2025/05/31

In Memoriam: Fernando Venâncio (1944-2025)

Inédito 7Margens: Leigos católicos em Portugal – um testemunho de Teotónio  Pereira | Sete Margens

Ontem perdi um amigo. Dos grandes. O Fernando Venâncio. Faleceu em Beja, onde estava internado há alguns anos. 

Do Fernando Venâncio, estão hoje a lembrar-se os seus mais próximos, aqueles que tiveram o privilégio de o conhecer pessoalmente. Não podia ficar atrás. Junto o meu depoimento. 

Morreu um homem bom. Bom na ciência, à qual dedicaria a maior parte da vida; na vida académica terminada com brilho; nas muitas publicações, editadas em livro e dispersas por jornais e revistas onde colaborou; na amizade, que nunca negou. 

Conheci-o em 1971, poucos meses após a sua chegada à Holanda (hoje, Países-Baixos), numa das muitas assembleias de exilados políticos, vulgo "refugiados", que à época demandavam Amsterdão. Éramos centenas, mas faltava-nos o mais importante: uma organização representativa. Daí, os inúmeros encontros entre os mais antigos e aqueles que iam chegando e necessitavam de informações que os ajudasse numa integração mais rápida.  

Era a fase da entreajuda possível, partilhas da habitação em colchões improvisados e acompanhamento durante o processo de legalização, o que implicava a passagem por uma das organizações sociais existentes, encontrar um advogado "pro-deum" e a ida à polícia de estrangeiros. Cumprido este ritual, que podia demorar meses, a polícia de estrangeiros fazia a triagem possível e atribuía, a cada um de nós, um estatuto. Aos desertores, como o Fernando, era aceite o pedido de asilo, que implicava uma habitação condigna e uma bolsa de estudo, para aprender a língua e prosseguir a formação académica. No caso do Fernando, não necessitou sequer de passar pela escola onde era leccionado o neerlandês, para falar fluentemente a língua, da mesma forma que lhe deram a equivalência ao bacharelato, para reiniciar os estudos na Universidade de Amsterdão.  

Perdi-o de vista, entre 1971 e 1972, mas viria a reencontrá-lo, no início do ano académico de 1972-1973, na biblioteca universitária que ambos frequentávamos. A amizade continuou e, ainda que em faculdades diferentes, os encontros eram frequentes. Falava-se de tudo e havia sempre tempo para uma conversa no "coffeshop" ao lado da biblioteca. Tempos febris, mas de esperança, já que ninguém acreditava ficar muito tempo no exílio. 

Com o 25 de Abril, a maior parte dos refugiados portugueses voltou à pátria. Ficaram os mais antigos e integrados na sociedade holandesa, os que constituíram família ou estavam a estudar com bolsas do estado. O Fernando pertencia ao segundo grupo. Uma vez terminado o curso, em 1976, candidatou-se a um lugar vago no departamento de português da Universidade de Nijmegen, onde leccionou durante anos e onde o visitei por diversas vezes. 

Em inícios da década de oitenta (passados os "anos loucos da revolução"), um grupo de ex-exilados criou, em Amsterdão, o "Círculo de Cultura Portuguesa na Holanda", uma fundação que se propunha dinamizar e divulgar a cultura portuguesa nos Países-Baixos. Éramos subsidiados, o que permitia ter uma local de encontro, organizar exposições, eventos musicais e literários e publicar uma revista semestral cujo nome (Vertical) foi sugerido pelo Fernando. Desnecessário acrescentar que o Fernando se tornou um orador frequente, seja falando da sua amada língua, seja declamando, seja colaborando activamente na revista, onde era escritor residente. 

A revista terminaria em finais da década, mas a colaboração do Fernando com o "Círculo" continuou, agora mais próxima, uma vez que ele passou a leccionar em  Utrecht, o que facilitava a deslocação. Em caso de necessidade, pernoitava em minha casa, para não ter de regressar no último comboio. 

Posteriormente, o Fernando seria convidado a leccionar na Faculdade de Letras de Amsterdão (onde substituiria o escritor Rentes de Carvalho, entretanto reformado), o que possibilitaria novos e enriquecedores encontros. Aproveitei para convidá-lo a participar num documentário para a televisão holandesa, por mim escrito e coordenado, sobre "ex-exilados na Holanda". Aceitou de imediato. Uma semana de convívio inesquecível, onde pudemos mostrar as suas diversas facetas: familiares, académicas e de escritor. 

Em meados da década de noventa, regressei a Portugal. Os encontros começaram a rarear, ainda que nas minhas visitas anuais a Amsterdão, ou na Feira do Livro de Lisboa, houvesse sempre tempo para trocar dois dedos de conversa.

Quando o convidei para apresentar um livro sobre "exílios" onde colaborei, nem hesitou. Seria em Outubro de 2016, em Amsterdão e ele foi um dos "mestres de cerimónia". No ano seguinte, repetimos a "dose". De novo na capital holandesa, agora numa sessão organizada pela Q'art sobre música e literatura portuguesa. O Fernando, seria o principal orador e falaria sobre a "inveja" e a "competição" no meio literário português. Tudo, em neerlandês, com o ar mais sério deste Mundo. O que eu me ri... 

Em 2017, telefonou-me: "Olha, afinal, sempre vou regressar a Portugal! Vendi a casa de Amsterdão e vou para Mértola. Tenho lá uma casa e vive lá uma das minhas filhas, com o meu neto". Óptimo, pensei.

Em Mértola, visitei-o por duas vezes: em 2019 e em 2021. Achei-o bastante fatigado, mas ocupado e entusiasmado como sempre. O seu livro "Assim nasceu uma língua" já ia na terceira edição e tornara-se um "best-seller". Não entendia como é que os linguistas portugueses não tinham ainda chegado às mesmas conclusões. Bastava ter estudado mais um pouco, concluía... 

Soube pela família do seu internamento, numa residência sénior em Beja, vai para três anos. Visitei-o em 2023 e em 2024. Nessa altura, planeavam homenageá-lo em Utrecht e pediram-lhe um depoimento gravado. Escrevi um texto, a pedido, que ele aprovou. A última conversa, seria telefónica, em Agosto de 2024. Passava por Beja, e desejava vê-lo. Preferiu não receber-nos, por considerar não estar a passar um bom momento...

Ontem telefonou-me um jornalista do "Público", também amigo de longa data: "se eu sabia alguma coisa do Venâncio? Não, porquê? Consta que morreu". Pus-me em campo e confirmei a notícia.

Agora é tarde. Resta a "despedida" em Mértola, a terra que o viu nascer. Mais do que um intelectual de craveira, perdi um amigo de excepção. Afinal, foram mais de cinquenta anos de convívio fraternal e solidário. Inesquecível, o Fernando Venâncio. Não me conformo. 

Nota- A foto foi retirada do blogue 7Margens. Familiares e amigos de Nuno Teotónio Pereira em 1970, em Marvão, antes de Fernando Venâncio e Joel Pinto (segundo e terceiro à direita) saírem clandestinamente para Espanha, para desertar da guerra colonial. A foto foi captada pelo próprio Teotónio Pereira. Esta fotografia tem outro elemento de destaque: o sexto à direita é o "nosso" Raul Henriques.

2025/05/29

O Voto dos Emigrantes (a ignorância é tramada)


Já são conhecidos os resultados eleitorais dos círculos da emigração. 

Como era previsível, ganharam os partidos de "direita": 2 deputados da AD no círculo das Américas/Resto do Mundo e 2 deputados do Chega no círculo da Europa. O PS deixou de ter deputados pela Emigração.   

O voto tradicional da emigração sempre foi (mais ou menos) conservador. Na Europa, mais PS; nas Américas/Resto do Mundo, mais PSD. Com o regresso dos emigrantes da primeira geração, as gerações posteriores (2ª e 3ª gerações) não alteraram substancialmente a sua tendência de voto.

Só depois do surgimento do Chega (2019), o voto "emigrante" se alterou. O partido mais penalizado foi o PS, seguindo a tendência de Portugal. 

Duvido que a geração emigrante pós-Troika (2011-2015) vote mais. Pelo contrário, a maioria não pensará sequer voltar a Portugal, nos tempos mais próximos. Porquê, então votar Chega? 

Provavelmente, terá a ver com um certo mimetismo, derivado da situação encontrada nos países onde vivem e trabalham: não querem ser identificados com as comunidades muçulmanas e outras comunidades marginalizadas nessas sociedades. Conheço alguns assim, em ambos os lados do Atlântico. Saíram de Portugal com "uma mão à frente e outra atrás" (alguns, eram exilados do regime fascista de Salazar e Caetano) e julgam-se privilegiados em relação a outros migrantes.

Ou seja, obtiveram um estatuto social diferente (a antiguidade é um "posto") e consideram-se especiais porque mais "integrados" nessas sociedades, procurando comportar-se como as populações de países onde o voto anti-imigração é elevado (França, Suíça, Luxemburgo, Alemanha, Países-Baixos...). 

Outra questão, terá a ver com a má organização dos serviços consulares e/ou deficiente distribuição dos votos por correspondência, já que muitos cadernos eleitorais no estrangeiro não estão actualizados e grande parte dos boletins de voto não chegaram aos destinatários em tempo útil. É o caso do Reino Unido, onde cerca de 60.000 portugueses poderão ter sido impossibilitados de votar (!?). Como se explicam tais números? Um reflexo do Brexit e das medidas nacionalistas do Reino Unido, ou da incompetência dos serviços? 

Depois, há outra variável que não pode ser menosprezada: a ignorância generalizada. Se, em Portugal, 42% da população ainda é analfabeta funcional (in "Observador" d.d. 18/12/24), porque é que na emigração havia de ser diferente? 

Ou seja: o aumento de votação do Chega, nas comunidades emigradas da Europa, não terá a ver com as condições sócio-económicas dos emigrados (que, à partida, serão melhores do que em Portugal) mas com o desconhecimento e ignorância, existentes nessas comunidades, em relação à realidade portuguesa. Sempre foi assim. A ignorância, é tramada.     



2025/05/26

A parolice no poder


(Imagem do Página Um)

A publicação Página Um chama a atenção, na sua edição de 23/5, para um caso grave de incompatibilidade com a Língua Portuguesa. Algo que se passa lá longe, no Japão, a uma distância suficientemente confortável, para que a generalidade dos portugueses dela não tenha conhecimento. 

Conta Pedro Almeida Vieira, o autor da revelação, que « na Exposição Universal de Osaka, em pleno 2025, (…) fiquei estupefacto com uma constatação: o pavilhão de Portugal optou por apresentar-se ao mundo sem uma única mensagem em português. Nas projecções que “recebem” os visitantes, apenas se lêem mensagens em japonês e inglês. Presumo que a palavra Portugal apareça como Portugal porque assim se escreve em inglês. »

O feito é da responsabilidade da AICEP, que coordena a presença do país neste evento.

O artigo pode ser lido, na totalidade, aqui.

No auge das nossas relações com o Japão, o japonês incorporava cerca de 4000 palavras de origem portuguesa. Hoje ainda são umas largas dezenas. A maior parte dos japoneses não o saberá, mas usa-as.  Quem sabe, nas tais legendas que agora podem ser lidas, haverá alguma palavra japonesa com origem no português. Os portugueses, esses, desprezam a sua língua.

É a isto que estamos condenados: ter um bando de ignorantes (chamemos-lhes assim…) a gerir o país como se fosse um centro comercial, daqueles que proliferaram por aí, em determinado período fatídico da nossa história, mal iluminados, em que metade das lojas está fechada e a outra é constituída por uma padaria, um canto onde uma costureira arranja bainhas, um balcão vende cafés e salgados oleosos, outro vende tabaco e raspadinhas, ainda outro vende capas e cartões para telemóveis e mais coisas do género. Piroso, pretencioso, mesquinho, inútil, ignorante.

Este lindo serviço custou 26 milhões de euros, pagos pelo tuga, mas de onde o português foi banido. Com o beneplácito de um organismo que devia promover a presença do país no estrangeiro. Está nos estatutos. Estes dizem que a AICEP "tem por objeto o desenvolvimento e a execução de políticas estruturantes e de apoio à internacionalização da economia portuguesa." Obviamente que o deveria fazer través de todas as ferramentas essenciais, a começar pela língua. Ignorá-lo, silenciá-la deste processo, é isso mesmo: é ser ignorante. Onde fica Portugal em tudo isto? 

Um nojo.