). Durante 50 anos, não o conseguiram. A democracia sempre foi mais forte. Ainda é, de resto. No entanto, nos últimos anos, a composição do parlamento alterou-se e a maioria sociológica passou a ser de direita. É a partir daqui, que os "saudosistas" do 24 de Abril, viram surgir a sua oportunidade: primeiro, com a chegada ao hemiciclo do partido fascista "Chega"; depois, com a celebração do golpe de "25 de Novembro" (que, este ano, terá lugar pela primeira vez); agora, com a justificação dos 3 dias de luto que (atente-se), são iniciados ainda antes das exéquias terem lugar. O estado do Vaticano só decretará o luto, após o funeral do Papa! É caso para dizer: neste aspecto, o governo português "foi mais papista que o Papa!". 

Nota final: dadas as críticas de todos os quadrantes, por este cancelamento - totalmente despropositado num estado laico - o governo lá veio justificar-se com a desculpa esfarrapada que as festividades não tinham sido canceladas, mas apenas adiadas para data posterior, a saber, para o dia 1 de Maio próximo.

Já desconfiávamos, mas agora comprovámos: os portugueses saíram do Fascismo, mas o Fascismo não saiu da cabeça de (muitos) portugueses. Nada a fazer. 

Contra isto, amanhã e no futuro, voltaremos para reafirmar o óbvio: "25 de Abril, sempre! Fascismo, nunca mais!".