2024/05/14

Nem tudo vai mal em Portugal (de acordo com a imprensa espanhola)

Não abundam as referências a Portugal na comunicação social espanhola. Nem mesmo as desportivas, onde os feitos lusos são de forma olímpica ignorados, a menos que se trate de uma contratação milionária para um clube de Espanha, esse sim, o centro das atenções.

No ano do cinquentenário da revolução portuguesa (et pour cause) o foco sobre Portugal redobrou, o que em si não deixa de ser uma boa coisa, segundo o velho princípio "não importa que falem mal, desde que falem de nós". 

Acontece que, desta vez, não só "falam", como falam muito. Esta redobrada atenção, com que determinados acontecimentos em Portugal são seguidos no país vizinho, ilustra uma tendência crescente nas publicações espanholas em diversas áreas, da política à cultura, da economia ao clima, passando, como não podia deixar de ser, pelo desporto-rei e a Eurovisão, eventos planetários por definição. Vem isto tudo a propósito de dois extensos artigos, publicados nos últimos dias, sobre a situação económica e a diplomacia portuguesa do novo governo.

Sob o título "O vagão da cauda é agora a locomotiva económica europeia", o suplemento"Negócios" do jornal "El País", dedicou um extenso artigo à situação actual dos "PIGS" (acrónimo pejorativo dos nomes de Portugal, Itália, Grécia e Espanha, durante a crise do euro), onde analisa a situação das respectivas economias, em franca recuperação (depois da crise financeira de há dez anos), face aos países do Norte da Europa.

Assim, e no que a Portugal diz respeito, a articulista (Tereixa Constela) constata que "dez anos depois da marcha  dos homens de negro, aqueles gestores internacionais da Troika, que sanearam as contas públicas com mais golpes de machado do que bisturi, Portugal emerge como o aluno mais diligente do Sul da Europa". Segue-se um enunciado dos resultados obtidos nos últimos nove anos: "(Portugal) conseguiu em 2023 que a dívida pública baixasse de 100% do PIB para 98,7% e contabilizou um superavit histórico, o mais alto desde a queda da ditadura em 1974. Portugal e Irlanda são os únicos membros do antigo clube dos PIGs que colocaram a dívida pública abaixo dos níveis anteriores à Grande Recessão. A economia vive um momento dourado graças às exportações, com o turismo batendo recordes. O ano de 2023 foi o melhor da história, com mais de 30 milhões de visitantes e 25.000 milhões de euros de receita. O desemprego continua em níveis baixos, com uma taxa de 6,5% em Março. Também a inflação desacelerou mais rapidamente do que em países como a Alemanha, França, Países Baixos, Espanha e Grécia e situa-se em 2,29%". A articulista não deixa, no entanto, de apontar pontos negativos: "Em contrapartida, o país sofre uma crise grave de habitação, com os preços a disparar e fora do alcance dos baixos salários de Portugal, onde o salário médio, em 2023, foi de 1505 euros, face aos 2128 euros em Espanha. A intervenção internacional salvou o país da bancarrota com um resgate de 78 000 milhões de euros (o terceiro solicitado em meio século de democracia), mas exigiu medidas que arruinaram a vida de milhares de pessoas que perderam casas e empregos. Nos três anos do programa de ajustamento (2011-2014) destruíram-se mais de 330 000 postos de trabalho e desapareceram 90 000 empresas. O desemprego disparou entre os jovens e atingiu 42%. A única saída, que muitos encontraram, foi o velho caminho da emigração. Mas, se nos anos da ditadura, partiam os trabalhadores com pouca formação, no século XXI partiram licenciados universitários em idiomas e profissionais qualificados. Uma perda, em muitos casos irreversível para o país que os formou e que se traduziu num sismo demográfico que condiciona a economia e a sociedade do presente". Estas e outras preocupações, são corroboradas por analistas portugueses (i.e. André Freire) que confirmam o diagnóstico: "a obsessão pelos superavits orçamentais, contribuiu para a erosão do poder de compra das classes médias e a qualidade dos serviços públicos".  Até aqui, nada a contrapor.

De outro índole, é a entrevista do mesmo jornal ao ministro dos negócios estrangeiros Paulo Rangel, sobre temas cadentes da política internacional. Questionado sobre a possibilidade de Portugal acompanhar a posição de Espanha e da Irlanda, no reconhecimento do estado palestino, Rangel refugia-se na conhecida posição do "nim", uma característica da diplomacia portuguesa: "Nós temos uma posição muito próxima da posição da Espanha e Irlanda, ainda que não seja exactamente a mesma. Há uma diferença temporal. Temos consultas com outros Estados membros para ver qual é o momento mais oportuno para dar o passo". A jornalista insiste: "E o que é necessário para que esse momento se considere oportuno?".  Rangel, torneia a questão e diz que Portugal não quer criar uma fractura na Europa (!?). Acrescenta que o governo português pediu um cessar-fogo imediato e a libertação dos reféns "porque estamos perante uma catástrofe humanitária e uma situação de urgência e emergência do povo palestino de Gaza, que é inocente na sua imensa maioria". A jornalista concretiza: "Para além de uma catástrofe humanitária, crê que é um genocídio?". Rangel: "O genocídio pressupõe a vontade de eliminar um povo. Seria muito injusto dizer que Israel pretende eliminar o povo palestino".  

Estamos conversados. Se o que se passa em Gaza - onde já morreram 35 000 pessoas (15 000 dos quais crianças) e 1,5 milhão de pessoas não têm acesso a água, comida, electricidade, habitação ou hospitais - não é uma limpeza étnica, então o que falta para ser considerado um genocídio? Um traste, sem escrúpulos, o Paulo. Tenho vergonha destes governantes.