A recente morte de um habitante do bairro do Zambujal, no concelho da Amadora, fez manchetes em toda a Comunicação Social, ainda que não tenha sido esta a primeira vez que um morador (negro), de um bairro (periférico) da capital, tenha sido baleado pela polícia.
A comoção nacional, desta vez, teve mais a ver com a reacção de alguns moradores dos bairros periféricos (que optaram pela violência gratuita, provocando motins na área da Grande Lisboa) do que com a morte de um membro da comunidade africana, num bairro considerado problemático.
O que se passou, afinal? Aparentemente (e até prova em contrário) o cidadão Odair Moniz, de origem Cabo-Verdiana, dirigia-se para casa na madrugada de segunda-feira, dia 21, quando foi interceptado pela polícia de segurança pública por, alegadamente, ter ultrapassado um risco contínuo. De acordo com a versão policial, teria recusado parar e fugido para um bairro vizinho (Cova da Moura) onde o carro que conduzia embateu em vários carros estacionados, acabando imobilizado. Intimado a sair do carro, recusou deitar-se no chão, para ser algemado e, perante a resistência, a polícia, após dois tiros para o ar, baleou-o com dois tiros mortais. O comunicado oficial da PSP refere ainda, que o suspeito, ameaçou a polícia com uma "arma branca" e conduzia um carro roubado. Esta, a primeira versão dos factos.
Passada mais de uma semana sobre os acontecimentos, e enquanto decorre o inquérito instaurado pelo MP, vão sendo revelados detalhes importantes. Assim, a versão oficial da polícia revelou-se falsa, já que a vítima não puxou de nenhuma arma branca e o carro não era roubado, mas do próprio (declarações dos policias que o prenderam). Mais, existem vídeos, feitos por testemunhas do acontecimento, que provam os polícias nada terem feito para retirar o corpo baleado do local, quando este ainda apresentava sinais de vida. Uma intervenção rápida, poderia tê-lo salvo. Posteriormente, podiam sempre prendê-lo e iniciar o processo criminal respectivo. Também sabemos que o polícia, que baleou Moniz, era um jovem recruta (22 anos), sem experiência, que patrulhava o bairro há pouco tempo. Está suspenso e foi constituído arguido.
Como é habitual nestes casos, os habituais detractores, apressaram-se a justificar a morte de Moniz, como um acto de legitima defesa, cometido pela polícia, contra um (ex) traficante de droga. Sim, é verdade que Moniz tinha sido condenado e preso por actividades ilegais. Cumpriu a pena e há oito anos que levava uma vida normal, sendo dono de um estabelecimento comercial e tendo uma actividade de animador social, reconhecida no bairro.
Que os chamados "bairros problemáticos" existem e a vida neles é tudo menos fácil, é do senso comum. Não só em Lisboa, como em S. Paulo, Luanda, Nairobi, Cairo, ou Bogotá. Mais do que olhar para a árvore, há que olhar para a floresta. Não é isso que fazem os "comentadores de sofá", isolados na suas zonas de conforto, que preferem dividir a sociedade em "bons" e "maus" e colocar a polícia (por defeito) no primeiro grupo. Acontece que existem maus elementos no grupo dos "bons" e vice-versa. Não perceber estas coisas simples, é tramado, mas também há quem negue as alterações climáticas ou afirme que a Terra é plana e não é por isso que o planeta deixa de girar.
Sim, os bairros são "problemáticos" e vivem neles elementos marginais que não contribuem para a urbanidade desejada e praticada pela maioria dos seus habitantes. Sei do que falo: vivo num bairro, a menos de 500 metros do Zambujal e da Cova da Moura e dou-me com alguns dos seus moradores. Tudo gente normal, que sai diariamente para os seus trabalhos, na construção civil, nas limpezas, nos hospitais, nos lares de terceira-idade, na restauração, etc. São maioritariamente africanos, brasileiros e portugueses, mas também há ucranianos e asiáticos. Nestes, como nos restantes bairros da periferia de Lisboa, a situação é idêntica. Milhares de imigrantes, a maioria com nacionalidade portuguesa, que contribuem com mais de 1600 milhões de euros anuais, para a Segurança Social. Sem eles, a economia portuguesa colapsava.
Acontece, que a maioria destes bairros foi construída (ilegalmente) após o 25 de Abril, por populações africanas vindas das ex-colónias, em meados dos anos setenta. Privados de tudo, sem conhecerem o país que os acolhia e mal falando português, aceitaram as condições oferecidas e começaram a trabalhar no que surgia, muitas vezes construindo a sua própria habitação aos fins-de-semana, em terrenos camarários e privados. É o caso da Cova da Moura (onde foi baleado Odair Moniz), até há cinquenta anos uma quinta (propriedade da família Canas) de 19 hectares, onde cheguei a jogar futebol quando era adolescente.
Pergunta: que culpa têm os imigrantes africanos da primeira geração, acolhidos após a descolonização, que as autarquias portuguesas tenham permitido construir casas e bairros inteiros, sem qualquer infraestrutura pré-existente? Alguém imagina, isto ser possível, num país organizado e onde existe um estado forte? Claro que não. Basta comparar as sociedades desenvolvidas do Norte da Europa, com países subdesenvolvidos, como era Portugal em 1974. Hoje, a situação é diferente. As primitivas barracas (quase) desapareceram, mas as populações dos bairros "sociais", construidos nas últimas décadas, ainda continuam à espera de estruturas condignas (escolas, centros de saúde, espaços verdes, associações...) para além de um policiamento de proximidade, que lhes devolva um sentido de comunidade e integração, que não existe e tornou estes bairros verdadeiros guetos. Não é pois, de admirar, que a marginalização produza marginais, aos quais os governantes respondem com mais repressão policial.
No entanto, há um padrão na actuação da polícia, nos bairros considerados "sensíveis". O cronista do "Publico" Manuel Loff, deu-se ao trabalho de inventariar as mortes provocadas pela polícia nestas comunidades: "1987, Fernando Semedo, Queluz;1994, Romão Monteiro, 33 anos, cigano , morto em Matosinhos, enquanto estava detido e algemado; 2001, Ângelo Semedo, 17 anos; 2002, António Pereira 25 anos, operário, membro do Centro Operário Africano de Setúbal, morto no bairro da Bela Vista; 2003, Carlos Reis, 20 anos, morador no Zambujal, baleado na cabeça, por um polícia durante uma operação-stop; 2004, José Carlos Vicente, 16 anos, morador no bairro 6 de Maio, Amadora; 2005, João 17 anos, morador no Bairro Amarelo, Almada, morto pela GNR; 2009, Elson Sanches, 14 anos, Quinta da Laje, Amadora, abatido à queima-roupa; 2010, Mc Snake, rapper, 30 anos, Alcântara, Lisboa, baleado após uma operação-stop; 2013, Diogo Filipe Borges, 15 anos, bairro 6 de Maio, depois de torturado na esquadra de Alfragide; e, agora, Odair Moniz, 43 anos, Zambujal, quatro tiros, dois mortais, à queima-roupa" ("Público", d.d. 30/10/24).
Ora, nada destas coisas, acontece por acaso. Se é verdade que existem criminosos nos bairros "problemáticos", não é menos verdade que a maioria das suas populações é gente normal e integrada. Também não se percebe, porque é que a polícia dispara quando, na maioria dos casos, não há resistência, muito menos armada. Estamos perante uma cultura existente nas forças de repressão, que não sendo transversal a toda a corporação, existe e deve ser fruto de análise cuidada por parte da tutela, pois os relatórios internacionais sobre a actuação da polícia portuguesa (denúncia de abusos, tortura, etc...) são conhecidos das próprias autoridades. Ninguém imagina, um português branco, na Avenida de Roma, na Lapa, ou em Telheiras, ser algemado em plena via pública e, muito menos, alvejado a tiro em pleno dia.
Se não é discriminação, parece. É bom que seja reconhecida e atalhada enquanto é tempo. Enfiar a cabeça na areia e continuar a afirmar que não há racismo em Portugal, é a pior das respostas.